Num dia deste
janeiro que se esvai, um professor, que só conheço de parceria de leituras, mandou-me uma interrogante mensagem. Sérgio Henrique Bezerra de Sousa Leal, do Centro
de Ciências Naturais e Humanas da UFABC escreveu:
Boa
noite! Já havia lido em seu blog que tem um diário íntimo e, no momento, estou
lendo seu livro "Memórias de um Professor", onde também cita tal
prática. Uma dúvida que me surgiu: porque utiliza o diário convencional sob a
forma de papel e não um arquivo digital, como, por exemplo, no word, onde
conseguiria digitar mais rápido, anexar fotos etc. Pergunto isso porque também
tenho o hábito de escrever diários e o faço sob a forma digital e nunca havia
cogitado em fazê-lo da forma convencional. Grande abraço, Sérgio.
O tema me
empolga. Já escrevi mais de um artigo sobre o assunto. O mais recente Chassot, A. (2005). Escrever
diários como uma forma de colecionismo. Episteme,
10 (20), 55-70. Nem sempre
está acessível no Scielo, mas posso enviar a quem desejar. Um dia uma agenda exigente
determinou uma resposta despretensiosa.
Muito
caro colega e amigo Sérgio, realmente conservo — ou melhor: tento — o hábito de
calígrafo e faço diário suporte papel. Estou no trigésimo volume — desde 1983,
na me falta nem um dia.
No
meu viés colecionista o ponderável faz diferença. É o momento de exercitar a
escrita. Há dias que fazer o diário é o único momento que escrevo algo em
suporte papel.
Tua
pergunta me faz interrogante. Sucessos ao piauiense arranchado no ABC.
Com
admiração attico chassot
Minha resposta
poderia se mais completa. Poderia ter contado que tenho páginas escritas em UTI
— antes da cirurgia peço para colocar o dispositivo por onde entra o soro na
mão esquerda. Mas mesmo assim o Sérgio foi elegante:
Prof.
Chassot, realmente parabéns pela disciplina de escrever diariamente e ainda
preservando o hábito de escrever em suporte de papel. É algo tão interessante
que até me fez questionar se não é hora de também voltar ao hábito de escrever
em papel. Grande abraço, Sérgio
Quando,
autorizado pelo Sérgio, pensei em contar este diálogo, ocorreu-me convidar um
tertius para palpitar: Zygmunt Bauman*. Claro que ele nos supera fácil. Mas dá
brilho a nossa conversa quando nos conta porque e como escreve:
Um
dia sem escrita parece um dia perdido ou criminosa abortado, um dever omitido,
uma vocação traída.
Prosseguindo,
o jogo das palavras é para mim o mais celestial dos prazeres. Gosto muito deste
jogo — e o prazer atinge os píncaros, quando reembaralhadas as cartas, meu jogo
parece ser fraco e preciso forçar o cérebro e lutar para preencher as lacunas e
superar as armadilhas. [...]
Outro
motivo: sinto-me incapaz de pensar sem escrever.
Imagino
que seja primeiro um leitor e depois um escritor. Pedaços, retalhos, fatias e frações
de pensamentos em luta para nascer, suas aparições fantasmagóricas/ espectrais
rodopiam, comprimindo-se, condensando-se e novamente se dissipando; devem ser
captados primeiros pelos olhos. Antes que se possa detê-los, coloca-los no
lugar e lhe dar contorno. Primeiro precisam ser escrito em série para que um
pensamento razoavelmente bem-acabado possa nascer, ou se isso falhar, ser abortado,
ou enterrado como natimorto. [...]
Por
fim, embora não menos importante, suspeito que eu seja um grafômano, por
natureza ou criação... Um viciado que precisa de mais de uma de suas doses
diárias ou que se arrisca até as agonias da abstinência. Ich kann nicht Anders (Não posso fazer diferente). Esse
provavelmente é o motivo profundo, aquele que torna a busca por motivos tão
desesperada e inconclusiva quanto inescapável.
*Isto não é um diário, p. 8, Rio de Janeiro: Zahar, 2012.