Quase parece natural que nas segundas-feiras as blogadas desaguem
em produto de leituras de jornais, algo sempre saboroso das manhãs de domingo.
A de ontem foi muito especial.
Lembro, ainda nos anos 1990, quando amealhava recortes de
jornais e revistas e os levava numa agência da Varig, para a Gelsa recebe-los
em agência da ‘embaixadora do Brasil’ na Europa. Era uma maneira de amainar
saudades.
Este semestre que separação se estenderá por mais de uma
centena de dias, temos lido jornais muito juntos, aos domingos, mesmo que ela esteja
em Aalborg, na Dinamarca (e não lhe possa alcançar o chimarrão). O Skype é um
bálsamo para a saudade.
Ontem lemos vários artigos e notícias: ela folhando
jornais em suporte digital e eu em papel. Fizemos uma ‘dosimetria’ e escolhemos
juntos um texto de Henrique Goldman para tecer a blogada da abertura da semana
que despedirá outubro. Ela e eu desejamos que saboreiem Os canapés de Bauman - Leeds, 2011. Eles só puderam ser oferecidos porque, no ano passado,
Zygmunt Bauman não pode vir a Porto Alegre participar do “Fronteiras do Pensamento”.
Eu estava em Londres, no ano passado, quando fui contatado
pelo ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento para gravar em Leeds uma
entrevista com Zygmunt Bauman, escritor e sociólogo do qual — santa ignorância!
— nunca tinha ouvido falar.
Bauman é um dos maiores pensadores da atualidade, autor
de livros como "Vida Líquida" e "Medo Líquido", entre
dezenas de outros. Com percepção agudíssima do mundo e um texto mais poético do
que acadêmico, é mestre em expor o elo invisível entre temas na aparência
desconexos, como a vida de Sócrates (o filósofo, mas poderia ser o jogador) e o
Facebook, Jean Paul Sartre e a ONU ou Barack Obama e a psicanálise freudiana.
Quando Bauman abriu a porta de sua casa, levei um choque.
Fisicamente, era como imagino que serei aos 88 anos. Numa espécie de déjà-vu às
avessas, senti que encontrava comigo mesmo no futuro. Um dia, já velho, talvez
recordasse o encontro com um jovem (que era eu) — como num conto de Borges.
Zygmunt Bauman e o
cineasta Henrique Goldman [autor do texto transcrito da Ilustríssima da Folha de S.
Paulo de ontem, 28OUT2012] durante a entrevista na casa do sociólogo em
Leeds
Senti de imediato um carinho gigantesco por aquele
velhinho. Entrando na casa apinhada de livros, cheirando a Leste Europeu, fiquei
com vontade de perguntar se ele também se reconhecia em mim, mas, com vergonha
de parecer presunçoso, me contive.
Depois, quando vim a saber que ele nasceu em Poznan, na
Polônia, a poucos quilômetros de onde nasceram meus avós paternos, passei a achar
que provavelmente descendemos de uma mesma Eva mitocondrial judaico-polonesa.
A caminho de Leeds, a equipe de três cinegrafistas e eu
já tínhamos almoçado e estávamos atrasados. Queríamos começar logo a
entrevista, mas Zygmunt nos conduziu até a sala de estar, onde um verdadeiro
banquete, preparado por ele mesmo, estava servido.
Era uma enorme variedade de canapés, saladas, frios,
tortas e sobremesas. Insistimos em primeiro fazer a entrevista para depois
comer, mas ele foi inflexível.
Como uma mãe judia, estava mais interessado em nos
alimentar do que em dissertar sobre a vacuidade das relações interpessoais em
tempos de globalização. Quando, já farto, recusei o segundo pedaço de
cheesecake, ele disse: "Por favor, me dê mais uma chance. Só mais um pedacinho".
Na maravilhosa entrevista que concedeu ao Fronteiras do
Pensamento (que pode ser vista em bit.ly/zigbauman ), ele fala de temas como
conflitos de identidade, obsolescência da nação-Estado e ambivalências da vida.
Mas, numa pausa, ele me levou a uma salinha ao lado,
onde, acendendo seu cachimbo, me falou -com enorme senso de humor- da sua vida:
solidão, dores da velhice e o passado que não volta.
No dia seguinte, escrevi um e-mail a um amigo:
"Conheci Zygmunt Bauman, um velhinho maravilhoso por quem estou
apaixonado. Não paro de pensar em tudo o que ele disse e de reviver cada
momento. Nunca uma pessoa me comoveu tanto pela combinação de inteligência e
sensibilidade".
Passei a devorar tudo o que ele escreve e escreveu. Sua
voz e seu olhar são absolutamente presentes, mas parecem emanados das
profundezas de tempos passados -para dissecar e revelar o nosso.
Desde aquele primeiro encontro, aquela forte impressão de
espelho do tempo e déjà-vu ao avesso se dissipou, mas não a admiração e a
vontade de ouvi-lo.
Sempre que posso, arrumo uma desculpa e volto a Leeds
para revê-lo. Sou invariavelmente recebido com banquetes nababescos.
Eventualmente temos conversas sérias.
Desde que conheci Zygmunt, engordei uns quilinhos. É uma
relação que me nutre muito.
E, eu acrescento: mesmo que se Bauman só servisse pão
dormido e água, certamente, ainda causam uma santa inveja estas visitas.
Quisera estar em Leeds, para fruir de alguma
O alimento da alma é a palavra, refrigério do espírito. Só um homem sábio sabe indentificá-lo e glorificá-lo.Mas nessa blogada o que encanta não é só a justa reverência a Bauman.
ResponderExcluirO que salta ao olhos é a singela manifestação de afeto que demonstra o casal, que mesmo separado por tão grande distância, permanecem juntos em tarefa tão simples como a leitura. Sei que não é o estilo do mestre, mas este romance daria um best seller.
abraços
Antonio Jorge
Meu caro Antonio Jorge,
ResponderExcluirhá romances que, ao invés de suporte papel ou digital, são ‘suportados’ pelos parceiros de vida.
Obrigado por, a cada dia, qualificares este blogue,
attico chassot
Bauman é um dos pensadores mais lúcidos da atualidade. Recomendo o seu último livro traduzido no Brasil "Isto não é um Diário". Muito interessante.
ResponderExcluirMárcio Porto
Limerique
ResponderExcluirSabe-se que a igreja muito erra
Mas em geral seus enganos enterra
Pois na bíblia está escrito
Não importa que seja mito
E o sol gire em torno da terra.