A segunda semana do letivo 2015/2 já
chega à metade. Nesta sexta e sábado tenho as primeiras aulas de dois seminários
no Mestrado Profissional de Reabilitação e Inclusão. Na noite desta quarta
profiro a aula inaugural para alunos dos cursos de Engenharia do Centro
Universitário Metodista do IPA. Vou com eles tentar assestar óculos para olharem
o mundo.
Mas esta data é muito especial na minha
história. Faço uma homenagem
muito especial para Maria Clara Volkweiss Chassot (12AGO1909—10SET2001), a
minha mãe. Hoje, ela faz 106 anos, mesmo sepultada no bucólico cemitério do Faxinal,
em Montenegro, no momento que ruíam as torres do WTC em Nova Iorque, o verbo é
no presente (ela faz), pois adiro à tese, que uma pessoa só morre quando a
esquecemos. Ela está aqui. A vejo muito comigo na saudade, especialmente neste
seu dia natalício, que catalisa tantos evocações de temos já distantes. Adiro
ao poeta que diz 'A saudade é a memória do coração’.
Alguém,
nascido no último quartel do Século 20, se for evocar, a um tempo, a figura
materna, muito provavelmente não o faria no mesmo cenário que eu escolho. Parece natural que nessa blogada, rememore coisas de minha
infância, pois são essas que nos fazem mais filhos, isso é mais próximos da
figura materna.
Hoje,
em para recordações de minha mãe, elejo a cozinha para embalar o passado. Esta,
muito provavelmente, é o local de nossas casas que mais modificações sofreu no
espaço de uma ou duas gerações. Rubem Alves, o educador-poeta, fala em uma
cozinha “lenta, erótica, lugar onde a química está mais próxima da vida e do
prazer, cozinha velha, quem sabe com alguns picumãs pendurados no teto,
testemunhos de que até mesmo as aranhas se sentem bem ali”. Esta só mais existe
em nossos sonhos.
A casa de hoje,
se comparada com a casa de nossas bisavós ou até de avós apresenta muitas
modificações. Mas, se uma destas nossas ancestrais entrasse em nossas casas
hoje, muito provavelmente em nenhuma dependência se acharia mais estranha que
em uma de nossas assépticas e inodoras cozinhas hodiernas, na qual o
onipresente fogão à lenha foi substituído por discreto forno de micro-ondas.
Visitemos uma
cozinha do começo da segunda metade deste século. E vejam o quando meu retroceder
temporal é pequeno... Nossas primeiras surpresas serão os odores. O fogão à
lenha, com um crepitar que começava ainda de madrugada e se estendia, quase
ininterruptamente, até noite adentro, quando, terminados os afazeres, a família
se reunia junto ao mesmo, para, na evocação do passado, transmitir aos mais
jovens a história dos ancestrais. Quanto a televisão hoje castra a transmissão
das histórias orais (e das escritas)!
Só o fogão
determinava uma série de fazeres domésticos que hoje inexistem. Uma das últimas
tarefas da noite era arrumar o fogo para o dia seguinte. Havia rituais. Duas
achas de lenha em cada lado da pequena fornalha, no meio destas maravalhas e
sobre estas, lenha fina. Nesta simples descrição há alguns trabalhos. A lenha
era adquirida em pedaços, de cerca de um metro, e era serrada, em casa, em
achas menores. Cada pedaço originava quatro achas. As maravalhas – resultantes
do aplainar a madeira – eram requisitos preciosos. Eu era filho de marceneiro,
logo tínhamos produção própria de maravalha. Outros havia que precisavam buscar
em alguma marcenaria. Um sucedâneo era o papel, mas é preciso recordar que a
assinatura de jornais era bastante incomum, e, assim, jornais ou mesmo papéis
velhos sempre eram aproveitados para outros fins e menos usados como combustíveis.
O preparo da lenha fina (ou gravetos) era faina que tinha suas exigências.
Outro trabalho
noturno, que acontecia sob o olhar vigilante da mãe, ao final das lides, era o
escolher o feijão. Uma tarefa muito exigente, também destinada aos mais jovens,
pois se precisava ter um bom olho, para saber descartar aquilo que era
impróprio para cozer. Havia sempre muita terra, restos de vegetais, grãos
estragados e sementes estranhas. Estas sempre despertavam minha curiosidade.
Mas era desestimulado a plantá-las, pois poderiam ser algum inço daninho. A
eficiência do escolhedor era medida pela quantidade e variedade de rejeitos que
ele apresentava no final da sua faina. O feijão, depois de escolhido, ia para
uma bacia, usualmente de barro, onde ficava de molho até a manhã seguinte.
Quando o feijão era colocado de molho, vinha mais um teste para verificar a
habilidade do catador. Se houvesse materiais sobrenadantes, como grãos chochos
ou algum resto foliar, é que a escolha não fora bem feita. Vale referir que o
feijão era o prato diário, sendo os almoços de domingo distinguidos pela
ausência do feijão, o que trazia a conotação festiva aos mesmos
Outra lide desta
hora da noite, conhecida como “depois da janta”, era algo que na minha casa
ocorria nas noites de terças e sextas-feiras: o amassar o pão. Esse era um
trabalho materno. Era algo que tinha muito ritual. Tínhamos uma grande gamela
de madeira, feita pelo meu pai. Nesta eram colocadas as rigorosas medidas de
farinha. A estas se adicionavam água, sal, ovos e o ingrediente que para mim
era mágico: o fermento. Sua eficiência garantia algo importante: o pão não
ficaria embatumado. O crescer da massa era algo bonito. Nas noites frias a
gamela precisava ser coberta, para as magias não escaparem. Havia frustrações,
nas madrugadas, quando a massa não crescia. Às vezes, acontecia algo
imprevisto. A massa crescia demais e transbordava. Talvez, foram as
interrogações sobre a magia do fermento que me fizeram professor de Química.
Havia, em datas
especiais, preparativos diferenciados na padaria doméstica. O pão sovado era
apenas para certos dias. O sovar o pão tinha também ares de encantamento. As
roscas eram produzidas nos períodos nos quais a colônia produzia o polvilho. A
qualidade das roscas atestava também a competência do produtor do polvilho. As
cucas eram somente para algum aniversário ou festas religiosas. Em função da
temporada as cucas podiam ser de laranja ou de uva. As passas e os adornos
solenizavam os acontecimentos.
Nas manhãs de
quartas e sábados bem cedo o forno estava em brasas, e depois assistíamos ao
ritual de enfornar as diferentes formas com os pães. Esta operação jamais era
delegada pela mãe. Havia necessidade de precisão. O forno de barro era algo
presente na maioria das casas, mesmo no perímetro urbano das cidades. Havia
ainda a alternativa de se usar o “forninho” do fogão à lenha. O pão feito em
padaria comercial era algo tão raro, que a eventualidade parecia uma festa,
pois sua marca mais característica era não ter a côdea, usualmente mais dura,
dos pães caseiros.
Em todas essas
tarefas – e em muitas outra como a criação de galinhas e de um porco, a lavação
da casa e da roupa, como a costura de todas as roupas, que ainda quero evocar
em outro dia – a figura da mãe era onipresente.
Evocar e narrar esses fazeres é lembrar com
saudades minha mãe. Nossos filhos e netos evocarão mães professoras, médicas,
engenheiras, arquitetas, advogadas, pesquisadoras... os de minha geração
certamente lembrarão a mãe que nas celebrações laudávamos como ‘a rainha do lar’.
E é a esta que homenageio, aqui e agora.