ANO
8 |
EDIÇÃO
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Hoje
estreio em duas novas turmas. No ser professor há uma não rotina marcada por, a
cada semestre, termos turmas diferente e até disciplinas diferentes. Neste
2014/2 lecionarei na terça de manhã, pela primeira vez Sociedade, Ética e Meio Ambiente para uma turma de licenciatura em
Música e Teorias do Desenvolvimento
Humano, à noite, para uma turma de Pedagogia.
Este
amealhar experiências catalisa trazer a narrativa de uma professora do Belém do
Pará, que em outro momento já teceu histórias aqui. A Conceição Cabral
escreveu-me: “Querido professor
Chassot, o texto é meu, mas a história é do seu amigo, meu marido, Carneiro”. Em homenagem às alunas e aos alunos da Pedagogia e da
Música, que conhecerei hoje trago a narrativa que segue. As fotos são do
arquivo pessoal do José Carneiro.
Memórias da
escola: narrativas de estudantes de outros tempos
Quem nunca prestou atenção em uma boa história numa
sala de espera? Nestas férias, peregrinei por várias delas, a esperar por
médicos, exames e a ouvir histórias. Ontem, em mais uma sala de espera, tive a
agradável companhia do marido e foi dele que pude ouvir a melhor história desta
temporada, que divido com vocês.
Concluído o curso Ginasial em Castanhal – algo
equivalente aos quatro últimos anos do Ensino Fundamental - Carneiro se
matriculou no Curso Normal, único e recém-ofertado curso de nível Médio naquela
cidade do interior, nos início dos anos 60. Vale informar aos mais novos que
esse era curso de formação de professores para a educação infantil e anos
iniciais, chamado também Magistério. No ano seguinte, tendo ingressado no
serviço militar, teve que deixar Castanhal e transferir seu curso para Belém, no
caso para o Curso de Magistério, à época conhecido como Escola Normal. Entre as
tantas dificuldades enfrentadas com o afastamento da casa dos pais, uma delas
lhe pareceu a, digamos, mais difícil: cursar uma disciplina cuja denominação
era algo como “Recreação para a Infância”.
O curso normal, tradicionalmente frequentado por
mulheres, abrira matrículas para rapazes, mas parece que não os atraía muito,
pois a turma do Carneiro era composta por 48 moças e apenas dois rapazes - ele
e seu colega, Adir. No dia da aula prática de Recreação, a professora, uma
bailarina profissional, buscou envolver todos os alunos em cantigas, rodas,
danças e piruetas, próprias para a recreação na infância. Importante dizer que
àquela época meu marido já tinha a altura que tem hoje. Em meio à aula, o
Carneiro chamou o Adir para um canto e sussurrou.
- Adir, não tem condições. Eu não vou fazer isso.
- Então tu não vais concluir o curso, rapaz. A
disciplina é obrigatória.
- Não tem condições. É só o que eu tenho a dizer.
Ao final da aula, Carneiro chamou a professora e
apresentou sua arrazoada justificativa, infelizmente, esquecida ou não revelada
a mim. A professora olhou pra ele e falou:
- Ah, tu não vais assumir uma sala de aula, né?
- Nããão!
- Então, tá. Estás dispensado.
E assim ele foi embora feliz da vida. E concluiu
seu curso de Magistério, para ensinar crianças, sem cursar “Recreação para a
Infância”. E, de fato, ele nunca assumiu o magistério nos anos iniciais, embora
tenha se tornado professor, inclusive da mesma Escola Normal, poucos anos
depois.
A situação vivida pelo Carneiro traz a história de
uma época em que as escolas deixavam aos poucos de ser específicas por gênero e
passavam a "misturar" os sexos. Mas traz também a representação
feminina para a docência na educação infantil, legitimada através dos tempos.
Uma representação que, passados 50 anos do episódio relatado pelo Carneiro, se
mantém nos dias atuais, quando os atuais estudantes de Pedagogia, do sexo
masculino, têm dificuldade de estagiar em Creches ou Unidades de Educação
Infantil, pois muitas diretoras não permitem. Assim, os rapazes têm suas fichas
de estágio assinadas por elas, apenas para não ficarem prejudicados. A
negativa, embora não dita, se vincula certamente à questão da sexualidade e
moralidade.
Voltando à narrativa do Carneiro naquela sala de
espera, eu ri muito da história e rindo imaginei-o se vendo, com seus 1,80 de
altura e as mãos enormes que tem, pegando nas mãozinhas das crianças e saltando
ao final de um “Atirei o pau no gato”. Ficou sem essa formação e resignou-se a
brincar, com as nossas crianças da família, com mágica de “Tirar o dedo”.
Ainda na sequência da narrativa sobre memórias da
escola, naquela sala de espera, ele me contou que certa vez o diretor da
mesma escola, ao tomar conhecimento de que ele estava no Exército, mandou lhe
chamar. Queria que ele ajudasse no preparo das turmas para o desfile escolar do
Dia da Raça. Prontamente, e provavelmente orgulhoso, ele aceitou. Talvez, como
compensação àquela cometida falta. E o fez com competência. Afinal, desde que
entrou no Exército, era o que fazia religiosamente todas as manhãs, embora,
pela rotina e comida ruim, esse tivesse sido o pior ano da vida dele. Mas aí
são outras histórias, das quais já ouvi muitas delas, na sala da nossa
casa.
Querido amigo, obrigada por publicar meus rabiscos em espaço tão importante de divulgação de ciência(s) e cultura(s). Lisonjeada. Grande abraço. Conceição
ResponderExcluirVejo que vais começar uma disciplina parecida com a que ministro na Pedagogia. Sou professora de "Bases Biológicas do Desenvolvimento Humano", mas, apesar de ser bióloga, já começo o curso dizendo que devemos compreender o corpo humano não apenas como herança biológica, mas como um corpo que reflete também condições culturais, sociais e emocionais. Já perdi a identidade de bióloga há muito tempo. (risos)
ResponderExcluirMuito querida Conceição,
Excluirfico contente que gostaste de ‘nossa’ publicação. Fico feliz que também o personagem central tenha gostado.
O blogue, diariamente com entre 300 e 400 acessos, está a disposição para teus textos. Experiências acerca de Ensino de Ciências são bem-vindas.
Temos semelhanças. Minhas duas disciplinas na graduação, estreadas nesta terça-feira: Ética, Sociedade e Meio Ambiente e Teorias do Desenvolvimento Humano fazem-me cada vez menos químico. Sou um professor de Ciências, com muito orgulho.
Caro amigo: o texto é da Conceição, mas o ego inflado é meu. Grato pela publicação dessas memórias, tão comuns à nossa amizade e convergente nas nossas vidas de professores. Abs
ResponderExcluirIgualdade?
ResponderExcluirHomens dum lado, em outro mulheres
E cada um fazendo que lhe compete
Mulher mexe com a casa e os talheres
Pois machismo dita o que faz o valete.
Enquanto mulher não dispara canhão
O seu homem não ensina criancinhas
Porque este foi criado para ser capitão
E a mulher para cuidar de menininhas.
Essa discricionária divisão de trabalho
Não encontra uma explicação racional
Sequer é um bom exemplo de atalho
Para tornar um gênero ao outro igual.
Portanto esse parâmetro assim falho,
É que torna a sociedade tão anormal.
Meu caro Jair,
Excluirparadigmático esta tua criação poética acerca das divisões por gênero. Realmente o homem-macho é um explorador da mulher-fêmea.
Celebro teu retorno. Ontem quando publiquei sobre o encantador de falcões lembrei-me de ti que, enquanto aviador, deves ter envolvido com perturbações de aves em teus voos e quanto certas aves de rapinas são parceiras dos humanos.
A amizade e a admiração do
achassot
Ufa, foi difícil chegar ao final da leitura do poema, Jair. Ainda bem que cheguei e entendi a mensagem. Cordialmente.
ResponderExcluirMestre Chassot viajei na narrativa, pois sou do tempo do ginasial e das famosas belas normalistas e suas saias plissadas. Ri muito imaginando nosso amigo professor homenzarrão sendo instado a encenar passos de dança. Boa a lembrança de que ainda hoje persiste o preconceito, como já disse antes, o problema é cultural e está enraizado em nosso subconsciente, por mais que o neguemos. Aproveito para parabeniza-lo pelo conteúdo tão eclético do seu blogue.
ResponderExcluirAbraços.
Em tempo, excelente a sintetizada do nosso poeta Jair!
ResponderExcluirBoa noite!!
ResponderExcluirGostaria de manifestar minha alegria ao ler essa narrativa. Sou de Castanhal, no Pará, onde começa a saga do protagonista. Fiquei super feliz e gostaria de saber uma coisa dele: quando estudou em Castanhal, foi no Colégio Cônego Leitão? Uma escola centenária que por muitos anos foi a única da cidade. Um abraço, Damiana Nascimento
Queridos Conceição e José,
ResponderExcluirvejam a mensagem de uma castanhalense à blogada de 29JUL2014 de lavra de vocês.
Lamentavelmente não deixou um endereço para resposta, que eu não saberia dar.
Saudades
Como a rede mundial faz espraiar nossas narrativas! Que registro legal!
ResponderExcluirgrande abraço, mestre amigo
Conceição Cabral