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sexta-feira, 6 de junho de 2014

06.- DE ANDARES E DE PASSARES


ANO
 8
Frederico Westphalen /
Porto Alegre
EDIÇÃO
 2796

Mais uma vez esta edição entra em circulação ao deixar Frederico Westphalen para chegar, depois de mais de seis horas, a Porto Alegre. O dia de ontem — Dia Mundial do Meio Ambiente — envolveu torcidas pela estabilização das condições meteorológicas. Era o temor que os indígenas não pudessem à Universidade.
Uma vez mais, amealho alguns registros, dos diários de um viajor. Desta vez, muito diferentes daqueles que trouxe aqui no domingo, quando falava em uma saga pós-moderna.
Quando na noite de quarta-feira embarquei em meio a temporal atmosférico, logo fui contagiado por inusual alegria entre alguns passageiros. Põem-me a par: a União Frederiquense protagoniza algo inédito: ascende a primeira divisão do futebol gaúcho. Faz a proeza ao vencer por 3 x 0, em Farroupilha, o Brasil, local que poderia até perder por um zero. Pela primeira vez o clube de Frederico Westphalen chega à divisão principal do futebol do Rio Grande do Sul.
Fundado em 03 de agosto de 2010, o União Frederiquense de Futebol é o primeiro clube profissional da cidade. O clube “nasceu” com a finalidade de eliminar rivalidades locais, visto que dificilmente seria possível ingressar profissionalmente com qualquer um dos dois principais clubes amadores do município, Ipiranga e Itapagé. Sendo assim, pessoas ligadas aos dois clubes — e também a outros amadores do município — optaram por criar uma nova via, o União Frederiquense. As cores foram escolhidas justamente para acabar com qualquer resquício de rivalidade local. Unem-se o verde do Ipiranga, o branco (neutro) e o vermelho do Itapagé. Na madrugada, os foguetes anunciando a chegada dos heróis locais, rivalizava com os trovões.
Algo singular. Desta vez entrava em uma cidade em festa. Situação antípoda à anterior, quando chegava no dia imediato à região que acompanhava comovida a descoberta do corpo de menino assassinado. Então, havia um sentimento: Bernardo foi enterrado em Frederico Westphalen, mas os presumíveis assassinos não são daqui.
A propósito deste crime hediondo, parece que se consubstancia algo que já comentara em palestras, quando falava em construção dos mitos. Breve se estará atribuindo milagres ao menino e se dirá que ‘morreu em odor de santidade’. Soube que, no próximo domingo, haverá missa na capela do vilarejo, próxima do local onde o corpo foi escondido e depois solene procissão visitará a cova. Haverá que achará no local alguma relíquia milagrosa ou milagreira.
Outro registro: ontem o acaso me brindou com algo excepcional: almocei com Deyse Ricardo Jorge, uma médica cubana que deixou sua pátria para integrar-se no ‘Mais médicos’ da presidência da República. Foi designada para uma unidade de saúde da região. Ainda não começou seus fazeres, pois faltam outros profissionais da saúde para compor a equipe. Conhecêramo-nos no café no hotel e coincidiu nos encontrar em restaurante. Foi bom ouvi-la contar de sua formação generalista e acerca de medicina para todos e marcada pelo uso de medicamentos genéricos.
Acerca da atividade que me trouxe aqui: o seminário As marcas da presença de indígenas na universidade cabe um registro: foram horas de aprendizagens excepcionais. Tivemos a presença de 30 indígenas, quase exclusivamente caingangues. Um evento em que nós brancos, pela primeira vez erámos minoria (pelo menos, para mim). Se seminário é, como ainda nesta segunda-feira ensinou Mafesoli, local onde se colocam sementes, o termo estava muito bem posto.
A Camila soube mostrar algo que era uma proposta sua: “Não quero fazer uma dissertação para ficar numa prateleira de biblioteca, e sim coloca-la na prática”. Sou grato à Camila, à Professora Edite, coordenadora do Programa de Pós Graduação em Educação e ao professor Breno pelo empenho que emprestaram na co-realização do seminário.
Foi muito significativo levar ao Seminário a Deyse, a médica cubana que antes referi e a Ysenia Carlisle Medina, outra médica, também cubana, já há três meses em Frederico Westphalen. Foi a primeira vez que as duas cubanas foram convidadas para ir à URI. Foi emocionante promover esta inserção, de duas mulheres que deixaram suas famílias e a Pátria para ajudar na saúde dos brasileiros.
Não sei se em algum momento em minha história de aprendiz vivi momentos em que alguns de meus paradigmas ruírem. Não posso sintetizar, aqui e agora, quase na hora de tomar o ônibus, muito do que aprendi. Certamente semeamos muito boas sementes no seminário, que serão importantes para um futuro. As duas fotos são do Vanderley Farias — leitor e comentarista deste blogue—, que não só fez o registro histórico, mas foi gentil com as médicas, nos levando ao hotel. Sou grato, também a Izaura, minha orientanda, que nos transportou à URI.
Agora embalar sonhos a bordo. Aguardar a transmutação da noite embaçada de neblina em um dia, talvez, ensolarado, depois desta quinta-feira na qual a umidade que brotava das paredes e do chão foi secada pelos aprendizados muito intensos com indígenas e com duas médicas cubanas. Penso que as sementes caíram em terra fértil. 

8 comentários:

  1. Ouvir o mestre é sempre uma aprendizagem. Mas, ouvir o mestre se deleitando com os ensinamentos dos indígenas que estiveram neste seminário foi, sem dúvida, um momento singular. O mestre com outros mestres aprendendo.
    Grande abraço!

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  2. Dia de índio
    Quando os portugueses desembarcaram em terras americanas no pedaço que acabou por se chamar Brasil, estima-se que existia em torno de seis milhões de aborígenes nestas paragens. Os silvícolas brasileiros estavam divididos em tribos, nominadas de acordo com o tronco lingüístico ao qual pertenciam: tupi-guaranis (região do litoral), macro-jê ou tapuias (região do Planalto Central), aruaques (Amazônia) e caraíbas (Amazônia). Claro que eles, os índios, não estavam nem aí para essa classificação, viviam de acordo com suas crenças, esperanças e necessidades, sendo a diferenciação idiomática um mero acidente cultural o qual os exploradores deram muita importância.
    Hoje esses pioneiros habitantes da Terrae brasilis não passam de duzentos mil, o que demonstra um terrível genocídio perpetrado pelos que vieram depois. Sei que genocídio, cuja definição é extermínio de grupos humanos pela violência, pode parecer palavra muito forte para explicar o que aconteceu com a maioria daqueles que aqui viviam. Mas lembremos que no mesmo período em a população local diminuiu os que colonizaram o país multiplicaram por milhões sua população. Então, embora não tenha havido um extermínio abrupto e drástico, foi uma ação contínua e persistente que levou os silvícolas à quase extinção. Somos todos agentes, passivos ou não, de ações que determinaram a não sobrevivência cultural, em primeiro lugar, e física em segundo, de povo pacífico que, por direito, deveria estar vivendo em suas terras. Os europeus que aqui chegaram, agindo com truculência, falta de humanidade e ganância, não viam seres humanos naquelas pessoas simplórias seminuas que os receberam até com calor e amizade. Os portugueses encetaram ações cruéis contra um povo que culturalmente era “inferior” aos colonizadores. Os portugueses iniciaram um processo de extinção que perdura até hoje na nossa sociedade supostamente civilizada. Somos todos culpados.

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  3. Continuando…
    Quem já andou pelas ruas de Manaus e cidades do interior da Amazônia, percebe que os nativos estão entre nós, houve forte miscigenação de colonizadores com as tribos locais. Os genes dos silvícolas fazem parte de nosso genoma. Eu mesmo tenho um avô Kaingangue e possíveis outros quatro ou cinco antepassados oriundos de aborígenes aqui do sul. A migração quase totalmente masculina dos primeiros portugueses que aportaram no Pindorama determinou os acasalamentos inter étnicos que resultaram nessa amálgama que quase todos os brasileiros somos agora. Menos mal, a cultura e a civilização nativa se foram, mas a herança genética ficou.
    Imagino que num futuro distante, muito distante, quando a civilização, como a conhecemos, tiver chegado ao término – e esta é uma inferência a que podemos chegar simplesmente observando nosso comportamento atual - e novos valores tiverem que ser considerados, a vida natural em harmonia com tudo que nos cerca deverá se impor. O Homo sapiens “descobrirá” que a felicidade está ao seu lado, não nas grandes obras materiais; não no acúmulo de fortunas imensuráveis; não nas grandes conquistas territoriais; não nos grandes feitos da mente; não nas imensas viagens espaciais; não nas profundas explorações marítimas; não em alcançar uma longevidade duvidosa que onera mais que premia o existir com saúde; mas sim no ajuste perfeito e indolor do modus vivendi das sociedades com a natureza; com respeito e convivência pacífica com os animais, minerais e vegetais que partilham conosco este planetinha azul. Algo muito simples e bem acordo com o que os silvícolas já praticam há milhares de anos. E, quando isso acontecer, quando nossa civilização estiver evoluído até esse estágio, o homem terá alcançado a sabedoria suprema a qual tanto busca em suas indagações filosóficas e tanto define como expressão ideal de felicidade. A felicidade é aproveitar as coisas que a natureza nos dá de graça, é apreciar o belo e usufruir as alegrias e descobertas de coisas simples, quando o homem se der conta disso terá alcançado o éden na Terra. Amém.
    Em que pese a mídia fazer questão de enfocar apenas a comemoração do aniversário de Roberto Carlos em 19 de Abril, hoje é dia do índio. JAIR, Floripa, 19/04/12.

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  4. Tuas sementes sempre são jogadas em terras férteis. Logo, os resultados são sempre positivos, ainda mais quando alguém como você orienta o processo. Um salve à sua sabedoria e sensibilidade para captar talentos! Parabéns pelo encontro e por sua capacidade de se reinventar e ser um eterno aprendiz na academia e na vida....
    Um abraço Manaura!
    ACMD

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  5. Comentei com meus colegas mestrandos que, neste dia, aprendi acerca da relação entre indígenas-europeu(descendentes-nós) muito mais que até então sabia. Foi uma experiência "trans-acadêmica".

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  6. ola professor Chassot,
    nos é que agradecemo sua sempre densa contribuição a nosso PPG e 'a educação regional de todas as tribos. abraço Edite

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  7. Prezado Prof. Chassot
    Paz e Bem!
    Obrigado pela citação em seu e-mail e blog. Mas o mérito atribuo a Camila.
    Intrometi-me apenas porque fiquei tentado ao ver a angústia daqueles indígenas, sobretudo os mais vividos, quanto aos prós e contras em frequentar a Universidade. Dilema que ressoa como vital para a comunidade didentaliante da desestabilização do modus vivendi deles, mesmo que bastante desaculturada (não sei se ainda usam esses termos).
    Tive o privilégio, como disse na apresentação, de aprender com essa cultura não-ocidental. Eram anos de minha vivência seminarística, e defrontávamos (naqueles tempos em que não imperava nos estudos teológicos o carreirismo eclesiástico e a ostentação ritualística, que parece que Francisco I não comunga) com o problema da inculturação do Evangeliun (como sabes a Boa Nova, notícia). Lia Paulo Suess e tudo o que tratasse sobre o tema. Acompanhava as lutas dos indígenas na reapropriação de suas terras (pelo menos as que os governos de Borges de Medeiros, de corte positivista, haviam demarcado e que Brizola, diante da quase extinção da população indígena dizimada pela desesperança e pelo alcoolismo, contrariando a Lei que é Federal, acabou por fazer uma pseudo-reforma agrária com "gringos", que agora berram e batem nos índios. Ficou o "pepino" para os atuais Governos, que deverão indenizar os colonos enganados e devolver o solo aos indígenas.
    - Estudei essa história toda, compulsando documentação original aí no Arquivo Histórico do RGS,... e até produzi alguns textos, dos quais, atrevo-me remeter -lhe em anexo - um tanto defasado, é de 1993. Mas, penso que o "ethos" permanece, só muda a aparência...
    Um abraço do amigo
    Breno

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  8. Olá mestre,

    A noite de quinta-feira ficará marcada, sim fizemos história, mas principalmente iniciamos a transgressão de fronteiras pela promoção de diálogos interculturais, o qual deve ser dado continuidade.

    Também estou ainda muito encantada e emocionada com o seminário, o medo do tempo que sinalizava chuva não inibiu que os acadêmicos indígenas e membros da comunidade estivessem presentes mostrando não só a força da identidade indígena, mas também a confiança depositada em nós.

    Foi uma semana de ótimas sementes com o II Seminário Internacional de Educação e também de colher os primeiros frutos da dissertação com o nosso Seminário Indígena.

    Mais do que nunca sou grata e feliz pelos caminhos que nós percorremos na pesquisa de mestrado, obrigada por estar comigo em mais um momento importante e espero que muitos outros sejam compartilhados.
    Certamente essas sementes continuarão sendo irrigadas para produzirem bons frutos!
    Sem duvida o senhor já faz parte dessa tribo.

    Todo o meu carinho e admiração,

    Camila

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