Porto Alegre Ano 4 # 1338 |
Não quero parecer da idade da pedra, mesmo que tenha sido alfabetizado em uma lousa, mas sou do tempo em sexta-feira-santa não se cantava ou assovia e nem se escutava rádio (e as emissoras então tocavam apenas música sacra), não se varria a casa e não se ordenhava as vacas. Usar martelo (instrumento que os ‘pérfidos judeus’, como se cantava – antes do Concílio Vaticano 2 – na liturgia de trevas, usaram para pregar Jesus na cruz) nem pensar. Quando um dia era feio, se dizia que tinha cara de sexta-feira santa.
Fico surpreso quando sei que redes de supermercado funcionarão hoje. Ontem funcionária de uma rede – aquela que na época natalina trombeteia ‘que há dois mil anos recebeu o seu maior presente: Cristo – disse que hoje receberá R$ 26,00 para trabalhar (um real a mais que o salário de domingo). Vejo essa manhã nos noticiário, todavia, que tradição de colher marcela (ou macela) antes que o orvalho da madrugada desapareça.
Como ontem remexi nos meus baús do tempo de quando em 2002 fiz pós-doutorado em Madri, trazendo reminiscências da Semana Santa, aflorou dois gêneros de anúncios que me prendiam a atenção nos jornais. Trago excerto de texto escrito então, sem muita atualização.
Agrada-me a leitura de esquelas ou avisos fúnebres e dos pequenos anúncios eróticos. Realmente são dois temas bem distintos, e mesmo sem querer fazer média com o leitor ou a leitora, devo dizer que os primeiros têm me deleitado mais. Vou comentar uns e outros, até por que me dei conta – não sem muitos questionamentos – o quanto tinha minha curiosidade atiçada por estas leituras. Mas já antecipo, quanto à segunda de minhas preferências [que neste blogue, publique talvez em um próximo domingo].
Antes de trazer os meus comentários acerca do assunto, leio nesta manhã um anuncio fúnebre, com redação esmerada “o Prof. José Carlos Grijó desta vida se ausentou”. Ele foi colega da Gelsa no Instituto de Matemática. Eu o tive como parceiro co COCEP da UFRGS, onde ele era o Coordenador de Carreira da Matemática e eu da Química. Assim, nessa coincidência do tema elegido para esta sexta-feira- santa a homenagem ao nosso colega que “cumpriu sua peregrinação terena, combateu o bom combate, guardou a fé e partiu na esperança de alcançar a vida eterna, com a graça de Deus e a proteção de Maria Santíssima.”
Sobre meu prazer com a leitura de esquelas, que são os anúncios fúnebres e convite para o funeral (ou missa) por falecido, publicados nos jornais espero não ser classificado como um tanatófilo[Do grego tanatós = morte. Que tem atração pela morte, ou por assuntos letais. Na Espanha tanatório corresponde as nossas capelas mortuárias]. A propósito, lateralmente quero referir um instigante artigo [¿Cómo educar para la muerte? GARCON, Augustin de la Herran et alii. Cuadernos de pedagogía. 310, Febrero 2001, p. 22-25] que li, onde é mostrado o quanto a morte é um tema completamente ausente nos currículos espanhóis (e, acrescento que me parece que vale para os brasileiros), pois a “sociedade atual cobre a morte com um manto de assepsia que impede uma opção pessoal” de alguém até de querer comentá-la.
Um dos primeiros que me instigou convidava para funeral, que corresponde a nossa missa de 7º dia de ilustre morto com 16 nomes e prenomes, seguidos de informações como: conde de..., grande de España, oficial de cavalaria, seguido da listagem de medalhas e placas de honra. Ficava-se sabendo que o ilustre morreu tendo recebido os santos sacramentos, benção de sua Santidade o Papa e sob o manto da Virgem do Pilar. Quem faz o convite é esposa, filhos, netos, viscondessas, marquesas, marqueses e serviçais, todos nominados; mas quem é primeiro entre aqueles que convidam, antecedendo inclusive a esposa-condessa é o confessor, que pela extensão do nome deve ser nobre também. O anúncio era de nível 4.
Devo dizer que ao ler mais de meia dúzia de convites para esta missa, cheguei a programar-me para ir a um este funeral, mas uma forte gripe aconselhou evitar que contaminasse o rei. Devo ter perdido algo que jamais terei oportunidade de assistir.
Os convites dos militares também merecem ser distinguidos nas leituras. Há desde aquele do cabo, morto no cumprimento do dever, que merece um anúncio mais modesto até ao do general que tinha uma medalha por gesto de bravura individual, três medalhas por sofrimento pela pátria e outras tantas de mérito de diversas ordens. Há no intervalo da gradação militar o anuncio da morte de um coronel de infantaria reformado com posse de placas de são Hermenegildo e diversas condecorações de campanha e de paz faleceu cristãmente aos 84 anos.
Sabe-se também que o diretor Del Gran Circo Mundial, morreu aos 26 anos (numa notícia em outra parte se relata que chocou seu carro), tendo a medalha de prata do mérito de Belas Artes, mas recebeu os santos sacramentos. Há também uma esquela que recorda que há um ano, morreu com 94 anos, um jornalista, poeta da Fstremadura [uma autonomia na fronteira com Portugal, próxima a Andaluzia] com prêmio da legião de humor e que seu filho e companheiro não o olvida. Ainda fica-se sabendo que há 4 anos, faleceu aos 97 anos, tendo recebido os santo sacramentos e a benção apostólica um doutor engenheiro de estradas, canais e portos, que era irmão prior do Carmelo secular. Outro anúncio narra que mais um doutor engenheiro de estradas, canais e portos e detentor da gran cruz de mérito civil teve seu enterro celebrado na intimidade. Ao mesmo tempo sabemos que uma mulher extraordinária, querida, admirada e respeitada morreu sorrindo em paz [...] depois de vinte anos de dura luta diária pela vida. Seu marido, filhos, noras e netos e demais famílias na Espanha, na Argentina e na Itália, assim como urbanistas de sessenta e quatro países da [...] pedem uma oração por nossa amada Companheira e Presidente, que por seu expresso desejo terá seus funerais celebrados na intimidade familiar.
A esquela de um diplomata nos dá conta de uma dúzia de condecorações e outras tantas medalhas, da trajetória de embaixador e dos prêmios literários, com as instituições outorgantes e com a sempre destacada menção à recepção dos santos sacramentos e a benção apostólica. Soube depois que a atratividade que as esquelas exerceram em mim, trazendo interrogações acerca de ilustres mortos já fora teme de teses acadêmicas. Realmente encontrei muitas histórias nestes anúncios fúnebres.
Desejo aos que crêem e aos que não crêem uma muito boa Sexta-feira-santa. Um convite para amanhã falarmos em dicas de leitura.
Uma santa "Sexta-feira da Paixão" ao senhor, Mestre.
ResponderExcluirFazendo jus aos ensinamentos e tradições que aprendi com minha avó,após o meio-dia de hoje, nenhum trabalho pesado, nenhuma atitude brusca, nem nada.
Repeito acima de tudo!
Abraços, Professor.
E, até amanhã, "Sábado de Aleluia", curiosa pelas dicas do dia.
Querida colega Thaiza,
ResponderExcluircomo tu vou guardar tradições e ‘abster-me de trabalhos servis’ . Autografo setenta exemplares de A Ciência é Masculina? É, sim senhora! para alunas e alunos de Porto Velho – RO (o que penso ser algo que não quebra mandamentos) procurando fazer cada uma das dedicatórias diferentes. A Gelsa, aculturada em tradições, prepara um peixe.
Que amanhã ressoem aleluias, com afagos
attico chassot
Mestre Chassot, fico pensando em como se gasta dinheiro para realizar funerais, enterros e anúncios de falecimento. Tudo para que? para dar adeus a um corpo que jaz sem vida.
ResponderExcluirPode parecer cruel e insensível o que digo, mas gastar esse dinheiro para despedir-se de um corpo é, na minha visão, desperdício. O corpo vi se deteriorar, mas as lembranças continuarão vivas, e são essas lembranças que devemos nos empenhar em cultivar. Seria de maior utilidade de o dinheiro despendido nesses ritos fúnebres fosse usado para auxiliar aqueles que passam fome e demais necessidades, afinal o dinheiro é mias bem-vindo no auxílio para os vivos do que no adeus para os mortos.
Como disse, pode parecer insensibilidade, mas é minha postura a esse respeito.
Ótimo dia.
Meu caro Marcos,
ResponderExcluiracabo de ritualisticamente saborear peixe nessa tradição de celebrar ‘cristãmente’ a sexta-feira-santa. Leio teu comentário. Aceito, porém ele está desprovido de uma visão de Historiador que és: “eles ~~ nossos mortos ~~ têm suas vidas estendidas porque continuamos a contar suas Histórias e as esquelas – ricas ou pobres – são instrumentos para tal.
Até o cantar de Aleluia,
attico chassot
Mestre Chassot
ResponderExcluirOs mantefatos materiais em questão - os túmulos - são uma importante fonte de pesquisa e estudo. Aliás, é em volta dos cemitérios que começam a ser erguidas as cidades, como uma forma de estabelecer moradia próximo ao local onde repousam os restos mortais dos ancestrais.
Entretanto, era uma época diferente. Não havia tante miséria como há hoje, nem tanta desigualdade. Não digo que os corpos mortos devam ser movidos para qualquer lugar. Nunca. O que digo é que é desnecessária tanta suntuosidade para a acomodação de um corpo inerte e sem vida. Essa, logicamente, é a minha visão sobre isso, e respeito aqueles que erguem mausoléus em memória dos seus familiares, muito embora eu mantenha minha firme convicção de que o dinheiro empreendido para lembrar os mortos seria muito melhor aproveitado para saciar a fome dos vivos, impedindo, assi, que eles também cheguem à condição de não vivos.
Ótimo dia.
Meu querido Marcos,
ResponderExcluirobrigado pela vigorosa tréplica. De acordo. Apenas quis destacar que as esquelas ou anúncios fúnebres são excelente material para entendermos a história. Sou leitor diário dos obituários. É muito significativo que de algumas pessoas não se pode dizer mais que “era um apaixonado pela família para qual gostava de fazer churrasco aos domingos e era fanático pelo Grêmio”. Sabes que no anúncio de me colega, cujo excerto transcrevi na blogada de hoje, tirei informações que desconhecia.
Desde os jardins da Morada dos Afagos, que conheces, na noite de sexta-feira santa, preparando a diga de leitura de amanhã,
uma boa noite
attico chassot