ANO
9 |
EDIÇÃO
2851
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De
vez em vez, tenho comentado aqui, acerca do assestar
óculos para contemplar o mundo natural. Numa apropriação de uma metáfora de
Thomas Kuhn (1922-1996), talvez, um dos
mais importantes epistemólogos do século 20, uso discutir e comparar: senso comum,
pensamento mágico, saberes primevos, mito, ciência e religião. Nesta edição,
que encerra julho, pretendo comentar algo acerca de mito.
Mito é algo
(coisa ou pessoa) que não existe, mas que se supõe real. Ou ainda, personagem,
fato ou singularidade que, não tendo sido real, simboliza não obstante uma
generalidade que se deve admitir.
Para Junito de Souza Brandão
(2000), talvez, entre nós, uma das maiores autoridades no assunto, “mito é
narrativa de uma criação: conta-nos de que modo algo, que não era, começou a
ser” (p.36). O mito é, usualmente, uma representação coletiva, transmitida através
de gerações, buscando explicações para a origem e o continuado governo do
mundo. Aqui, mito não tem conotação de fábula, lenda, invenção, ficção. Brandão
(2000) destaca “a acepção que lhe atribuíam, e ainda atribuem as sociedades
arcaicas, as impropriamente denominadas sociedades primitivas, onde o mito é o
relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção
de entes sobrenaturais” (p. 35).
Pode ser um humano ou outro
ser, que é imortalizado ou mitificado[1] em
vida ou após a morte. Podemos ver isso quando acompanhamos o processo de
‘construção’ de um herói (artista ou esportista) ou de um santo. Parece ser
senso comum afirmar que “é bom (o político) morrer no Brasil. O morto deixa de
ser humano, com defeitos e qualidades, e é, de maneira quase imediata,
canonizado”.
Enquanto escrevia este parágrafo, recebo propaganda de um
livro: “Esta é, provavelmente, uma das obras mais completas sobre Jesus, que
desmistifica o Jesus deificado, fazendo surgir o homem, o Jesus histórico, tão
humano e por consequência, tão mais Divino”. Pareceu-me inconsequente:
Desmitifica-se para divinizar.
Talvez, pudéssemos afirmar
que o dogma não apenas é antípoda do mito, mas também impede que este viceje.
Tento um exemplo. Se olharmos as três religiões abraâmicas — judaísmo, cristianismo, islamismo
— talvez pudéssemos dizer que é a ortodoxia, ou de uma maneira mais simples, a fidelidade
ao monoteísmo[2], que
sustenta e garante, por serem disciplinadas
por livros sagrados, a unicidade histórica. Todavia, se compararmos estas três culturas
milenares (que compõem, ainda hoje, uma expressiva parcela populacional do
Planeta) com os gregos há 2,5 mil anos A.P., veremos que estes, por não terem
‘um livro sagrado’ têm múltiplos relatos para explicar, por exemplo, (sua)
cosmogonia[3].
A descrição da criação do mundo na cosmogonia
judaico-cristã narrada no Gênesis e na 2ª surata (a vaca), no Alcorão daqueles
de fé islâmica, por exemplo, tem leitura assemelhada nos dois textos citados. A
ortodoxia é vigilante na preservação canônica, conforme aos cânones ou aos
dogmas do Livro (Bíblia ou Alcorão). Por outro lado os gregos têm diferentes
relatos de como foi o início dos tempos. Há para tal o mito de Gaia, de
Dionísio e outros. Uma cosmogonia, como a narrada no mito de Pandora, de
maneira ostensiva faz um relato machista, como procuro evidenciar em A Ciência é masculina? É, sim senhora! Ela
narra uma das muitas disputas entre os deuses.
Há uma pergunta que aflora impertinente. Qual a diferença
de mitos gregos dos relatos bíblicos ou corânicos?
[1]Mitificar: converter em mito, tornar mito.
Confrontar: Mistificar: Abusar da credulidade de alguém. = ENGANAR, LOGRAR
[2] Sistema ou
doutrina daqueles que admitem a existência de um único Deus. As três grandes
religiões monoteístas atuais são o judaísmo, cristianismo e o islamismo. A
rigor, nem o judaísmo nem o cristianismo são religiões monoteístas O
cristianismo é trinitário e judaismo é henoteista (segundo Max Muller,
orientalista alemão, 1823-1900), forma de religião em que se cultua um só Deus
sem que se exclua a existência de outros. Assim, apenas o islamismo é
rigorosamente monoteísta.
[3] Cosmogonia
(do grego κοσμογονία; κόσμος "universo" e -γονία
"nascimento") é o termo que abrange as diversas lendas e teorias
sobre as origens do universo de acordo com as religiões, mitologias e ciências
através da história.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, 14ed. Vol.1. Petrópolis: Vozes,
2000.
Quem quer, vê
ResponderExcluirO homem na sua curiosidade insana
Pra tudo que enxerga quer explicação
De onde tanta coisa estranha emana?
Qual seria a verdadeira origem então?
“Óculos” ele os usa para ler à sua volta
E supõe que assim encontra a verdade
Contudo apenas sua imaginação solta
Muito além de qualquer credibilidade.
Diz ele, tenho resposta para o que vejo
Está nas escrituras, inventei a religião.
Entretanto essa criatura sem traquejo,
Salta de galho em galho nessa ilusão.
Se crer na ciência pura não é ensejo,
Cai nas garras sinistras da superstição.
A finitude é nossa única certeza, como já disse Sêneca. E por essa certeza precisamos de muletas para viver. A fé nos traz paz de espírito e resignação para a miserável existência humana. De ridícula criatura nos transmutamos em senhores do universo. Inventamos máquinas que descortinam os recantos mais virgens do universo. Criamos curas, remendamos a vida, nos sentimos poderosos ao ponto de invertermos o papel na relação Criador criatura. Inexoravelmente o tempo passa, envelhecemos, as certezas se tornam incertezas, e o medo do desconhecido aflora tornando o mais corajoso sábio em inquieto moribundo a implorar por um apoio, é o que chamamos "o recurso do afogado". Aquela última mão agarra-se a qualquer coisa na iminência do fim. Felizes aqueles que tem fé.
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