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sexta-feira, 15 de maio de 2020

15MAIO2020 E o real se faz virtual que se faz real


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E a quarentena se espraia, parecendo ilimitada... já completamos oito semanas. Ainda, de vez em vez, somos arrostados a mares brumosos. Não vislumbramos faróis passiveis à orientação. Há tênues indícios de terra à vista.
Houve fabulosa exceção. Nesta quarta-feira, vivi momentos fora da curva. Este 2020 custou a deslanchar, mas nada fazia prever que seríamos lançados em tempestades. Depois de magros janeiro e fevereiro, março entra em cena prenhe de esperanças. Na primeira quinzena tive duas viagens à Amazônia.
A 11ª viagem de 2019 à Marabá, em dezembro, já parecia remota. No bissexto 29 era para reinaugurar minha itinerância. Porém... pela primeira vez, voltei de um aeroporto por ter perdido um voo por minha culpa. Foi osso duro à roeção. Mesmo com multa muito salgada, só viajei 24 horas depois. Cheguei à madrugada de segunda-feira em Marabá. No mesmo dia proferi a aula inaugural para os mestrandos da terceira turma do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Unifesspa. Também nesta primeira estada em Marabá 2020, me reuni coletiva e individualmente com meus quatro mestrandos da Unifesspa e foi planejado um seminário: A arte de escrever Ciência com Arte.
Retorno a Porto Alegre no sábado e na semana seguinte viajo à Manaus, aonde proferi quatro aulas inaugurais na Universidade Federal do Amazonas: duas na Faculdade Medicina e duas no Instituto de Ciências Biológicas. Ainda na UFAM, houve lançamento de livro Sabores que sabem à Extensão do qual sou coautor, junto com a Profa. Dra. Irlane Maia, que orientei no doutoramento.
Vencido, com galhardia a primeira quinzena de março, o (in)esperado ocorre.
Como antes já escrevi aqui: “Em fevereiro apareceram rumores de novo vírus. Não sabíamos o nome. Era lá no outro lado do mundo, no Oriente que povoa nosso imaginário como algo díspar deste ‘maravilhoso’ Ocidente. Houve carnaval no qual se obliterou os tempos viróticos.”
Mas, na segunda quinzena de março tudo mudou. Pandemia [uma doença com distribuição geográfica internacional muito alargada e simultâneauma palavra infrequente no nosso cotidiano, agora se faz senha para assustar pessoas, esboroar agendas, aprisionar viventes, fazer prognósticos tétricos e muito mais.
Minha agenda está derruída. A minha e a de meio mundo.
Na segunda quinzena de março numa agenda vazia, paradoxalmente, nada cabia. Num abril, que parece nunca acabar, se repete o mesmo. Todos os convites a palestras são transferidos. Isto se repete com os compromissos de maio. Não há nada previsto para junho. Se diz, talvez em julho, mas o mais provável em agosto ou mais adiante. Eventos há muito agendados, agora não tem sequer previsão.
Mas não há mal que sempre dure. Nesta quarta-feira, o 13 de maio teve muito mais que lembrar uma dita abolição da escravatura ou início das aparições em Fatima.
Atendo convite da III Semana de Química da Universidade Federal do Cariri, câmpus Brejo Santo: transformar a palestra que fora agendada como presencial em virtual. Acolho sem qualquer preocupação. Com muita antecipação envio a apresentação. Sou despreocupado. Parecia que cumpriria uma rotina... apenas quebrando um jejum de dois meses de vacuidade.
À véspera parece que cai a ficha (metáfora que nos remete a algo agora démodé: quando num orelhão ouvíamos cair a ficha e se estabelecia a ligação). Estou mexido de maneira excepcional. Remexo na palestra. Busco a recomendada inserção no contexto. Vou a Universidade Federal do Cariri. Adito (na acepção de tornar feliz) uma homenagem a escritora, cordelista, poeta Jarid Arraes, a “jovem mulher do vale do Cariri que faz literatura retirante". Dela recordo o livro Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis.
Chega a quarta-feira. Sou insone à madrugada. Tenho a densa sensação que estarei de maneira presencial em Brejo Santo. Nego à pandemia a autoridade de ela nos transmutar em seres virtuais. O dia se esparrama imenso. Confundo-me. Sou real. Sou virtual.
Não me permitia ficar nervoso. Olhei 2019: estive em fazeres acadêmicos, em 21 universidades das quais 4 em São Paulo [USP, Unicamp (2) UNESP (4 São Carlos e Bauru) e UFSCAR] e em oito na região amazônica Pará (3), Amazonas (2), e Macapá (2) e Mato Grosso quando realizei 52 palestras, (incluindo bancas, mesas redondas e minicursos). É... mas então, não era virtual.
Buscava lembrar-me, das várias vezes, que entrara virtualmente em distintas salas de aula para discutir Diálogo de aprendentes[i], um dos meus que mais curto.
 Estava muito atrapalhado. Sentia-me um debutante, como aquele que suando frio deu sua primeira aula em 13 de março de 1961.
 Tentava fazer de uma porção de minha biblioteca o lócus que me permitisse estando aqui, estar lá. A meta era me organizar para falar em pé. Não sei falar sentado.
Tudo parecia exótico. O horário aprazado — 18 horas — não chegava nunca.
Depois de dezenas de minutos que pareceram horas chego ao Cariri. Sinto-me um alienígena.
Imagem: Danila F. Mendonça
Então uma sensação inusual: chegam comigo à UFCA gente de todo Brasil. Foi uma sensação fantástica ‘ver’ conhecidos e desconhecidos, que identificavam sua pertença a Universidades e Institutos Federais de todo estados do Brasil. E eram centenas em uma e outra plataforma (UFCA e YouTube). Então não era mais um alienígena. Era um indígena na minha tribo, com mais de meio milhar envolvidos o nas Ciências.
Finalmente o Prof. Dr. Alessandro Cury Soares, do Instituto de Formação de Educadores da UFCA, dá a partida. Parece que então me acalmei.
Falei cerca de 1,5 hora. Era muito exótico. Não via ninguém. Numa palestra presencial sempre elejo duas ou três pessoas dentre as que identifico como aprovadoras de minha exposição. Isto faz diferença. Também não se ouve a plateia rir a um chiste ou aplaudir uma anuência.
Às perguntas senti-me cansado.
Houve uma surpresa. A primeira pergunta foi do Élcio, um escritor de Sorocaba. Um e outro nos conhecemos apenas virtualmente ou por livros trocados. As questões trazidas foram difíceis e pareciam não terminar nunca, mesmo contendo elogios.
Quando me desconectei, ao descer ao piso inferior de minha Morada dos Afagos, algo muito estranho. Vivi a sensação de estar chegando de uma viagem, como se nas últimas 2,5 horas estivesse ausente de meu ninho.
 Afortunadamente então fui trazido para o mundo real por chamadas no WhatsApp de pessoas queridas. Diziam da apreciação à fala.
Preparei uma janta e com um reserva chileno. Solenizei o feito de centenas de mulheres e homens — que mesmo vivendo em país desgovernado por um genocida — sabem que resistir é preciso.
Ontem, quinta-feira, foi o legítimo day after. Estava derreado física e emocionalmente. Mas, prenhe de gostosas emoções por ter estado no Vale do Cariri e encontrado a minha tribo que comigo são parceiros na busca de mundo mais justo e mais igual.
[1] CHASSOT, Attico. Dialogo de aprendentes, in MALDANER, Otavio Aloisio (Organizador); SANTOS, Wildson Luiz Pereira dos (Organizador). p. 23-50 Ijuí: Ensino de Química em Foco Editora Unijuí, 2010, 368 p. ISBN 978-85-7429-888-7
Existe uma 2ª edição de 2019.






7 comentários:

  1. Mestre, o senhor é único! Seu brilhantismo vai além do plano físico. Tenho orgulho de ser considerado um amigo seu. Parabéns por mais essa palestra! Cuide-se! Receba meu abraço (remotamente) mais fraterno.

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  2. Um Noite memorável das LIVES que estão aí para nos catalisar neste momento difícil. Mas prá mim o melhor desta LIVE é ouvir a uma abordagem repleta de Cultura e Conhecimento Científico, depois de ouvir bandalheiras e afirmações estapafúrdias de um Governo que mais parece um Grande Hospício... Obrigado meu Caro CHASSOT por nos brindar com sua fala...

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  3. Que lindo esse relato. Parabéns, querido Áttico!!

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  4. Meu amigo, foi um grande prazer estar presente nesse momento!
    Nada comparável ao prazer de conversarmos entre as tuas palestras ou no carro entre as idas e vindas aos hotéis e ao aeroporto. Muitas saudades!
    Entretanto, é merecido pontuar que os espaços virtuais podem e devem ser espaços de resistência. Sem investimento e com cortes, as instituições padecem e perdem a oportunidade de propiciar esse momento rico que a sua generosidade e sapiencia sempre proporcionam.
    Talvez fosse mesmo necessário um vírus para ensinar que é possivel quebrar o engessado. Hoje, me parece muito mais palpável até mesmo aulas compartilhadas entre as instituições, com grandes nomes que ensinam como se luta por uma sociedade melhor, como fazes com maestria.
    Forte abraço!

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  5. Não estive presente, mas apraz-me ler teu relato. Meu grande abraço com votos de que possamos nos rever em breve em algum lugar dessas tuas paragens.

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  6. Muito bom domingo a ti, amigo Áttico! Não imaginas a nossa alegria - de Adriana e minha - em vê-lo ali, ao vivo, falando de tua "Morada dos Afagos", para nós no distante Rio Grande do Sul, Porto Alegre, que ainda não conhecemos e que, ao mesmo tempo, estava a um metro de distância virtual. Quando dizes que meio mundo estava em tua mesmíssima situação, devo dizer que a outra metade também. Gosto da metáfora dos óculos. Num escrito que fiz, usei o neologismo "árculos", para lembrar a forma de arco como círculo nos óculos. Foi um privilégio ouvi-lo. Tuas palavras me provocavam a refletir sobre as paixões - saudáveis e nefastas - de quem defende determinada ideologia como dogma. Receio por tal conduta, ainda que queira o bem para a maioria, ao menos, no que apresenta. É preciso, sempre, reavaliar o que nos move, afinal, crimes volumosos e medonhos foram planejados e executados por apaixonados em suas formas mais diversas. Foi nesta linha a minha questão a partir da(s) ideologia(s). Compartilho de teu cansaço, porque também assim me sinto quando fazemos as "Lives" de leitura para as crianças das escolas que estão no mesmo isolamento. Às vezes, olhando da janela ou do portão, me pergunto: será verdade, mesmo? Não é fácil acreditar que chegamos nisso, mas o isso já está posto. Ou sobrevivemos ou desaparecemos. A lei da Natureza é implacável! Por aqui, vamos com as escritas de volta ao nosso Saci-Pererê, volume 2 e outros. Mantendo estes contatos nos sentimos vinculados na alegria de que em qualquer reencontro, o sorriso substituirá, inicialmente, todas as palavras. Com um apertado abraço, hoje, virtual, desta Sorocaba que quer mais chuva e menos frio.

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