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sexta-feira, 31 de março de 2023

Seleta acerca dos quatro elementos: Um posfácio

ANO 17*** 31/03/2023***EDIÇÃO 2078

Na edição (17MAR2023) publicou-se aqui o Lilith revisita a Terra que fora Edênica, ainda no espraiar da celebração do Dia Internacional da Mulher. Este conto, como se narrou então, está inserto em uma seleta de quatro contos, cada um acerca de um dos quatro elementos alquímicos: TERRA / ÁGUA / AR / FOGO. Uma amostra  da referida seleta:

Seleta contendo quatro ensaios nos quais cada um deles está imbricado em tentativas de relações entre o sagrado e o profano,

sendo estes compilados, traduzidos, e aditados de para saber mais e diagramados por 

Lucas Francisco, o Amauta, 

especialmente, para 

CONTOS QUÍMICOS POR QUÍMICOS CONTISTAS


Sumário

1.- Lilith revisita Terra que fora edênica

2.- E águas purificadoras inundaram o Planeta

3.- O ar é o sopro da vida e de morte

4.- Para que filho Abraão levava o fogo?

Houve então sugestão da publicação dos outros três contos. Acolhida a sugestão pareceu significativo contar antes o porquê da Seleta e como ela se construiu. Nas edições de 24/MAR/2023 (Prelúdio) e de hoje (Posfácio)se narra esta construção. Os textos anunciados são de 2017. Nas três primeiras edições de abril (07 / 14 / 21), se pretende cumprir a publicação dos três contos que com o de Lilith (Terra) formam uma seleta de quatro contos, cada um acerca de um dos quatro elementos alquímicos:  TERRA / ÁGUA / AR / FOGO.



Um POSFÁCIO: Iniciada a busca, logo me dou conta o quanto referir ‘Os quatro elementos’ oferece múltiplas leituras em uma gama de gêneros literários que se espraiam na intersecção dos limítrofes: Sagrado e Profano. Estas muito mais complexas que as evocações que descrevia, no início de meu ser professor. Evidenciava, agora, o quanto fui simplório (não na acepção de pateta, mas de indivíduo muito crédulo) quando em aula explicava acerca dos quatro elementos dizia: Observem um pedaço de madeira verde ao queimar. Vemos a fogo, a água que verte da madeira, o ar representado pelo oxigênio consumido e pelos gases produzidos (especialmente, o gás carbônico) e a terra, identificada nas cinzas que restam. Nem destacava que, do ponto de vista químico, não são quatro elementos e sim quatro substâncias.

Por tal, neste segmento, ajudado pela Wikipédia, algo é trazido destas tão variadas (e inesperadas) leituras. Os quatro elementos - água, terra, fogo e ar - são uma referência em várias obras de expressão literária, plástica e filosófica. 

Os antigos filósofos da natureza acreditavam que esses eram os elementos básicos na constituição de matéria. A origem da teoria dos quatro elementos, ao menos no Ocidente, está na Grécia, entre os filósofos pré-socráticos. Entre estes, a origem da matéria era atribuída a um elemento diferente: ora ao fogo, ora à água.

No entanto, é provável que essa discussão tenha vindo do Oriente, onde encontra-se na China, a Teoria dos Cinco Elementos. Estes são, na verdade, elementos sutis, ou melhor, estados de mutação da matéria-energia.

Os escritos dos filósofos da Renascença, porém, levam a supor que o Ocidente também via os elementos como forças sutis que se manifestariam através de transformações recíprocas. É o que se depreende de um texto enciclopédico de Cornelius Agrippa, De occulta philosophia. Esta forma de ver os elementos justifica a ligação entre astrologia e alquimia, que ocorria naquela época (talvez não completamente borrada, ainda, nos dias atuais).

Também na Índia se vê a aplicação deste conceito de elementos que entram em partes equilibradas na composição da matéria, quando a medicina tradicional indiana (aiurvédica) tenta equilibrar os três humores: vento, fogo e terra. 

Esses humores formaram a base da medicina de Hipócrates, e ainda fazem parte da psiquiatria, onde ainda se parece referir que certas doenças mentais graves, como a esquizofrenia, estão associadas a certos tipos físicos (como longilíneo, brevilíneo, entre outros). A predominância de certo elemento, ou humor, determina o tipo físico da pessoa, segundo médicos gregos anteriores a era cristã. 

A astrologia, quando usada para estudar aspectos médicos das doenças, investigava se a pessoa era do tipo sanguíneo (ar), fleumático (água), colérico (fogo) ou bilioso (terra, também chamado nervoso). A cada um desses biotipos corresponde, de acordo com a medicina antroposófica (= relativo a antroposofia ou ao conhecimento ou à doutrina da natureza moral do homem), os seguintes órgãos: colérico: coração // fleumático: fígado // sanguíneo: rins // bilioso: pulmões.

Cada um desses tipos teria então um órgão indicativo de seu estado de relativa saúde ou doença, e durante determinada estação do ano estaria mais propenso a desequilíbrios. 

Os ‘ditos quatro elementos’ da natureza podem, também, ser associados aos estados físicos da matéria, quais sejam: 

Terra → Sólido // Água → Líquido // Ar → Gasoso // Fogo → Plasma

Garimpando contos

Estabeleceu-se, então, que a Seleta que se propunha a organizar se restringiria apenas a visão clássica (talvez, caracterizada como a produzida em diversas culturas da Antiguidade). Como a Seleta que se construía desejava-se albergar no livro de contos ao qual fora convidado a mesma passa a ser considerada como um primeiro ensaio de uma obra mais ampla. Por ora, até por limitação de extensão conteria apenas uns poucos contos, representativos de cada um dos quatro elementos, individualmente ou com algumas composições de dois ou três ou até com os quatro.


Também queria que os textos escolhidos refletissem algo das relações do sagrado e do profano, por ser esta uma das interfaces que me seduz estudar atualmente, e estudava na co-produção da Tese doutoral da Patrícia Rosinke.

  É preciso referir que ousava propor uma relação entre o sagrado e o profano, não de oposição de um ao outro, como propõe Eliade (1992), mas de uma convivência ou como mostra no título de ‘um imbricamento relacional’ entre um e outro. Onde imbricar é: 1) como dispor ou ficar disposto do mesmo modo que as telhas de um telhado (= sobrepor); 2) é estar ou ficar com ligação estreita a (= interligar). Assim, não há porque se estimular um duelo entre o dogmatismo do sagrado e o mitológico profano. É permitido invocar aqui uma adequada metáfora de um dos autores desta seleta: aqui o profano e o sagrado parecem transgredir fronteiras, mas também se isolarem. São ilhas de um arquipélago unidas pelas águas que as separam.

Estabelecido estes limitadores, definiu-se os matizes dos contos que sonhava ver presente na ‘minha’ primicial Seleta: planeava a autoria de homens e mulheres, das mais diversas geografias, de diferentes vertentes: crentes (de diferentes religiões) e também não crentes. Sonhava poder ter (e selecionar) cerca de uma meia dúzia de textos de duas a três páginas cada. 

O Google – e por primeiro os eficientes robôs do Google recebem, aqui e agora, a minha espraiada gratidão pela eficiente ajuda na realização de uma ingente tarefa – foi uma muito boa alternativa para a busca dos textos. No primeiro lançar de rede na busca de “contos acerca dos quatro elementos” obteve-se 563 mil resultados, com aproveitamento quase zero. Ao se alterar para ‘histórias’ caiu para 266 mil com um pouco de mais sucesso. Com ‘ensaios’ 160 mil, com melhores resultados quanto ao aproveitamento. Os valores antes citados sempre foram sem aspas; com aspas os resultados foram sempre zero. 

Depois de lançar muitas redes, com muitas eliminações tinha quatro bons ensaios. Contentei-me, mesmo sendo muito menor que o sonhado, pois tinha uma seleção que agradava, já que tinha um texto apreciado para cada um dos quatro elementos; escritos por uma mulher e três homens (sonhava 2 por 2, mas não é apenas a Ciência que é masculina!, a literatura, também); as autorias são de crentes das três religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo) e um ateu (sintomaticamente este é da Europa que parece que é cada vez mais ateísta); há um latino-americano, um estadunidense, um europeu e um do norte da África. Não consegui nenhum autor do Oriente, o que me parece natural, pois os quatro textos são balizados em cosmogonias de religiões do Ocidente. 

Antes de dar a lume a Seleta, pelo que foi antes descrito, quase é desnecessário anunciar que esta teve modificações em seu nome (ainda, uma quase súmula). Parece significativo dizer que me agradou e muito me envolveu fazer o florilégio que está a seguir. Talvez, este capítulo na antologia do Márlon, seja o indez (ou, para demonstrar a minha afiliação a Química: um gérmen de cristalização) de uma Magna Seleta. 

Com desejo que amostra do conto TERRA > LILITH que está na edição 17MAR2023 tenha sido do agrado de cada uma e cada um, votos de que os três contos da Seleta que estarão nas edições de 05 /13 /20 de abril sejam fruídos com sabor e saber!


sexta-feira, 24 de março de 2023

Seleta acerca dos quatro elementos: Uma protofonia

ANO 17*** 24/03/2023*** EDIÇÃO 2077

Na edição anterior (17MAR2023) publicou-se aqui o Lilith revisita a Terra que fora Edênica, ainda no espraiar da celebração do Dia Internacional da Mulher. Este conto, como se narrou então, está inserto em uma seleta de quatro contos, cada um acerca de um dos quatro elementos alquímicos TERRA / ÁGUA / AR / FOGO. Houve então sugestão da publicação dos outros três contos. Acolhida a sugestão pareceu significativo contar antes o porque da Seleta e como ela se construiu. Nas edições de hoje e de 31/MAR2023 se narra o anunciado. Os textos anunciados são de 2017. Nas três primeiras edições de abril (07 / 14 / 21), se pretende cumprir a publicação dos três contos.

Recebi um atencioso convite de meu colega Márlon, da UFGO: “Oi Chassot! Escrevo para convidá-lo a escrever um CONTO, para um projeto que estou desenvolvendo: CONTOS QUÍMICOS POR QUÍMICOS CONTISTAS. [...] O tema é livre, desde que na história, apareça aspectos da química ou da ciência em qualquer nível ou forma”. Minha resposta foi quase imediata: Salve, Márlon! Gostei do convite. Pululam ideias. Obrigado”.

Não havia exagero em minha resposta. Em meu lapkopf surgiam renovos de textos para cumprir o prometido. Há muito, brinco: mesmo não possuindo um laptop, tenho um lapkopf. Aqui, a alusão é à kopf, "cabeça" em alemão. No meu lapkopf estou, usualmente, produzindo textos ficcionais, preparando aulas ou estabelecendo sequências para uma palestra. Os textos são lançados no receptivo disco, não tão rígido do cérebro, em vigílias de um chamar o sono ou em insones madrugadas. Há períodos de fertilidade; mas há tempo, em que a imagem do solo crestado é uma metáfora adequada para a esterilidade intelectual. 

Ora o solo era fértil. Por tal, surgiam propostas desafiadoras. Para fazer parceria na tese de minha, então, doutoranda Patrícia Rosinke (UFMT Sinop/MT) leio “O sagrado e o Profano” de Mircea Eliade. Isso passou a catalisar a escrita do conto prometido ao Márlon. A proposta se constituía: reunir textos acerca dos quatro elementos

Organizaria uma seleta ou uma antologia, na acepção de coletânea de textos, em que estão coligidos extratos literários de diferentes autores. O Priberam acenava que o artefato cultural que eu pretendia produzir poderia ser chamado de um florilégio ou uma crestomatia. A primeira sugestão, eufônica, mas nada palatável a meu gosto. A segunda, cacofônica; como outra das possibilidades: analecta. Ora propor-me a fazer uma crestomatia acerca dos quatro elementos. Seria fazer fugar leitores. Ainda pior: organizar uma analecta sobre os quatro elementos

Estava decidido. A opção dentre as cinco possibilidades ficava reduzida a duas: uma seleta ou uma antologia. Uma e outra eram nomes de capas de livros que usei enquanto aluno da educação básica. Mesmo que antologia parecesse mais sonora, figurava tender à seleta, lembrando a minha saudosa Seleta em prosa e verso de Alfredo Clemente Pinto na qual aprendi tantas fábulas, histórias e poesias. 

Aqui, rende-se homenagem a Alfredo Clemente Pinto (Porto Alegre 1854 — 1938) filho do português Clemente José Pinto, escritor e político brasileiro (eleito deputado estadual, à 21ª Legislatura da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, de 1891 a 1895). Seu mérito maior foi ter sido educador. Dedicado ao magistério por mais de 40 anos, foi autor de uma famosa obra didática, utilizada por longos anos nas escolas gaúchas, intitulada Seleta em Prosa e Verso

Sobre esta Seleta escreveu um de seus editores, quase meio século depois da morte do autor: “quando publicamos, em 1980, a 54ª edição da Seleta em Prosa e Verso, de Alfredo Clemente Pinto, fizemo-lo com a convicção de que a iniciativa seria bem recebida por todos quantos, na juventude, a tinham tido, nas escolas, como livro de texto. Mas como um livro didático que transcendia esta simples condição, de tal forma marcara todos aqueles que o leram e o relera, então, em muitos casos pelo resto da vida. Livreiro, era comum ouvirmos clientes recitarem passagens inteiras do livro que haviam lido em certos casos na distante mocidade”. 

Era custoso abandonar a opção ‘antologia’ pois lembrava aquela onde decorara o soneto Deus, de Casimiro de Abreu, no qual declamava “o mar bramia erguendo o dorso altivo para o seu sereno” muito antes de eu conhecer o mar. 

Há outro dado que conspirava em favor de Seleta: possuir em minha biblioteca, no setor dos ‘livros raros e preciosos’ tenho um exemplar da 46ª edição ‘consideravelmente aumentada, correta e acompanhada de muitas notas gramaticais, históricas mitológicas etc.’ da Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto ‘adotada nas aulas públicas e particulares dentro e fora do Estado’ em uma edição da Livraria Selbach, na Rua Marechal Floriano, 10 em Porto Alegre. Este precioso exemplar é de 1939, talvez a primeira edição depois da morte do autor. Não é o exemplar que foi utilizado na escola, talvez no meu 5º ano em 1950, (pois minha edição é do ano de meu nascimento), que adquiri por volta de 1970. 

Depois de tanta remexida no baú marcado com a palavra ‘saudade’ estava decidido: prepararia para o livro de contos organizado pelo Márlon uma Seleta contendo contos acerca dos quatro elementos imbricados em relações entre o sagrado e o profano. Quando reli o quilométrico título, que mais se parece com uma súmula do texto que pretendo elaborar, dei-me conta que eu era no mínimo um pretensioso. Agora, restava-me procurar e selecionar contos para a dita Seleta.

sexta-feira, 17 de março de 2023

AINDA, DIA INTERNACIONAL DA MULHER: LILITH


 ANO 17*** 17/03/2023***EDIÇÃO 2076

Narrei na edição passada (10/03/2023) que agendara a publicação do conto Lilith revisita a Terra que fora Edênica, como celebração pelo Dia Internaciona da Mulher. que então se comemorava. Por razões técnicas publicação foi abortada. Expliquei, então, que conto é o primeiro de uma seleta com quatro narrativas que escrevi para a tese doutoral de Patrícia Rosinke UFMT) que envolve os elementos alquímicos TERRA / ÁGUA / AR / FOGO . Esses quatro contos foram produzidos inicialmente para livro organizado pelo Marlon (Soares, 2019). Posteriormente, a Editora  Livrologia de Chapecó transformou a tese doutoral da Patrícia em livro (Chassot & Rosinke, 2021 e dessa maneira a seleta ganhou nova edição. Em A ciência é masculina? é, sim senhora!, nas edições mais recentes (Chassot, 2019) apresenta referências acerca de Lilith. 

CHASSOT, Attico, A ciência é masculina? é, sim senhora! São Leopoldo: Unisinos, 2019.

ROSINKE, Patrícia & CHASSOT, Attico. Os quatro elementos entre ciência e religião. Chapecó: Livrologia, 2021

SOARES, Marlon Herbert Flora Barbosa, (org) Contos químicos por quimicos contista. Goiânia: Editora espaço acadêmico, 2019. 110 pag.

Isto posto resgato, com minha leitora e com meu leitor a promessa feita na edição passada lhe ofertando  Lilith revisita a Terra que fora Edênica

Seleta contendo quatro contos. nos quais cada um deles está imbricado em tentativas de relações entre o sagrado e o profano foram compilados, traduzidos, aditados de para saber mais e diagramados por Lucas Francisco, o Amauta, 

Sumário

1.- Lilith revisita Terra que fora edênica

2.- E a Água purificadora inundou Planeta

3.- O Ar é o sopro da vida e de morte

4.- Para qual dos  filhos Abraão levava o Fogo?


  1. Lilith revisita Terra que fora edênica 

Mathilde Aguillar Martínez*

E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar; e apareça a porção seca; e assim foi. E chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mares; e viu Deus que era bom (Gn, 1: 9.10).

Estar no terceiro milênio da era cristã não faz imunes aos mitos antigos, em cuja sombra se tecem fantasias, lendas e inclusive cosmogonias com sabor atual. No romance Caim, Saramago destaca a figura de Lilith — esposa de Noah, das terras de Nod —, a quem destina o papel de iniciar a Caim na arte amorosa e com quem teria um filho: Enoc, bisavô de Matusalém.

Todavia, há outra Lilith, uma que permaneceu quase desconhecida e que forma parte dos mitos antropogênicos. Segundo a Cabala judaica, Lilith foi a primeira mulher, criada igual como Adão. Eva seria uma criação posterior, produto de uma costela do varão.

No sexto dia do primeiro relato da criação, Deus cria o homem a sua imagem e semelhança “Macho e fêmea os criou” (Gn 1:27). Esta narração refere ao primeiro casal humano que teve origem similar.

No segundo relato da criação, Deus forma o homem com pó da terra — um dos elementos primordiais — e lhe infunde alento de vida. Para que não esteja só e o ajude, faz um ser semelhante a ele de sua costela e forma a uma mulher, de quem o homem diz: “Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; ela será chamada varoa (virago), porquanto do varão foi tomada” (Gn 2:23).

Enquanto no primeiro relato a fêmea (mulher) é reflexo de Deus, no segundo, é reflexo do homem. Por que o Gênesis refere duas criações? Alguns consideram que os versículos são reiterativos e dão a conhecer um mesmo feito de uma maneira diferente. Outros, diferentemente, aduzem que no primeiro relato alude à criação de uma primeira mulher: Lilith, cujo nome se relaciona com a palavra hebraica lailah, que significa noite.

Lilith se torna o par de Adão, com quem comparte um mesmo gérmen ontológico. Teria uma personalidade forte e emancipada que faz com que se associasse com lado escuro e com a malignidade.

Segundo a tradição judaica, Lilith se opõe a aceitar a postura amorosa que Adão desejava — deitada e por baixo — por se considerar igual. Como Adão quis obrigar-lhe a obedecer, ela o abandona, deixando o Jardim do Éden.

Eva, em troca, assume uma atitude mais submissa, menos crítica. Por originar-se da costela de Adão, está sujeita a seu domínio. “... e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará” (Gn 3,16).

Lilith e Eva poderiam ser os arquétipos de um duplo feminino: a maldade versus a bondade, a obscuridade versus a luz, a dureza versus a doçura, a mulher-demônio que se opõe à mulher-mãe. 

A primeira se orienta ao egoísmo, a autogratificação, ao prazer sensual; a segunda ao sacrifício, à união espiritual e à procriação. Extremos dos opostos: demônio/santa, rameira/virgem, que tem categorizado e estigmatizado o mundo feminino.

Sem dúvida, uma e outra compartem de ter desorientado ao homem e até se pode pensar, serem mais potentes que ele. Potência ligada em parte à falta de compreensão que o homem tem do feminino. 

Lilith enfrenta a Adão e o abandona como uma forma de emancipar-se; não se submete, o desafia. Eva o faz transgredir: é a autora intelectual do pecado original, sua força reside má sedução passiva.

Segundo uma velha tradição, Lilith seria uma figura sedutora, de longos cabelos, que voa à noite, como uma coruja, para atacar os homens que dormem sozinhos. As poluções noturnas masculinas podem significar um ato de conúbio com a demônia, capaz de gerar filhos demônios para a mesma. As crianças recém-nascidas são as suas principais vítimas. A crença em Lilith, durante muito tempo, serviu para justificar as mortes inexplicáveis dos recém-nascidos. Uma forma de proteger as crianças contra a fúria da bela demônia é escrever na porta do quarto os nomes dos anjos enviados pelo Senhor. Outra maneira é a de afixar no berço do recém-nascido, três fitas, cada uma delas com um nome de um anjo. À véspera do Shabat e da Lua Nova, quando uma criança sorri é porque Lilith está brincando com ela. Afirmava-se que, na Idade Média, era considerado perigoso beber água nos solstícios e equinócios, períodos estes em que o sangue menstrual de Lilith pinga nos líquidos expostos. 

Aos olhos masculinos, a mulher é em si mesma a caixa de Pandora: enigma indecifrável e fonte do mal.

Se a mulher foi melhorada — produto de um upgrade ou turbinada —, o homem não? Poderia se pensar que assim como se deduz ter havido uma Lilith do primeiro relato possa ter havido outro primeiro homem?

Do ponto de vista antropológico, o Gênesis é um mito de origem que busca explicar o surgimento do primeiro homem e como tal não difere muito de outros mitos, integrantes das diferentes cosmologias existentes.

Devido a maior agudeza da psicologia feminina, o crítico literário Harold Bloom formula a hipótese que alguma parte inicial da Bíblia foi escrita por uma mão de mulher.

Se bem que os desígnios de Deus são inescrutáveis, nós, suas criaturas, nos encarregamos de interpretá-los. 

PARA SABER MAIS: Jardim do Éden revisitado in Rev. Antropol. vol.40 n.1.São Paulo, 1997 http://dx.doi.org/10.1590/S0034-77011997000100005


*Mathilde Aguillar Martínez é doutora em História pela Universidade de Louvaina e Professora da Universidade Hebraica em Bogotá. É de fé judaica, mas não manifesta adesão formal a práticas de vertente de judaísmo ortodoxo. Email: mathiguima@gmail.com

ADVERTÊNCIA FINAL: Lucas Francisco, o Amauta e os 4 autores dos 4 contos: Mathilde Aguillar Martínez, Jean Jacques du Chambery, Joseph Cornwell Jr e Ephrain Bin Mustaphat são cinco personagens ficcionais e qualquer semelhança com pessoas reais, é mera coincidência. Os quatro PARA SABER MAIS não são ficções.