A comemoração dos duzentos anos de uma das mais
importantes revistas de medicina enseja em artigo de Drauzio Varella, publicado
na contracapa da Ilustrada da Folha de S. Paulo deste sábado, 20 de
outubro, que conheçamos que apenas no início do século 20 surgiram as técnicas
de assepsia e os rituais nas salas de operação.
É de surpreender, como em tempos tão próximos, ainda se
convivia com práticas quase do medievo. O texto permite conexões com assuntos
de História da Ciência tantas vezes presentes aqui. Vale fruí-lo e ver as vantagens
que temos em relação a nossos antepassados não tão distantes.
Nota: Textos entre colchetes [...] e ilustrações são do editor
do blogue.
Duzentos anos de
medicina "The New
England Journal of Medicine", a revista de maior circulação entre os
médicos, completa 200 anos. Publicado em 1802 [provavelmente um
equívoco; deve ser 1812], o primeiro número trazia um artigo de John Warren
(1753-1815), um dos fundadores da Harvard Medical School. Nele, o médico
descrevia os sintomas e o tratamento de um religioso que se queixava de dores
fortes no peito, aos menores esforços.
Do ponto de vista científico, a descrição dos sintomas de
insuficiência coronariana é impecável, mas o tratamento realizado é de
assustar. O paciente, um "clérigo pletórico", [= relativo à pletora; superabundância de humores ou sangue] foi
tratado com estimulantes, sangria e aplicações locais de éter. Em seguida,
"recebeu novas sessões de sangria, ópio, laxativos poderosos e agentes
cáusticos aplicados sobre a pele do esterno".
Como os sintomas persistiram, Warren tentou uma resina de
asafétida — planta caracterizada pelo odor pútrido — e aplicou nitrato de prata
nos braços e nas coxas, com a intenção de abrir fissuras na pele para drenar os
maus fluidos.
Embora sejam consideradas absurdas, é preciso entender
que essas práticas pareciam sensatas numa época em que os médicos e a população
acreditavam que os estados de saúde e doença dependiam do equilíbrio entre o
fluxo dos quatro humores corpóreos: sangue, fleuma, bile negra e bile amarela.
Para eles, um bom remédio deveria provocar sintomas
suficientemente intensos para restaurar a harmonia entre os humores. Por
exemplo, alguém convencido de que suas agruras resultavam do mau funcionamento
dos intestinos, sentiria alívio ao receber vomitórios e laxantes. Eram os
tempos da "medicina heroica", segundo a qual quanto mais grave a
enfermidade, mais agressivo o tratamento.
Em 1812, o "The New England" recomendava
"sangria copiosa" nos casos de ferimento por arma de fogo, estratégia
bizarra, mas que conseguia diminuir os sinais de inflamação e a temperatura
corpórea, dando a impressão de que não ocorreriam complicações supurativas ou
gangrena. O mesmo procedimento era indicado para abaixar a febre da malária.
Ainda na primeira metade do século 19, o francês Pierre
Louis (1787-1872) criou o "método numérico", ao comparar dois grupos
de pacientes com pneumonia tratados com ou sem sangria, sem encontrar diferença
na evolução entre eles.
A partir daí, a filosofia de ceticismo que tomou conta da
prática médica encontrou em Oliver Holmes (1809-94) sua maior expressão. Em
1860, ele afirmou: "Se toda a matéria médica, como hoje é empregada, fosse
afogada no fundo do mar, seria muito melhor para a humanidade -e muito pior
para os peixes".
Essa postura niilista, no entanto, jamais se tornou
popular, porque nenhum médico encontra permissão moral para cruzar os braços
diante do sofrimento humano.
Em 1846, a revista publicou o artigo em que William
Morton (1819-68) descrevia a anestesia com éter. A descoberta, no entanto,
demorou mais de cinquenta anos para revolucionar a prática cirúrgica, porque os
cirurgiões precisavam decidir se a analgesia justificava os riscos de morte por
septicemia.
Apenas no início do século 20 surgiram as técnicas de
assepsia e os rituais das equipes nas salas de operação, responsáveis pela
redução das complicações infecciosas.
Em 1912, quando a revista completou cem anos, Paul
Ehrlich (1854-1915), em Berlim, sintetizou um composto dotado de ação contra a
sífilis, o Salvarsan. Foi a primeira prova do conceito de que os medicamentos
deveriam ser específicos para a doença e não para cada doente em particular.
A descoberta teve impacto limitado, porque a
especificidade do Salvarsan era mais teórica do que empírica. Apesar de
beneficiar alguns pacientes, a droga provocava efeitos colaterais intensos e
não agia em todos os casos de sífilis.
O pioneirismo do Salvarsan também se manifestou ao expor
pela primeira vez as limitações da abordagem reducionista em medicina: a
sífilis não se restringia ao Treponema pallidum, envolvia comportamento sexual,
aspectos morais e discriminação social. Destruir a bactéria era condição
necessária, mas não suficiente para combater a epidemia.
A revolução da farmacoterapia ainda levaria pelo menos
trinta anos para acontecer. Apenas na década de 1950, cerca de 4.500 drogas
novas entraram no comércio, nos Estados Unidos.
Por mais grotesco que pareça, a medicina moderna não está tão racional na relação custo benefício.A multiplicidade de especializações trazem uma realidade ridícula. "Olha, eu sou ortopedista geral, joelho o senhor tem que procurar um especialista..." O enfêrmo do século XXI, independente da sua moléstia, ao procurar tratamento depara-se com uma infindável quantidade de exames invasivos, traumáticos e com inúmeros efeitos colaterais.Os medicamentos curam um mal e trazem novos dez. O infeliz ao entrar no hospital logo perde o nome, passa-se a chamar, "aquela hérnia do leito dois", "aquele apêndice do leito quatro". Em seguida enfiam-lhe tubos dos mais variados calibres em todos os orifícios possíveis e prováveis. Enfim chegam a brilhante conclusão de que o melhor lugar para recuperação do doente é a sua casa, já que as casas de saúde estão tomadas de infecção hospitalar...
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Antonio Jorge