Na busca
de um assunto para o último blogar junino, propus-me — mais uma vez —tentar
responder uma pergunta recorrente: POR QUE UMA CIÊNCIA INDISCIPLINAR? Ante a extensão do tema, adiro
a um modelo muito atual. Vou fracionar a resposta à questão fulcral em
episódios. Estes serão trazidos em futuras edição (não necessariamente sequenciais)
formando uma série. A seguir o primeiro episódio.
Ouso
afirmar que, passado um quarto de Século da publicação dos primeiros livros de
educação química no Brasil, somos menos educadores químicos. Somos mais professores
de ciências do que professores de química. Fizemos alfabetização científica,
formamos mestres e doutores em ensino de ciências. Radicalizo mais: quase perde
o sentido falarmos em educação química. Essa afirmação é feita na mirada de
pelo menos quatro revoluções científicas (copernicana, lavoisierana, darwiniana
e freudiana) que, desde o Século 16 ao Século 20, ordenaram/ ordenam o
disciplinamento dos conhecimentos. Parece que há exigências de pensarmos neste Século
21, em uma reversão desses processos, e considerarmos a produção do
conhecimento sem as marcas da disciplinarização, gerada no contexto
ocidental dominado pelo espectro dos livros sagrados que ainda dogmatizam (e
garantem a ortodoxia) às três religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e
islamismo). É nesse cenário, ou melhor, é com esses mentefatos culturais, que
ocorreram as revoluções científicas.
Esse
contexto tem determinado um dogmatismo disciplinar à chamada ciência moderna
que, neste texto, se quer discutir. Um quadro-síntese poderia ser assim
desenhado.
Houvesse ainda censura
às publicações, um censor mais rigoroso não daria um ‘imprimatur est’ a
este texto nesta revista*. No entanto, contrariamente ao que possa parecer, não
alço aqui a bandeira da iconoclastia, pois mesmo que proponha a
indisciplinaridade, aceito a existência de disciplinas. Aqui e agora, reafirmo
algo, não sem certo constrangimento, pelas continuadas limitações que as
considerações já trazidas em outros textos e, especialmente, em dezenas de
palestras que trazem como título: Das disciplinas à Indisciplina. As
análises que apresento prosseguem sendo um recorte apenas de leituras do mundo
ocidental. Nesse recorte, a partir do dito nascimento da ciência moderna no Século
16, o conhecimento se faz cada vez mais disciplinar. Esse alerta é preciso,
pois nós, com nosso autocentramento, continuamos, por diferentes razões, sendo
umbigocêntricos, marcados talvez pelo nosso forte DNA grego. É preciso recordar
que, para nossos ancestrais helênicos, quem não falasse grego era bárbaro. Mais
uma vez, interrogantes aportam fortes: quem é o Oriente? Quem é Ocidente?
Parece pouco crível o quanto o Ocidente ainda parece ser sinônimo da
cristandade (não na acepção dicionarizada de maneira corrente: conjunto dos
cristãos, mas num recorte geográfico, isto é: ocidente é a Europa e as terras
por ela colonizadas. Assim, parece ficar estabelecido o ocidente como uma
circunscrição definida quanto à territorialidade e, por conseguinte, fica
esclarecido qual o entendimento de civilização europeia. É usual, ao nos
envolvermos com a história da ciência e de uma maneira mais ampla com a
história da construção do conhecimento, centrarmo-nos quase exclusivamente no mundo
ocidental e o fazermos sob a ótica eurocêntrica, e esta alimentada por nossos
olhares brancos, masculinos, cristãos... Pouco sabemos de como ocorreu a
construção do conhecimento em diferentes culturas no oriente. Ainda hoje, por
exemplo, filmes ambientados na China ou na Índia, apenas para referir aos dois
países orientais mais populosos, trazem-nos surpresas. Mesmo nos dias atuais,
conheçamos muito pouco, por exemplo, da educação na China, apenas para referir
a um país onde vivem cerca de um quinto dos humanos. Aliás, poderia retratar o
ápice de nossa presunção de falar dos outros, citando Edward W. Said (2007)**. O
reconhecido pensador palestino mostrava que o oriente, mais que uma concepção
geográfica, engloba tudo que não sejam as civilizações europeias. E esse
oriente é uma invenção do ocidente. É preciso considerar que esse ocidente,
balizado inicialmente sob o poderoso Império Romano que, mesmo quando sai de
cena quase esfrangalhado no Século 5º, deixa um legado portentoso que
garantiria hegemonia: o latim. Originário da região itálica do Lácio, o latim é
uma das marcas mais imponente do ocidente. Como língua oficial do Império
Romano, ele é imposto aos colonizados. Talvez, o melhor exemplo disso é o latim
substituir o grego quando Roma coloniza a Grécia, dois Séculos antes da Era
Cristã, quando os romanos latinizam a filosofia grega e os deuses (Zeus passa
ser Júpiter e assim todo o panteão de divindades gregas são convertidas a
divindades romanas). Igualmente acontece no norte da África: em Alexandria, a
resistência de Hipátia é um exemplo. As nascentes do direito, da filosofia, da
ciência, da literatura e, de maneira especial, da religião são em latim. Mesmo
com o esfacelamento do latim em mais de uma dezena de línguas românicas (como,
por exemplo, o português), este segue como a língua oficial (e o garantidor da
catolicidade) da igreja romana até o Concílio Vaticano 2º (1962-1965). Ainda na
segunda metade do Século 20, o ensino da filosofia em escolas seminarísticas
era feito em latim. Até o Concílio Vaticano, toda liturgia da igreja católica
romana, para todos os fiéis, era em latim.
Por ora
paramos aqui. Há episódios sumarentos porvir.
*A referência
é ao artigo disponível na rede e que serve de fonte a este blogar: CHASSOT, Attico. Do Rigor Cartesiano
Disciplinar à Indisciplinaridade Feyerabendiana. Quím. nova esc. São Paulo SP
Vol. 38, N° 2, p. 127-132, MAIO 2016.
**SAID, E.W. Orientalismo - o oriente como invenção do ocidente.
Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
Aguarde o segundo episódio de POR QUE UMA CIÊNCIA
INDISCIPLINAR?
Bom dia Mestre. Bom domingo e bom São Pedro(este dentro das tradições cristãs católicas). Sempre aprendo muito com o Sr. desde o livro e palestra na (UESC-BA) Alfabetização Científica; senti-me então partícipe da citação menos educador químico e mais alfabetizador científico, no seu escrito inicial do texto postado. Enquanto professor da educação básica (ensino médio), tenho procurado potencializar (dentro de minhas humildes possibilidades) a "indisciplina" quando dou aulas de química. Obrigado pelo presente de sempre. Para não perder o costume, aqui vão os costumeiros abraços virtuais de minha "turma": Alana, Lorena, Larissa e eu.
ResponderExcluirSaudações solidárias, amigo Chassot! Apesar de temperatura despencada em Sorocaba, a energia humana, como resistência à imbecilidade, arde! Quando penso na Ciência Indisciplinar, sinto-me alimentado, porque não suportaria conviver com a pesquisa e o pensamento cerceados, presos e oprimidos, sem que pudessem revelar-se e descortinar as verdades observadas, ainda que temporárias, mas que refletem, cada uma, seu tempo próprio, suas interrogações e conflitos, seus contextos e esperanças. É possível avançarmos em meio à ganância por lucro e poder? Sem dúvida, porque assim como as sementes na terra da Terra, também os saberes alcançados não podem ser impedidos de explodirem em descobertas. Ainda que um só traidor tenha mais força que um povo, jamais será esquecido, até que seja derrubado: em menção à belíssima canção "Solo le pido a Dios", de León Gieco, nas belíssimas vozes de Bete Carvalho e Mercedes Sosa. Meu abraço, agora, no inverno!
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