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segunda-feira, 2 de julho de 2012

02.- A ESCRITA E O CUIDADO DE SI



Ano 6*** WWW.PROFESSORCHASSOT.PRO.BR ***Edição 2161
Vivemos já o primeiro dia útil da segunda metade de 2012. Ontem ao inaugurar este hemi-ano, dizia que julho é um mês muito especial aqui. No dia 30, este blogue completa seis anos de publicação diária.
Dentro da proposta de celebrações está falar da escrita. Hoje trago um excelente texto para inaugurar as comemorações. O autor é Antonio Ozaí da Silva, editor da REA – Revista Espaço Acadêmico de onde foi retirado, com autorização. Parece ser fácil encontrar identificação com o presente que ensejo hoje para quem escreve diários — em suporte papel — há mais de 28 anos e vem de publicar o livro Memórias de um professor: hologramas desde um trem misto.
Vale deleitar-se com A escrita e o cuidado de si 
Há muito tenho o costume de anotar. É uma forma de conversar comigo mesmo. Não imaginava que um dia teria a possibilidade de fazer um diário virtual. De onde vem essa necessidade de registrar sensações, acontecimentos e coisas que nem sempre podem ser compartilhadas? Por que não deixar que a mente faça o seu trabalho e sobrevivam apenas as memórias que selecionou? Por que o apego ao passado? Sim, porque registrar é tornar possível o acesso às lembranças que o pensamento já deletou.
Por outro lado, anotações podem ser um perigo. Como escreveu Dostoiévski, há segredos que não contamos nem para nós mesmos. As palavras têm o poder de ferir e abrir feridas que parecem cicatrizadas. Há, porém, vantagens em anotar. Uma delas, quem sabe a mais importante, é aprender com as próprias reflexões. Ao escrever somos obrigados a estabelecer um diálogo interno e, assim, aprender racional e sentimentalmente. É também uma forma de dar vazão a algo que oprime.
Há ideias, pensamentos etc., que surgem no cotidiano. Anotar é uma maneira de poder retomá-los e desenvolvê-los. O sociólogo Wright Mills, a propósito, sugere que devemos cultivar o hábito de fazer anotações: registros de ideias, notas pessoais, excertos de livros, delineamentos de projetos, etc.[1] Manter um arquivo é, de certa forma, uma produção intelectual, mas é importante retornar às notas, ao “banco de ideias”. Talvez elas contribuam para o desenvolvimento de reflexões mais extensas. A prática de si implica a leitura, mas sem a escrita esta corre o risco de se tornar estéril. Como alerta Michel Foucault:
“Quando se passa incessantemente de livro a livro, sem jamais se deter, sem retornar de tempos em tempos à colmeia com sua provisão de néctar, sem consequentemente tomar notas, nem organizar para si mesmo, por escrito, um tesouro de leitura, arrisca-se a não reter nada, a se dispersar em pensamentos diversos, e a se esquecer de si mesmo”. [2]
Mills objetiva contribuir para a reflexão sobre a práxis da pesquisa sociológica. Ele pretende estimular a imaginação do sociólogo. Mas o exercício da escrita também pode ser uma maneira de refletir sobre a vida individual, afinal o intelectual é um ser humano como outro qualquer e, portanto, sujeito às dores e alegrias da condição humana. Anotar pode significar, simplesmente, a necessidade de registro da vida cotidiana, o cuidado de si. Já os antigos tinham o costume de manter arquivos com anotações sobre a vida pessoal, pública etc., aos quais denominavam hupomnêmata. Segundo Michel Foucault:
“Os hupomnêmata, no sentido técnico, podiam ser livros de contabilidade, registros públicos, cadernetas individuais que serviam de lembrete. Sua utilização como livro de vida, guia de conduta parece ter se tornado comum a todo um público culto. Ali se anotavam citações, fragmentos de obras, exemplos e ações testemunhadas ou cuja narrativa havia sido lida, reflexões ou pensamentos ouvidos ou que vieram à mente. eles constituíam uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas; assim era oferecidos como um tesouro acumulado para releitura e meditação posteriores. Formavam também uma matéria prima para a redação de tratados mais sistemáticos, nos quais eram dados os argumentos e meios para lutar contra uma determinada falta (como a cólera, a inveja, a tagarelice, a lisonja) ou para superar alguma circunstância difícil (um luto, um exílio, a ruína, a desgraça”. [3]
Escrever é se conhecer melhor. Às vezes, na solidão da existência, a leitura e a escrita tornam-se as únicas aliadas, uma forma de terapia. “Não é possível cuidar de si sem se conhecer”. [4] Como cuidar dos outros se não estamos bem? Por mais que sublimemos, estamos irremediavelmente sós em nossa própria consciência. Portanto, quanto mais e melhor nos conhecermos, maior a possibilidade de aceitarmos as limitações e as dores inerentes ao viver. Talvez seja o começo da superação…
[1] Ver o apêndice Do Artesanato Intelectual, in: MILLS, C. Wright. A imaginação sociológica. RJ, Zahar, 1982, p. 211-243.
[2] FOUCAULT, M. A escrita de si. In: MOTTA, Manoel Barros da (Org.). Ética, Sexualidade, Política: Michel Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 150.
[3] Idem, p. 147-148.
[4] Idem, p.269.
ANTONIO OZAÍ DA SILVA Professor do Departamento de Ciências Sociais na Universidade Estadual de Maringá (DCS/UEM), editor da Revista Espaço Acadêmico, Revista Urutágua e Acta Scientiarum. Human and Social Sciences e autor de Maurício Tragtenberg: Militância e Pedagogia Libertária (Ijuí: Editora Unijuí, 2008)

10 comentários:

  1. Caro Chassot,
    o texto do Antonio é muito instigante. Entendo que a escrita nos remete sempre a uma viagem para dentro de nós mesmos. Mas há outras formas de realizar essa viagem, uma inclusive que tem sido desestimulada e até negada pelo estilo contemporâneo de existir: a meditação.

    Um abraço,
    Garin

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  2. Meu querido companheiro, teu blog, além de oferecer tuas sempre frutíferas reflexões, também nos brinda com textos instigantes como este de hoje: a escrita de si que está implicada no cuidado de si, que é condição para o cuidado do outro. Foi muito inspiradora para mim a leitura do escrito de Antonio Ozaí da Silva! Um afago, Gelsa

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  3. Ave Chassot,

    belo texto. Cada dia que passa percebo mais a importância de escrever sobre o que penso, vivo e sinto.
    Parabéns pelo texto de alta qualidade do Antonio Ozaí.

    Excelente início de semana!

    Abraço afetuoso,
    Guy.

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  4. Na insistência da entropia da vida, tentar se organizar com pequenas monografias diárias é um ótimo remédio.

    abraços

    Antonio Jorge

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  5. Caro Chassot,
    Creio que todos temos a impulsão de fazer registro de nossas experiências, o que nos inibe é o que fazer com as anotações. Elas podem ser incômodas, patéticas e o que é pior, perigosas. Confesso que nunca tive coragem suficiente para encarar o "outro eu" escrevinhador, ele pode ser muito franco e me fazer passar vergonha. Abraços, JAIR.

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  6. Caro professor Chassot,obrigada pela sua atenção.Voltei com mais tempo para ler em seu espaço.Fiquei analisando, no bom sentido seu texto "A escrita e o cuidado de si",achei extremamente interessante seu conselho,escrever sobre nós,para nós...Penso ser uma volta ao meu interior,uma pequena parada para tornar a respiração perspectível,pois a fazemos sem sentir.Gostei muito da leitura que fiz aqui.Obrigada!
    Um grande abraço!

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    1. Estimada Marli,
      de acordo com tuas observações, porém uma grande ressalva: o texto NÃO é de minha autoria.
      O autor é Antonio Ozaí da Silva, editor da REA – Revista Espaço Acadêmico, de onde foi retirado, com autorização. Quisera ter essa erudição.
      O assunto prosegue amanhã com um texto meu,
      attico chassot

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Querido Tio e Guru

    Eu e a Michele nos deleitamos com a leitura deste blogue. Como educadores, e pretensos escritores-poetas nos identificamos com cada linha.

    Obrigado pelo seu blogue. Tua escrita nos alimenta a alma.

    Abraços com saudade e renovada admiração.



    Dos teus sobrinhos Daniel e Michele.

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  8. Queridos Daniel e Michele,
    hoje o pequeno mérito que tenho nesta edição é ter achado e me encantado com o texto que transcrevo
    Um afago em uma e outro

    attico chassot

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