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terça-feira, 19 de abril de 2011

19.- Filhos de Cam, filhos do Cão

Porto Alegre * Ano 5 # 1720

Minha tese: “religiosos ou não, estamos imerso em mundo religioso’ nesta semana, dita santa, por sobejas razões está ratificada. Nas aulas de ontem, tanto para turma de música em Conhecimento, Linguagem e Ação Comunicativa, quanto na Universidade do Adulto Maior o tema foi envolvente.

À noite, o momento maior na cultura/religião judaica. Convidados pela Liba comparecemos irmã, filhas, netos, sobrinhos e genro ao seder de Pessach no Lar dos Velhos. Éramos 12 em nossa mesa onde a Liba, nos seus quase 90 anos era indubitavelmente a mais feliz e emocionada.

A cerimônia começou com cantos e orações em hebraico e em português. O ritual foi marcado pela explicação do símbolo de cada uma das iguarias presentes à mesa, que recordavam a ceia que marcou a passagem dos judeus de escravos do faraó a povo livre. Esses, na noite que então se celebrava, iniciaram a marcha à terra da promissão. As três fotos registram momentos significativos da noite. Na primeira uma cena da mesa; na seguinte: a Liba e sua irmã, tia Tereza, a Gelsa e eu. Na terceira, os três visitantes da França (Júlia, Benjamin e Fabrice) e a Gelsa e comigo.


Volto a tema presente nas aulas e na celebração da noite: a religiosidade. Também parece claro o quanto, algumas vezes, as religiões (ou é a religiosidade) geram/alimentam preconceitos. Lembro as cavalhadas – uma celebração portuguesa tradicional que teve origem nos torneios medievais, que envolvia temas do período da Reconquista da Península Ibérica ‘ocupada’ por islâmicos há oito séculos. Havia/há uma regra: os cristãos sempre derrotavam os mouros, na continuada luta entre o bem e o mal. Por que o negro, ainda sofrem tantas discriminações?

O Prof. Dr. Mário Maestri, renomado historiador e pesquisador do Programa de pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo traz uma explicação, a propósito do deputado paulista do PSC (Partido Social Cristão!) que zoa dos afrodescendentes dizendo que africanos descenderiam de “ancestral amaldiçoado por Noé”. O texto – publicado em Zero Hora –, merece ser compartilhado com os leitores. Lateralmente: zoado do verbo zoar = fazer troça de; rir de alguém ou fazer-lhe brincadeira de mau gosto, por divertimento; caçoar, gozar, poderia ser um bom sucedâneo ao termo ‘bullying’ tão presente na imprensa desde o Massacre do Realengo.

Filhos de Cam, filhos do Cão Marco Feliciano, do PSC paulista, propôs em sua página no Twitter que os africanos descenderiam de “ancestral amaldiçoado por Noé”, conhecendo por isso a África Negra a “maldição do paganismo, o ocultismo, doenças”, como a aids. A sina terrível que pesaria sobre os afrodescendentes nasceria do primeiro ato de “homossexualismo da história”, praticado por um filho de Noé. Para o deputado federal, pastor e empresário, tais sandices não seriam racismo ou homofobia, mas teologia pura. Suas afirmações desvairadas constituem apoio às declarações do deputado Jair Bolsonaro, que motivaram repúdio nacional.

Na Antiguidade, a escravidão justificou-se, sobretudo, pela lei do mais forte. Mais tarde, Aristóteles inovaria propondo a inferioridade do “escravo” e servidão natural. Na retomada da instituição terrível, quando da luta pela Ibéria, cristãos e muçulmanos escravizaram-se mutuamente, por negarem, uns e outros, a verdadeira fé! A rejeição da palavra divina mostrou-se justificativa perneta quando os portugueses passaram a levar para Portugal, em 1444, os primeiros cativos negro-africanos. Eles não eram infiéis, pois não negavam a doutrina reta, que desconheciam! No esforço português de racionalização da escravidão negra, muitas justificativas foram abandonadas por serem pouco funcionais. Entre elas, a maldição que pesaria sobre os negro-africanos, por descenderem de Cam. Uma história velha como o Dilúvio!

Conta a legenda bíblica que, após pousar a arca em terra seca, Noé e seus três filhos, Sam, Cam e Jafet, ocuparam o mundo purificado. Ao frutificar a terra, o patriarca cultivou as vinhas e descobriu o vinho. Ao beber o inebriante líquido, protagonizou o primeiro pileque da história, despindo-se “completamente dentro de sua tenda”. Nesse ponto, divergem as versões bíblicas. As mais amenas, propõem que Cam viu o progenitor nu e contou aos irmãos. As mais infamantes, que fez muito mais com o progenitor desprotegido! Ao recuperar-se da esbórnia, Noé amaldiçoara a Canaã, filho de Cam, que nada fizera, mas responsável pelo pecado do pai, na visão da época. Eles e seus descendentes seriam doravante “escravos” dos tios e de seus descendentes.

Em meados do século 15, na célebre Crónica de Guiné, Eanes de Zurara registrou as primeiras capturas de negro-africanos nas costas da África e as tentativas moral-religiosas de justificá-las. O que não foi fácil, os africanos nada haviam feito contra os europeus, não motivando, portanto, sequer uma “guerra justa”. O cronista real refere-se à predestinação bíblica ao cativeiro. Acreditava que os “negros” seriam já escravos dos “mouros”, “por causa da maldição que depois do dilúvio lançou Noé sobre seu filho Cam, pela qual o maldisse, que sua geração fosse sujeita [escrava] a todas outras do mundo”. Sem muito convencimento, lembrava partilharem daquela interpretação o arcebispo dom Rodrigo, de Toledo, “Sosepho, no livro das Antiguidades dos Judeus”, “Gualtero” e “outros autores que falaram das gerações de Noé depois do saimento da arca”. A maldição justificaria o tratamento como cães, dos descendentes de Cam.

A explicação bíblica da escravidão negro-africana foi abandonada pelos primeiros ideólogos portugueses e europeus, por não haver no livro sagrado qualquer ligação entre os filhos de Cam e os negro-africanos.

Ao contrário, a ciência registra que as formas primordiais da espécie humana são velhas de 4 milhões ou mais de anos – não tendo a história da humanidade os 6 mil e pico anos sugeridos pela Bíblia. Propõe também a origem unitária do gênero humano, tendo como berço o Continente Negro. Para horror dos racistas orgulhosos e envergonhados, somos todos irmãos e africanos!

Este texto se insere também em outra dimensão. Hoje evocamos o ‘Dia do Índio’. Este, como o Negro, de vez em vez, alvo de nossas linguagens preconceituosas: ‘programa de índio’, ‘coisa de negro’ ou o doloroso ‘denegrir’. Presente esta realidade desejo a cada uma e cada um uma saborosa terça-feira, que para mim se faz muito especial.

Na dimensão familiar: uma celebração querida. Hoje é o quarto aniversário do Antônio: o segundo dos três netos que celebra em abril seu natalício. Será bom estar, mais uma vez, em uma confraternização familiar antes das aulas de Conhecimento, Linguagem e Ação Comunicativa para a turma de Filosofia e Educação Física. A este querido registro, que com votos de felicidades continuadas ‘ao nosso pensador’ e a Laura e ao Gabriel, adito o convite para nos encontramos aqui amanhã.

6 comentários:

  1. Caro Chassot,
    Racismo me enoja, gostaria de nunca ter que escrever sobre iso, no entanto, já produzi vários textos sobre o assunto. Abaixo reproduzo um trecho: “Cor não é raça”, escrevi o seguinte: “Querer definir o homem como espécie e dividi-lo em raças de acordo com a cor da pele ou tipo físico é coisa mais estúpida que se pode fazer. Raças humanas não existem. A cor da pele, uma adaptação evolutiva aos níveis de radiação ultravioleta vigentes em diferentes áreas do mundo, é expressa em menos de dez genes dentre os milhões que compõem o genoma humano.”
    Se você quiser posso enviar por email matérias de minha lavra sobre o tema.

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  2. Muito estimado Jair,
    me alegro que juntos possamos fazer de nossos blogues tribunas vigilantes na luta contra preconceitos que como o racismo são odiosos. Já estou abrindo na pasta ‘blogue’ uma sub-pasta Jair, para amealhar teus escritos.
    Uma boa terça-feira, quando evocamos o ‘Dia do Índio’. Este, como o Negro, de vez em vez, alvo de nossas linguagens preconceituosas: ‘programa de índio’, ‘coisa de negro’ ou o doloroso ‘denegrir’ e obrigado pelo teu comentário
    attico chassot

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  3. Caro Chassot,

    como tu dizes, é quase impossível viver no ocidente sem estar imerso num ambiente "religioso"; também concordo contigo que o religioso dá origem a muitos preconceitos. Aliás, muitas denominações se alimentam do preconceito: foi assim que nasceu diversas delas e até sistemas religiosos.

    Por outro lado, as religiões também possuem momentos de "eterna" felicidade, como a que tu retrataste nas fotos de hoje. É preciso viver o lado bonito e prazeroso desses ambientes e denunciar, com veemência, os preconceitos que grassam em nosso meio.

    Uma grande terça-feira para ti e para os teus leitores.

    Garin

    http://norberto-garin.blogspot.com/

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  4. Muito estimado colega Garin,
    é muito bom ter tua parceria intelectual no Centro Universitário Metodista do IPA e também neste blogar madrugador.
    Obrigado por veres nas fotos do seder de pessach um momento gostoso na religiosidade,
    uma muito boa terça-feira quando evocamos o ‘Dia do Índio’. Este, como o Negro, de vez em vez, alvo de nossas linguagens preconceituosas: ‘programa de índio’, ‘coisa de negro’ ou o doloroso ‘denegrir’.

    attico chassot

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  5. Bom dia!

    prmeiro, agradeço as últimas blogadas: estou lendo e salvando todas.
    Semana passada não sabia como iria abordar a Páscoa com as crianças, envolvendo os doces e indo um pouquinho além deles. Bom, vamos pesquisar sobre os filhotes dos animais, gestação e etc.,e verificar qual animal poderia substituir o Coelho, caso viesse a se aposentar.

    uma super boa semana a todos

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  6. Marília querida,
    tua criatividade como professora me encanta. Alegra-me que estejam te agradando os textos pascoalinos que sugeriste. Convidei o Garin para um texto conjunto sobre Páscoa.
    Obrigado pelos teus comentários...
    attico chassot

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