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sábado, 30 de abril de 2011

30.- Alucinando Foucault

Porto Alegre * Ano 5 # 1731

Um sábado que marca o ocaso de abril. Já vencemos um terço deste que, há não muito, era o ‘ano novo de 2011’. Se repetisse, uma vez mais, a máxima, tantas vezes presente aqui: Tempus fugit! algum leitor poderia deduzir que esclerosei. Ainda nesta quinta-feira o Jair, de ‘blogue que pensa: www.jairclopes.blogspot.com’ escreveu como comentário à blogada: 23- Um relógio quase fantasmagórico que em 23 de fevereiro, bateu recordes de visitas e também de comentários “o tempo não espera e não apressa, não divide nem soma, não vive, nem padece e a despeito de tudo ele simplesmente é!” Há aí um denso filosofar. Aos que chegaram aqui depois daquela edição, vale curtir uma visitação neste sábado.

Nesta manhã participo de mais uma edição de ‘Diálogos de aprendentes’ com uma turma de licenciandos em Física, da FACOS em Osório, liderados pelo meu colega e amigo José F. Cánovas de Moura.

Volta nesta edição sabatina a dica de leitura. No sábado passado houve forfait [aqui apenas uma provocação à lei que proíbe o uso de palavras estrangeiras (inócua, a meu juízo) de meu querido ex-aluno Deputado Raul Carrion], em decorrência de uma edição biblogal acerca de diferentes leituras para Páscoa.

O título que hoje se faz manchete tem marketing, digo ‘estratégia mercadológica’. No livro desta dica sabática, o filósofo Michel Foucault é personagem de uma ficção sobre as relações entre leitor e escritor. Eis a ficha do mesmo.

DUNCKER, Patricia Alucinando Foucault [Hallucinting Foucault Tradução de Duda Machado] São Paulo: Editora 34. 1998, 192 p. 14 x 21 cm, ISBN 85-7326-116-1(R$ 37,00 no sítio da Editora 34)

Bernardo Carvalho, escritor consagrado, que para mim evoca o gostoso ‘Mongólia’ é fulminante: “Alucinando Foucault é um romance de mistificação. Tudo nesse livro, a começar pelo título, diz respeito à criação de mitos. E o principal deles é aquele que pretende fazer os leitores acreditarem que os escritores são figuras especiais, extraordinárias e excêntricas, diferentes do resto dos seres humanos”.

Talvez haja um exagero, mas há que convir que Foucault está no título como Pilatos no credo. E título seduz e até vende. Foi o que aconteceu comigo no recesso pascoal. Encontrei-o na biblioteca da Gelsa. Gostei do livro; li com sofreguidão.

A trama é bem construída: dois importantes escritores franceses: Michel Foucault (1926–1984) e Paul Michel (1947-1993) são envolvidos na ficção tramada no romance de estreia de Patrícia Dunker (nascida em 29 de junho de 1951 em Kingston, Jamaica), professora de teoria literária e teoria feminista na Universidade de Wales, no Reino Unido.

Em Alucinando Foucault mais uma vez há um tênue limite entre o real e a ficção. Os dois escritores são reais. Agora ficção: um estudante faz sua tese de doutorado sobre Paul Michel. No auge de sua paixão pelo objeto de sua investigação descobre que este está internado há quase dez anos em um asilo para dementes na França. Sua namorada, uma germanista que pesquisa obras raras, por razões que se vem conhecer só no fim do livro, estimula-o (e o financia) para que ele vá encontrar Paul Michel no hospício. Estabelece-se – depois de uma rejeição inicial – uma relação muito bonita entre o estudante e o escritor. Gradativamente ele consegue tirar o escritor da loucura, conseguindo, não sem muitas dificuldades uma licença para que ele possa fruir uma temporada fora do asilo. Ao final desta, Paul Michel morre em um acidente de automóvel.

E Foucault? Ele é paixão secreta de Paul Michel, imaginado que os livros de um são resposta aos escritos de outros. Há memoráveis cartas (não sei se ficcionais) de Paul Michel para Michel Foucault.

Em Portugal, com o título de A Sombra de Foucault ~~Editora Gradiva ~~, o romance é muito elogiado pela crítica que destaca como uma “história de amor e de mistério roubada aos sombrios labirintos da memória. Um estudante de literatura inglesa resolve partir em busca de um escritor louco, iniciando uma viagem fatal que o levará de Cambridge aos pavilhões interditos de um hospício francês e às praias do sufocante do verão provençal. Empolgante e controversa, explora os limites da loucura e do desejo, reafirmando o poder desse amor obscuro que une o leitor ao escritor. Um livro notável apontado ao próprio âmago do ato criativo.”

Esta blogada não seria completa se não trouxesse uma referência à Editora 34, talvez a mais ‘simpática editora brasileira, que mesmo com uma história recente (foi fundada em 1992) tem um catálogo realmente precioso. Tenho satisfação de ter em minha biblioteca alguns de seus títulos, sempre em primorosas edições bem cuidadas.

O nome da Editora 34 e o quadrado impresso na primeira página de seus livros foi inspirado no “quadrado mágico” de uma famosa gravura de Albrecht Dürer, de 1514, que é citada no romance Doutor Fausto, de Thomas Mann. O quadrado mágico em questão é subdividido em 16 quadrados menores, com os números de 1 a 16 em cada um deles, e cuja soma em qualquer sentido — horizontal, vertical, diagonal — é sempre igual a 34. Embora sua origem seja incerta, sabe-se que o quadrado mágico surgiu em tempos remotos e aparece em diferentes culturas, como a chinesa, a indiana e a árabe. No caso da Editora 34, segundo informa a página da mesma, ele foi pensado como um símbolo de que existem vários caminhos possíveis para se chegar a um objetivo comum.

Desejo que a sugestão sabática seja aproveitada e que cada uma e cada um de meus amáveis leitores tenham um muito bom sábado. Um convite para nos encontramos, aqui, na abertura de maio.


sexta-feira, 29 de abril de 2011

29.- Oh tempora! Oh mores!

Porto Alegre * Ano 5 # 1730

Havia feito o propósito de nesta sexta-feira não falar das bodas real, até porque não será este humílimo blogue que possa ombrear com a imprensa toda poderosa que vive quase uma histeria envolvendo-se com o assunto.

Também não será meu texto que desengatilhará relógios – que por questão de fuso – farão algumas pessoas (... estava tentado a escrever: algumas mulheres, mas não posso ser preconceituoso) despertar mais cedo para não perder ao vivo aquilo que durante o dia será repetido, ad nauseam.

¿Qual é a diferença entre ver ao vivo ou olhar uma seleção aditada, tempos depois? Lembro-me de disputa infantil: eu que vou contar para mãe, pois fui eu que vi primeiro. Deve ser essa a justificativa – ver primeiro – para que hoje no Brasil alguns levantem às 5h (ou, por exemplo, em Nova York, às 3h) para ver a chegada dos noivos à Abadia de Westminster.

Soubesse eu que as câmeras farão um tour pela abadia e mostrassem os túmulos de Newton, Darwin ou Rutherford iria dar uma espiadela nas bodas, mesmo que em cada uma de minhas duas visitas à imponente ‘abadia’ visitei estes mausoléus, e, por exemplo, no de Isaac Newton me encantasse com o epitáfio da autoria do poeta Alexander Pope: A natureza e as leis da natureza estavam imersas em trevas; Deus disse "Haja Newton" e tudo se iluminou!

Não resisto, e estou aqui fisgado pelo casamento. Claro que este me diverte, especialmente pela sua hipocrisia. Qualquer pesquisa mostra o quanto os britânicos, em sua maioria, desejariam a República ao invés da monarquia, se houvesse um muito pouco provável plebiscito. É essa maioria que se comove com o casamento, que injetará algo como 1,6 bilhão de reais nas bancas rotas do Reino. Algo semelhante ao que se deverá auferir ali com as próximas Olimpíadas.

Oh tempora! Oh mores! – Oh tempos! Oh costume! Esta semana lia em um blogue de um colega, que ainda em 1960, ele tivera uma viagem postergada, pois um cavalo manquitolava (encanta-me este verbo, para expressar que o sujeito manca. Parece-me que manquitolar deixa o manco mais erudito) e, agora, ao voltar dos feriados da semana teve que agradecer e dispensar o GPS, pois este o induzia a erro. Lembro-me da propaganda em que a voz do GPS recomenda ao ilustre passageiro passar primeiro numa loja para comprar roupa, pois está vestido com inadequação para uma reunião que ele alega ter à insistente voz (feminina). Certamente já há estudos que constate: homens elegem voz feminina e mulheres, masculina no GPS. Ontem soube de um colega que elege, às vezes, ouvir as recomendações do GPS em italiano, para deleitar-se com o esbravejar sonoro na língua de Dante. Bom momento para mirar uma transição de meio século: do cavalo que manquitolava ao GPS que desencaminha. Já há mais de um ano, minha neta Maria Clara surpreendia-se que não tivéssemos GPS no carro. Para ela isso era inconcebível.


Olho, então, para a boda do dia (ou do século!) e vejo que há 30 anos a noiva homóloga, a princesa Daiane teve que fazer prova de virgindade para poder casar com Príncipe e a agora nubente, para usar uma linguagem bíblica, tão a gosto de alguns, já ‘conheceu o varão e com ele coabitou’ há mais de quatro anos. Oh tempora! Oh mores!

Esta hipocrisia me remete a outro badalado casamento real: aquele ocorrido no dia 22 de maio de 2004 na Catedral de Santa María la Real de la Almudena em Madrid, quando Príncipe Filipe de Espanha casou com Letizia Ortiz Rocasolano. A partir de então, Letizia tornou-se Princesa das Astúrias e presuntiva futura Rainha de Espanha. Ocorre que mesmo que a noiva fosse desquitada, o casamento ocorreu em engalanada catedral teve ate a presença de cardeal enviado pelo Vaticano, portando benção papal, com a noiva vestida de branco. Recordo em minha infância de casamentos em que padres proibiam a noiva casar de véu branco (ou os mais radicais: oficiavam a cerimonia privada na sacristia ou atrás do altar), para que publicamente se soubesse que a noiva não era mais virgem.

Chega de falar do show do dia. Gastei a cota da edição de hoje. Despeço-me com um convite para uma saborosa dica de leitura amanhã e votos de uma boa sexta-feira nupcial e uma constatação: certamente, muito breve, a noiva de hoje dirá: ‘estou com um rei na barriga!’

quinta-feira, 28 de abril de 2011

28.- (In)mobilidade urbana: mais uma vez

· Porto Alegre * Ano 5 # 1729

O primeiro registro tem gostosa semelhança com um precioso detalhe que narrei aqui na edição anterior. Na noite de ontem o Pedro – 1 ano e 10 meses – depois da escola passou por aqui para uma visita à sua avó e ao seu avô. A exaustão da jornada escolar desanuviou-se quando se encantou com sue livro como presente de Páscoa.

Em termos de agenda acadêmica, esta quinta-feira é atípica, pois o seminário de História e Filosofia da Ciência no Mestrado Profissional de Reabilitação e Inclusão de amanhã é antecipado para hoje.

Então meu colega Garin e eu – que no sábado de aleluia editamos uma edição bi-blogal – estaremos concluindo os estudos acerca da lenta (mais de dois séculos) e cruenta (memento, Bruno, Galileo) revolução da revolução geocentrismo[heliocentrismo: Depois de vermos, no encontro passado, as contribuições de Copérnico, Bruno, Brahe, Kepler e Galileo, vamos hoje considerar algo dos trabalhos de Descartes (teoria), Bacon (empiria) para concluirmos com Newton, enterrado na Abadia de Westminster (cenário do casamento de amanhã) sob o epitáfio proposto pelo poeta Alexander Pope: A natureza e as leis da natureza estavam imersas em trevas; Deus disse "Haja Newton" e tudo se iluminou! faz uma boa síntese do positivismo que se instala na Ciência, traduzido posteriormente pela frase de Lorde Kelvin: Só podemos falar daquilo que podemos medir. Há, ainda, uma proposta para a sobremesa do encontro: Jardim do Éden revisitado [LARAIA, Roque de Barros. Rev. Antropol., São Paulo, v. 40, n. 1, disponível em www.scielo.br]

Depois de anunciar tão apetitoso menu para esta manhã, uma notícia do Jornal Zero Hora – as ilustrações: dois automóveis antípodas, foram incluídas no texto pelo editor deste blogue. A publicação, não mais tão nova, mas que me apraz trazer, que se conecta com tema muito frequente aqui: a imobilidade urbana:

Ruas cheias e carros vazios: Um levantamento feito por Zero Hora em seis pontos da Região Metropolitana revela a força da cultura do transporte individual. Ignorando o exemplo de outros países, onde o compartilhamento de veículos por amigos e colegas é parte da rotina e recebe estímulo oficial, a maior parte dos motoristas daqui viaja sozinha, colaborando para os congestionamentos nos horários de grande movimento
Nas congestionadas vias da Região Metropolitana, há espaço de sobra. Dentro dos veículos. Levantamento de ZH aponta que dois terços dos carros circulam só com o motorista, resultando em acúmulo de veículos nas ruas e demora nos deslocamentos.
ZH foi a pontos da BR-116, da Terceira Perimetral e da Avenida Ipiranga para contabilizar, por 30 minutos, o número de ocupantes dos carros. Não entraram na contagem táxis, motos, picapes, caminhões e carretas. Também foram desconsiderados veículos com película nos vidros.

O percentual de motoristas solitários foi superior a 60%. Os carros com dois ocupantes foram 27%. De um total de 4.471 veículos monitorados, apenas 270 levavam três ou mais ocupantes, o equivalente a 6%.
Os números indicam que os gaúchos não se organizam para viajar em grupo nem para dar carona a conhecidos e familiares. Prática comum em países europeus e no Canadá, a carona solidária poderia reduzir congestionamentos e emissão de poluentes.
No Exterior, é comum colegas irem à faculdade ou ao trabalho em grupo. Essa cultura levou alguns países à institucionalização da carona, que pode ser agendada pela internet. – Um pouco de organização resultaria em menos carros nas ruas – diz João Fortini Albano, do Laboratório de Sistemas de Transporte da UFRGS.
Ônibus perderam 20% dos usuários: Na Europa, há políticas oficiais para estimular os carros a andar cheios. Foram instituídas pistas exclusivas para os veículos de alta ocupação. Na Califórnia (EUA), essa pistas existem há 40 anos e só podem ser usadas, nos horários de pico, por veículos com dois ou mais ocupantes. Em alguns locais, o motorista solidário tem descontos ou isenção de pedágios.
Especialistas acreditam que viajar de carro sozinho é um fenômeno relacionado a fatores como a qualidade do transporte coletivo, o bom momento econômico do país e uma cultura de valorização do indivíduo.
– As pessoas querem resolver sozinhas suas questões. E estão pouco preocupadas em ajudar o próximo. Isso se reflete no trânsito. Cada um quer chegar com seu carro e não está disposto a dar carona – avalia Magda Vianna de Souza, doutora em Ciências Sociais da PUCRS.
A nova cultura se reflete nos números. Entre os anos de 2000 e 2009, a frota gaúcha cresceu 37,5%, chegando aos 4,4 milhões de veículos. A população aumentou 6,9%, atingindo a marca de 10,9 milhões de habitantes. Em âmbito nacional, no mesmo período, o número de passageiros dos transportes coletivo caiu cerca de 20%, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Com votos de uma saborosa quinta-feira, um convite para aquelas e aqueles que nesta sexta-feira não estiverem vidrados no casamento do século (¿ ou do dia?): lermo-nos aqui, amanhã. Até lá.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

27.- Nada que é humano é somente individual.


Porto Alegre * Ano 5 # 1728

Cheguei, há não muito, da aula de Conhecimento, Linguagem e Ação Comunicativa para o grupo de Educação Física & Filosofia. Houve momentos polêmicos a partir dao interrogante: Pode/deve o ensino se Político? em situações como a inclusão de portadores de necessidades especiais em classes de ditos ‘normais’ e educação exclusiva fora da escola.

Antes de ir para a aula, a Gelsa e eu tivemos uma agradável surpresa. A Clarissa e o Carlos passaram aqui com Maria Clara – a querida aniversariante do dia. No registro imagético dois momentos da primeira curtida dos livros que a Maria Clara ganhou como presentes de Páscoa e como de aniversário. O nenê que vai nascer no final da primavera também ganhou um livro pela Páscoa.

Em um dia da semana santa, (nem sei qual) foi enterrado o autor dos disparos do massacre de Realengo, sem atender minimamente as canônicas preceituações estabelecidas pelo morto. Tragédia em Realengo tomando outros contornos: o assunto da vez é bullying. Mas se pode dizer que o fato do macabro 07 de abril e, especialmente suas análises, tenham se transformado em circo de horrores, dissociado de reflexão social.

Trago a propósito uma densa reflexão que foi escrita por Duarte Pereira, jornalista, escritor e ex-dirigente da Ação Popular. O texto publicado há duas semanas, mas tem ainda uma vibrante atualidade, especialmente pelas críticas que faz a imprensa em geral e a rede Globo em particular. A fonte é CORREIO DA CIDADANIA, www.correiocidadania.com.br/content/view/5716/9/

Com desejo que cada uma e cada um de meus leitores aproveitem as reflexões oferecidas, desejo uma muito boa quarta-feira. Amanhã, aqui poderá ser, novamente, um ponto de leitura.

“Alô, alô, Realengo: Aquele abraço!” (Gilberto Gil, no samba-exaltação Aquele abraço, ao partir para o exílio, forçado pela ditadura militar)

A dor pelas mortes e pelos ferimentos, brutais e gratuitos, das crianças e pré-adolescentes da Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro do Realengo, na cidade do Rio de Janeiro, não deve obscurecer nossa consciência crítica.

Nada que é humano é somente individual. É individual e social. Mesmo a loucura e suas consequências.

Em que exemplos de violência e insensibilidade, reais e fictícios, o rapaz Wellington Menezes de Oliveira, de 23 anos, ex-aluno da escola atingida, buscou inspiração? Onde conseguiu informações sobre o manejo de armas e o planejamento de massacres? Como adquiriu os dois revólveres e a farta munição que utilizou? Por que Wellington, filho de uma paciente psiquiátrica, arredio desde criança, e que já apresentava há vários meses, após o falecimento dos pais adotivos, sinais perceptíveis de descontrole e decadência pessoal, foi esquecido sozinho numa casa herdada, sem apoio nem assistência?

A forma capitalista de vida social, sobretudo em seus traços contemporâneos, engendra um individualismo cada vez mais exacerbado e uma perda crescente de atenção e solidariedade das pessoas entre si. Não é possível outra forma de sociabilidade humana, que reduza tragédias como a que ensanguentou ontem pela manhã o bairro carioca de Realengo?

Estou cada vez mais estarrecido com a cobertura predominantemente passional e facciosa da tragédia ocorrida em escola municipal do Rio de Janeiro, no bairro do Realengo.

O jovem Wellington de Oliveira, autor dos disparos que mataram e feriram alunos inocentes da escola, foi chamado de “meliante” nas primeiras declarações do policial que o abateu e continua sendo indigitado como “assassino” por quase toda a mídia, embora já se saiba que sofria de esquizofrenia desde criança. A mídia negligencia as informações de que Wellington, quando era aluno da escola, passou por vexames e humilhações por causa de sua introversão e bizarrices. Não aborda a falta de acompanhamento e tratamento adequados de um paciente diagnosticado de esquizofrenia desde criança, o que agravou a evolução de sua enfermidade. Não trata das informações sobre atentados e manejo de armas que podem ser acessadas facilmente na internet. Não reavalia a divulgação maciça, cotidiana e acrítica dos mais variados atos e formas de violência praticadas por grandes potências e contumazes delinquentes, reproduzidos em filmes de sucesso e até mesmo em jogos eletrônicos. Não esclarece como Wellington conseguiu as armas e as munições, sem as quais não poderia ter feito seus disparos cruéis e desvairados. Não alerta para a atmosfera envenenada de individualismo e competição em que a infância e a juventude vêm sendo forjadas.

Com essa cobertura irresponsável e superficial, a maioria da mídia apenas acirra a dor e as reações equivocadas dos parentes das vítimas e de um amplo setor popular. E, nesse clima irracional, as autoridades policiais já alertam para possíveis ataques de represália a familiares do jovem atirador.

São poucos também os professores e mais reduzidas ainda as entidades do magistério que têm vindo a público para lembrar a violência que se tornou endêmica nas escolas, principalmente nas escolas públicas, rebatendo a ideia de que a tragédia do Realengo possa ser considerada um fato isolado e imprevisível. Surpreende também que os movimentos de saúde, sobretudo os de saúde mental, não se empenhem em repor a apreciação do trágico acontecimento num quadro mais objetivo e multilateral, que leve em conta a condição do autor dos disparos, a falta de acompanhamento e tratamento de seu padecimento mental e as circunstâncias finais de abandono e solidão que precederam seu gesto de sofrida insanidade. Preocupa também que juristas de indiscutíveis convicções democráticas não se pronunciem para reclamar o tratamento jurídico adequado que merece um jovem esquizofrênico, mesmo que pratique atos de grande crueldade.

Abalados pelo acontecimento, que não conseguem entender satisfatoriamente, muitos parecem retroceder à Idade Média, quase pregando a condenação dos loucos como endemoninhados e bruxos e seu justiçamento nas chamas de fogueiras.

Vêm à lembrança as advertências de Engels e de Rosa Luxemburgo de que o declínio da civilização capitalista poderia ser seguido não por um salto socialista, mas por uma regressão à barbárie. É preciso insistir, portanto, na necessidade de lutar pela alternativa de uma civilização superior, socialista, baseada não apenas no poder democrático dos trabalhadores, na propriedade social dos meios de produção, no planejamento das atividades econômicas ou em serviços públicos universais e de qualidade, principalmente nas áreas de saúde, educação e previdência, mas também em valores de respeito, solidariedade e ajuda mútua no convívio social.

Questões que não querem calar O programa “Fantástico” transmitido pela Rede Globo na noite de domingo exibiu novas reportagens sobre a tragédia que se abateu sobre a Escola Municipal Tasso da Silveira, no bairro do Realengo, na cidade do Rio de Janeiro. As reportagens devem ter suscitado novas preocupações nos espectadores atentos.

1) É legal e admissível que a polícia carioca repasse imagens e documentos da investigação para a Rede Globo com exclusividade, discriminando os outros veículos de comunicação?

2) Segundo as imagens transmitidas, as professoras das duas salas de aula invadidas pelo atirador foram as primeiras a fugir, deixando para trás as crianças e adolescentes pelos quais eram responsáveis. Por que a entrevistadora não questionou esse comportamento? Por que as autoridades educacionais do Rio de Janeiro não apuram, nem discutem com as famílias dos alunos, a conduta da direção, dos professores e dos funcionários da escola no episódio, até mesmo para estabelecer padrões de reação escolar na eventual repetição de ocorrências semelhantes? Segundo regra conhecida, o comandante de uma embarcação que naufraga deve ser o último a abandoná-la.

3) Relatos de colegas de Wellington de Oliveira, reproduzidos pelo programa da Globo, confirmaram que o menino introspectivo e vulnerável costumava ser objeto de gozações e humilhações na escola. Grupos de alunas o cercavam, roçando seu corpo e simulando assediá-lo sexualmente, para o sádico divertimento de outros alunos e alunas que assistiam. Em uma ocasião pelo menos, colegas mais fortes o levantaram pelas pernas, enfiaram sua cabeça numa privada e acionaram a descarga, conforme os entrevistados admitiram. Contraditoriamente, uma das professoras que abandonou precipitadamente a sala de aula, deixando para trás seus alunos, declarou enfaticamente no programa da Globo que nunca houve “histórico de violência” na Escola Municipal Tasso da Silveira. O que era feito com Wellington não configura violência e violência repetida? Como são supervisionados os banheiros, os horários de recreio e as saídas das escolas, que se têm revelado momentos e espaços críticos para a integridade e a segurança de alunas e alunos mais indefesos?

4) Conforme as declarações de um dos irmãos de criação de Wellington, a mãe deles foi chamada à escola, alertada para o comportamento discrepante do aluno e aconselhada a procurar um psicólogo ou psiquiatra para avaliá-lo. Isso foi feito? Em nossa sociedade capitalista, sobretudo na fase neoliberal e privatizante que atravessa há cerca de duas décadas, existe serviço público na região capaz de assegurar esse atendimento, tratamento e acompanhamento? Por que esses aspectos da tragédia não são pesquisados, nem discutidos?

5) Por que não têm sido ouvidos juristas competentes sobre os aspectos penais envolvidos em atos de jovens esquizofrênicos, mesmo que esses atos sejam chocantes, brutais e injustificáveis como os que abalaram a escola do Realengo? Se Wellington tivesse sobrevivido, ele poderia ser levado a júri e condenado à prisão? É correto tratá-lo raivosamente como “criminoso” e “assassino” como qualquer jovem normal e imputável, esquecendo seu prolongado e negligenciado sofrimento mental? A dor merecida pelas vítimas de sua insanidade e a solidariedade com os familiares dos alunos mortos e feridos devem impedir a solidariedade com os familiares do autor dos disparos e a compaixão pelo jovem que premeditou e executou o massacre e acabou sendo vítima de seus próprios atos tresloucados?

A tragédia do Realengo precisa ser debatida de forma séria e multilateral se a intenção for evitar a repetição de ocorrências semelhantes e não apenas disputar índices de audiência.

É preciso insistir: tudo que é humano é inseparavelmente individual e social. Inclusive a loucura e suas consequências. O capitalismo contemporâneo incentiva, mais do que nunca, o individualismo, a competição, a insensibilidade. Exalta os vencedores e despreza os derrotados. Pode queixar-se de colher os frutos de seu darwinismo social?

Internem a Globo? O locutor William Bonner anunciou ontem à noite (11/04) em tom dramático pelo Jornal Nacional, transmitido pela Rede Globo para todo o país, que o “homem” que assassinou “covardemente” alunas e alunos da escola carioca Tasso da Silveira mantinha contatos com um grupo “terrorista” supostamente islâmico, insinuando que esse grupo o poderia ter influenciado a planejar e executar o ataque sangrento à escola.

Era o que faltava. A Globo encontrou a linha ideal de investigação policial para tentar impedir qualquer discussão séria e abrangente sobre as causas que levaram à tragédia do Realengo e para deslocar as responsabilidades por essa tragédia da direita para a esquerda do espectro político. Nada de falar na esquizofrenia do jovem Wellington de Oliveira, nem na falta de apoio e tratamento que agravou sua enfermidade. Nada de recordar as perseguições e humilhações que sofreu quando era aluno da escola atacada. Nada de mencionar as informações sobre armas e massacres que podem ser acessadas facilmente na internet. Nada de aludir à cultura de individualismo, competição e insensibilidade disseminada pelo capitalismo contemporâneo. Nada de referir-se aos filmes, jogos e exemplos de truculência e crueldade que vêm dos Estados Unidos e das outras potências imperialistas. A grande questão passou a ser, para a Globo, os contatos de Wellington com um alegado grupo “terrorista”, que pode nem ser real, mas criado pela imaginação doentia do jovem.

Acresce que para os monopólios capitalistas de informação como a Globo a palavra “terrorismo” abarca tanto os atos de terror propriamente ditos e as organizações que os praticam quanto à resistência armada de povos oprimidos, como o palestino. Em contrapartida, para esses monopólios da informação, Estados, exércitos e partidos como os de Israel e dos Estados Unidos, que bombardeiam e devastam outros países e assassinam seletivamente seus líderes, não praticam o terrorismo. Assim, ao tentar envolver um suposto grupo “terrorista” nos atos tresloucados do jovem Wellington, a Globo busca comprometer setores que a população costuma considerar de esquerda no massacre justificadamente repudiado.

No esforço para montar essa versão tendenciosa, a Globo não se constrangeu sequer com uma objeção de simples bom senso: por que algum grupo terrorista, de direita ou de esquerda, teria interesse em insuflar um ataque à modesta escola municipal de bairro periférico do Rio de Janeiro?

Para revestir de alguma credibilidade a insinuação, o Jornal Nacional ouviu o ministro da Justiça que se prestou a declarar que a Polícia Federal apoiará todas as linhas de investigação da Polícia Civil do Rio de Janeiro, inclusive a do alegado envolvimento de grupo “terrorista” com as maquinações do jovem Wellington de Oliveira. O que não consegue a poderosa Globo?

terça-feira, 26 de abril de 2011

26.- A Ciência é masculina? É sim senhora

Porto Alegre * Ano 5 # 1727

A abertura desta edição não pode ser diferente. Hoje a Maria Clara, minha neta, filha da Clarissa e do Carlos, faz 5 anos. Ela encerra o ciclo de comemorações aprilinas[i] iniciada com os 6 anos do Guilherme, dia 8; com os 4 anos do Antônio, dia 19; e com a bi-comemoração evocada ontem aqui.

A Maria Clara – que não desmente a garra de sua bisavó e minha mãe, de quem herda o nome – quando nasceu em 2006, pôs as mulheres em vantagem em termos de gênero entre meus netos [situação era Maria Antônia (1999) e Guilherme (2005)]. Em 2007, esta relação fica igualada com a chegada do Antônio. Em 2009, o Pedro põe os homens em vantagem e em 2010 o Felipe amplia uma hegemonia masculina. Neste outono, pelo anuncio querido da Clarissa e pelo Carlos soube que, quase no ocaso da primavera, serei um hepta-avô. Então, a hegemonia continuará masculina.

Este prosaico assunto dá azo a que reparta com meus leitores o envio à editora Unisinos, na última quarta-feira, uma versão ampliada de meu livro A Ciência é masculina? Esta, em sua quinta edição deverá ter suas atuais 110 páginas ampliadas para algo em torno de 150. Agora, a torcida para ver vir a lume [uma boa recomendação é visitar um dicionário e ver as muitas acepções para esta palavra; vir a lume: vir à luz, especialmente ser publicado] esta reedição que muito me envolveu depois que terminei a gestação do Memórias de um professor: hologramas desde um trem misto.

A partir da nova edição a dedicatória – que tenho usado para a contestação de que o livro não é machista, como poderia sugerir o título e a sua resposta [É sim, senhora! que está na primeira página] – é ampliada: Para Maria Antônia e para Maria Clara, minhas netas, que, afortunadamente, serão mulheres em novos tempos e para Gelsa, minha companheira, cujo fazer acadêmico ajuda a chegada destes novos tempos.

Vale acrescentar que são os desejados novos tempos, referidos ofertório acima que se continua perseguindo. Isto ocorre especialmente nas centenas de falas que tenho proferido. Nestes anos de circulação de A Ciência é masculina? (a primeira edição é de novembro de 2003) dentre o leque de opções de palestras que ofereço (ver na minha página), aquela mais solicitada é a do livro que agora anuncio uma nova edição. Já a realizei em quase todos estados do Brasil (não estive ainda no Acre, Amapá, Piauí e Tocantins). Também já a proferi na França, México, Argentina, Uruguai e Colômbia.

Posso parecer presunçoso, mas tenho sempre a sensação de que algo se transforma. Os homens passam a atender como não somos machista por acaso e parecem conseguir superar estes sentimento e às mulheres talvez se abram possibilidades de ações para facilitação da não tão utópica chegada de novos tempos.

Há situações singulares: Um colega da Universidade Estadual de Maringá, em outubro de 2006, encomendou 20 exemplares deste livro. Ante minha curiosidade, eis excertos da resposta do professor dr. Ourides Santin Filho, do Departamento de Química: “[...] Eu trabalho com a disciplina de História, Epistemologia e Filosofia da Ciência, e sempre abordamos a influência do catolicismo na sociedade e ciência ocidentais, em particular na Idade Média, como é de praxe, tentando remover-lhe a pecha de 'idade das trevas'. Neste ano, ao abordar o evolucionismo de Darwin, convidei os alunos a me explicarem como convivem com dogmas católicos e a profissão de (muitos deles) professor de biologia. O resultado se. pode imaginar... Não resisti em apresentar seu pequeno / grande opúsculo aos meus alunos, e trabalhar exaustivamente em aula com fragmentos dele. O resultado aí está. Sempre conto com a esperança de que seu pequeno livro vá revolucionar velhos modelos. Mais uma vez obrigado e grande abraço [...]” Alguém que escreve livros pode ter alegria maior.

Outra referência que envolve este livro: No dia 02 de junho de 2010, partia, para reencontrar Rondônia depois de 35 anos. Levava 150 exemplares do A Ciência é Masculina? para Ariquemes. Já em abril remetera 70 exemplares autografados com dedicatórias pessoais para Porto Velho. O professor que nessa jornada fez seis falas (duas das quais A Ciência é masculina?) em três dias foi muito diferente daquele que deu umas aulas de Química em 1975 no Projeto Rondon, no campus avançado da UFRGS em Porto Velho.

Um capítulo que foi mais extensamente atualizado é aquele que se serve apresenta um razoável indicador: o número muito pequeno de mulheres que ganharam o Prêmio Nobel. Elas são apenas 16 entre os laureados nas Ciências (duas em Física, quatro em Química e dez em Medicina ou Fisiologia; destas 16, apenas 3 são exclusivos a mulheres), em um universo de cerca de 540 premiados – menos de 3% –, pois, mesmo que se tenham distribuído prêmios desde 1901, nos anos das duas guerras mundiais não houve premiações, mas há anos, especialmente nos mais recentes, em que o prêmio é dividido entre dois ou três escolhidos.

Nas outras três modalidades de prêmios Nobel temos: Literatura onze mulheres entre 100 laureados. Paz foi concedida a doze mulheres dentre 95 pessoas e 30 organizações já premiadas. Assim nestes dois prêmios entre 195 láureas foram premiadas 33 mulheres, cerca de 17%. O Prêmio Nobel de Economia – o único mais recente, pois, diferentemente dos cinco outros, que iniciaram em 1901, este começou em 1969 – em 2009, pela primeira vez premiou uma mulher (Elinor Ostrom, nascida em 1933 nos Estados Unidos) junto com um homem.

Assim nesta blogada foi bom partilhar o anúncio da quinta edição de A Ciência é masculina. Breve ele deverá vir retintado. Desejo como sempre que transubstanciados por esse binômio fantástico: escritura ó leitura consigamos – e aqui o plural não é majestático; cada uma e cada um dos leitores e eu – vencer preconceitos. Pretenciosa e sonhadoramente desejo que diálogos catalisados por este livro posam gerar tsunamis de reumanização.

Nesta expectativa votos de uma excelente terça-feira. Amanhã – é provável – que nos leiamos aqui. Até então.



[i] Mais de uma vez escrevi este mês o abrilino, quando o adjetivo correto é aprilino: relativo a ou próprio do mês de abril; (a forma abrilino, existe mas é menos culta, pois o nome do mês em latim é april). Sentido figurado: que preserva o viço da juventude; fresco, viçoso