ANO
14 |
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EDIÇÃO
3463
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Esta é a última edição de 2019. É a 49ª do ano. O editor deste blogue,
com todo respeito aos seus leitores, se auto concede um recesso até a segunda
quinzena de janeiro.
Não vou repetir, uma vez mais, as dificuldades que se vive neste
ano, mormente, na área da Educação. Temos que resistir. Sabemos ser resistentes.
Como o período convida a fraternidade, desejamos tempos de paz.
Estou em trânsito para Estrela para a comemoração do término do
ensino fundamental de meu neto Guilherme. Eu venho de Cuiabá, onde ontem,
19/12/2019 foi a defesa da tese doutoral da Professora Patrícia Rosinke (UFMT/campus Sinop) que no dia 18/11/2019, depois de
ter sido submetidas em duas pré-qualificação, nos Seminários 1 e 2 em Manaus em
2018 e 2019, então, teve aprovada a tese que examina o quanto são tênues os
limites entre o sagrado (religião) e o profano (ciência) — ou entre o ensino de
ciências e o ensino religioso. Mais detalhes estão na edição de 22 de novembro.
Na tese, dentro de uma proposta, que parece original, a
doutoranda entretece diálogos com textos do orientador. Dentre estes textos, há quatro contos
ficcionais, um para cada um dos quatro elementos: Ara, Água, Fogo e Terra.
Na celebração da destes tempos de Paz, ofereço aos meus leitores
o conto do elemento Terra, que mesmo ficcional é polêmico, mas, talvez possa
ser inspirador.
Lilith revisita Terra que fora edênica
Mathilde Aguillar Martínez*
E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo
dos céus num lugar; e apareça a porção seca; e assim foi. E chamou Deus à
porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mares; e viu Deus que era
bom (Gn, 1: 9.10).
Estar no terceiro milênio da era cristã não
nos faz imunes aos mitos antigos, em cuja sombra se tecem fantasias, lendas e
inclusive cosmogonias com sabor atual.
No romance Caim, Saramago destaca a figura
de Lilith – esposa de Noah, das terras de Nod –, a quem destina o papel de
iniciar a Caim na arte amorosa e com quem teria um filho: Enoc, bisavô de
Matusalém.
Todavia, há outra Lilith, uma que
permaneceu quase desconhecida e que forma parte dos mitos antropogênicos.
Segundo a Cabala judaica, Lilith foi a primeira
mulher, criada igual como Adão. Eva seria uma criação posterior, produto de uma
costela do varão.
No sexto dia do primeiro relato da criação,
Deus cria o homem a sua imagem e semelhança “Macho e fêmea os criou” (Gn 1:27).
Esta narração refere ao primeiro casal humano que teve origem similar.
No segundo relato da criação, Deus forma o
homem com pó da terra — um dos elementos primordiais — e lhe infunde alento de
vida. Para que não esteja só e o ajude, faz um ser semelhante a ele de sua
costela e forma a uma mulher, de quem o homem diz: “Esta é agora osso dos meus
ossos, e carne da minha carne; ela será chamada varoa (virago), porquanto do
varão foi tomada” (Gn 2:23).
Enquanto no primeiro relato a fêmea
(mulher) é reflexo de Deus, no segundo, é reflexo do homem.
Por que o Gênesis refere duas criações?
Alguns consideram que os versículos são reiterativos e dão a conhecer um mesmo
feito de uma maneira diferente.
Outros, diferentemente, aduzem que no
primeiro relato alude à criação de uma primeira mulher: Lilith, cujo nome se
relaciona com a palavra hebraica lailah, que significa noite.
Lilith se torna o par de Adão, com quem
comparte um mesmo gérmen ontológico. Teria uma personalidade forte e emancipada
que faz com que se associasse com lado escuro e com a malignidade.
Segundo a tradição judaica, Lilith se opõe
a aceitar a postura amorosa que Adão desejava — deitada e por baixo — por se
considerar igual. Como Adão quis obrigar-lhe a obedecer, ela o abandona,
deixando o Jardim do Éden.
Eva, em troca, assume uma atitude mais
submissa, menos crítica. Por originar-se da costela de Adão, está sujeita a seu
domínio. “... e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará” (Gn
3,16).
Lilith e Eva poderiam ser os arquétipos de
um duplo feminino: a maldade versus a bondade, a obscuridade versus a luz, a
dureza versus a doçura, a mulher-demônio que se opõe à mulher-mãe.
A primeira se orienta ao egoísmo, a
autogratificação, ao prazer sensual; a segunda ao sacrifício, à união
espiritual e à procriação. Extremos dos opostos: demônio/santa, rameira/virgem,
que tem categorizado e estigmatizado o mundo feminino.
Sem dúvida, uma e outra compartem de ter
desorientado ao homem e até se pode pensar, serem mais potentes que ele.
Potência ligada em parte à falta de compreensão que o homem tem do feminino.
Lilith enfrenta a Adão e o abandona como
uma forma de emancipar-se; não se submete, o desafia. Eva o faz transgredir: é
a autora intelectual do pecado original, sua força reside má sedução passiva.
Segundo uma velha tradição, Lilith seria
uma figura sedutora, de longos cabelos, que voa à noite, como uma coruja, para
atacar os homens que dormem sozinhos. As poluções noturnas masculinas podem
significar um ato de conúbio com a demônia, capaz de gerar filhos demônios para
a mesma. As crianças recém-nascidas são as suas principais vítimas. A crença em
Lilith, durante muito tempo, serviu para justificar as mortes inexplicáveis dos
recém-nascidos. Uma forma de proteger as crianças contra a fúria da bela
demônia é escrever na porta do quarto os nomes dos anjos enviados pelo Senhor.
Outra maneira é a de afixar no berço do recém-nascido, três fitas, cada uma
delas com um nome de um anjo. À véspera do Shabat e da Lua Nova, quando uma
criança sorri é porque Lilith está brincando com ela. Afirmava-se que, na Idade
Média, era considerado perigoso beber água nos solstícios e equinócios,
períodos estes em que o sangue menstrual de Lilith pinga nos líquidos expostos.
Aos olhos masculinos, a mulher é em si
mesma a caixa de Pandora: enigma indecifrável e fonte do mal.
Se a mulher foi melhorada – produto de um
upgrade ou turbinada –, o homem não? Poderia se pensar que assim como se deduz
ter havido uma Lilith do primeiro relato possa ter havido outro primeiro homem?
Do ponto de vista antropológico, o Gênesis
é um mito de origem que busca explicar o surgimento do primeiro homem e como
tal não difere muito de outros mitos, integrantes das diferentes cosmologias
existentes.
Devido a maior agudeza da psicologia
feminina, o crítico literário Harold Bloom formula a hipótese que alguma parte
inicial da Bíblia foi escrita por uma mão de mulher.
Se bem que os desígnios de Deus são
inescrutáveis, nós, suas criaturas, nos encarregamos de interpretá-los.
Para saber mais: Jardim do Éden revisitado
in Rev. Antropol. vol.40 n.1.São Paulo, 1997
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77011997000100005
*Mathilde Aguillar Martínez é doutora em
História pela Universidade de Louvaina e Professora da Universidade Hebraica em
Bogotá. É de fé judaica, mas não manifesta adesão formal a práticas de vertente
de judaísmo ortodoxo. Email: mathiguima@gmail.com