Ano 6 *** www.professorchassot.pro.br
*** Edição 2054
Na última segunda-feira, dia 12, foi o dia do
bibliotecário. Ao ser alertado da efeméride, no blogue de meu colega Garin —
norberto-garin.blogspot.com/ — eis excerto de meu comentário:
“mesmo considerando ‘o lixo’ tema relevante [...] não há como não me ater
a render loas aos bibliotecários nesta data. Esta é uma profissão que quisera
ser. Certamente, seria um mau funcionário, pois estaria permanente saciando
minha curiosidade, deleitando-me no acervo. Imagina se a biblioteca tivesse —
como há em algumas — um setor de livros de empréstimo proibido. Agradeço teu
‘memento librorum’: deste-me a sugestão para próximo sábado. Em
homenagem aos bibliotecários, a dica sabática será: A conturbada história das Bibliotecas.
Cumpro,
aqui e agora, a promessa. Deste livro fiz resenha no saudoso ‘Leia Livro’ da
Secretaria de Cultura de São Paulo. Aliás, sobre o mesmo livro publiquei um texto
em Episteme, n. 16, p.181-185, jan./jun 2003.
Ocorre
um detalhe que devo escusar-me: depois de fazer aqui a promessa, ao preparar
esta edição, sou alertado pelo prestimoso Google Desktop, que em 10SET2011, o
livro já fora aqui assuntado em uma dica sabática. Aos meus leitores mais assíduos,
peço indulgências e para eles ‘reformei’ o texto antes publicado, mesmo que
minha mãe, que costurava para toda família, sempre dissesse que era mais fácil fazer
uma roupa nova do que reformar. Aos neófitos aqui faço esta oferta como se
fosse um café recém passado.
A
conturbada história das Bibliotecas.
BATTLES, Matthew. São Paulo: Planeta, 2003, 239 p. [Título do original inglês: Library:
An unquiet History. Tradução: João Virgílio Gallerani Cuter] ISBN 85-7479-698-0. R$ 42,00.
Nunca entendi bem o porque, mas
adiro aos que adjetivam a inveja de santa e eu tenho uma santa inveja do que
faz Mattew Battles. Ele trabalha na Biblioteca de Houghton, que abriga a
coleção de obras raras de Harvard. Admitamos, um excelente local para se
desfrutar o trabalho como ócio. Posso imaginar que não são poucos os leitores
que gostariam de ter tal cenário como local de seu ganha pão, até porque o pão
para o espírito viria como um alentado benefício extra.
Battles [foto], falando de seu
local de trabalho, conta – e me permito dar-lhe mais extensamente a palavra
aqui – que “quando fui trabalhar na Biblioteca Widener, em Harvard, cometi logo
de saída meu primeiro erro: tentei ler os livros. Não demorou muito para
repetir-se em mim aquela sensação de vertigem compulsiva [...] na verdade, uma
resposta a contradições que qualquer um de nós enfrenta quando está diante de
uma biblioteca. O leitor vai tocando os livros expostos nas estantes,
levanta-os, sente-lhes o peso, aprecia as letras inclinadas, dispostas numa
página de rosto, examina marcas deixadas por outros leitores e, quanto mais
toca, mais fugidio lhe parece o saber ali contido. Todas as coisas que
desconhece parecem estar lhe acenando por detrás das capas, nas entrelinhas. Na
biblioteca o leitor é obrigado a despertar daquele sonho de comunhão íntima
provocado pela leitura. Ele é forçado a reconhecer a materialidade do mundo na
sucessão interminável das lombadas, nos sons das páginas virando sobre as
mesas, no atrito das capas que se espremem nas prateleiras, e nesse cheiro
rançoso [Aqui, permito-me discordar de Battles; os livros têm, não raro,
cheiros agradáveis, às vezes, até sensual] que impregna qualquer ambiente
em que há livros em grande número. É claro que essa experiência da dimensão
puramente física do livro é mais forte nas grandes bibliotecas, onde a massa da
palavra escrita é tão grande que parece criar um centro de gravidade em torno
de si.” E o capítulo inaugural “Lendo a biblioteca” prossegue falando dos
encantamentos que nos oferecem esses tabernáculos da sabedoria.
Muito provavelmente, cada um
dos leitores e leitoras deste blogue já sentiu sensações semelhantes quando se
deleita em uma biblioteca. Talvez encontre uma explicação do porque quando vivi
o privilégio de um período de pós-doutoramento, o entrar para uma biblioteca
pela manhã e sair à noite parecia normal e não me afloravam culpas. Explico,
assim, por exemplo, que as visitas à nova Biblioteca de Alexandria ou à
imponente Biblioteca Mitterrand em Paris me infundiram emoções como aquelas que
se sente quando se adentra pela primeira vez na Basílica de São Pedro no
Vaticano ou na Mesquita de Hagia Sofia em Istambul.
Passados os encantamentos que
todos vivemos nas bibliotecas e que Batlles nos mostra qual Virgílio conduzindo
Dante pelos diferentes locais do Paraíso, o livro nos remete para outro lado.
Talvez a maior surpresa do texto, já anunciada no título está
no convite a que esqueçamos as bibliotecas como lugares tranquilos,
silenciosos, respeitosos templos do saber... mas passemos a considerar esses
imensos reservatórios de conhecimento, densamente acumulado, como alvo
privilegiado dos inimigos da civilização, que os têm como presa fácil para
devastação em massa. As destruições da Biblioteca de Alexandria são apenas
algumas das situações vândalas entre muitas outras descritas no livro. Talvez
uma das mais impressionantes é aquela tida como a maior queima de livros que a
humanidade conheceu “patrocinada” por Shi Huang Ti há 2.300 anos antes do
presente e que se fez enterrar, com um exército de seis mil guerreiros de
terracota, próximo a atual cidade de Xian na China. Deu uma ordem bastante
simples: “Destruir toda a história, a filosofia e a literatura produzida antes
que sua dinastia assumira o poder”. Sabemos o quanto essa ordem foi, mais de
uma vez, imitada por muitos outros que tomavam o poder ou dominavam outras
civilizações. Aliás, quando lemos compungidos sobre as destruições de
bibliotecas árabes, quando da expulsão dos islâmicos da Península Ibérica no
final século 15, não deixa de ser paradoxal lembrar que quando da conquista
árabe do Egito, no século 7, ao ser perguntado ao conquistador o que fazer com
os livros que ainda havia em Alexandria, a resposta foi sumária: “Com relação
aos mencionados livros, se estes concordam com o Livro de Deus, eles são
desnecessários; por outro lado, se discordam, são indesejáveis. Portanto, que
todos os livros sejam destruídos!”
Comove-nos
particularmente as destruições de livros que existiram em regiões que hoje
chamamos de América, quando da chegada dos assim chamados colonizadores.
Todavia, os espanhóis não foram os primeiros a queimar livros no vale do
México. – e o fizeram a rodo não apenas nas terras das quais se apossavam, mas
também quando expulsaram da Península árabes e judeus. Antes deles os astecas
já haviam descoberto como encadernar livros e como incendiá-los. Quando os
mexica se transformam em astecas, para uma nova ordenação nobiliárquica é
preciso ter também uma nova história; repete-se, então, o feito de Shi Huang Ti
e o primeiro imperador asteca determina a queima de todos os livros produzidos
antes da dinastia que então se iniciava. Zera a História foi prática muito
repetida.
Mas
livros ao fogo não são espetáculos dantescos antanhos. O nosso século 20 –
porque somos todos homens e mulheres do século passado, tão celebrado por ser
aquele que a tecnologia pontificou, teve momentos de grandes labaredas. Battles
descreve a destruição, em agosto de 1914, da Biblioteca de Louvain pelos
exércitos alemães como uma das maiores perdas da humanidade, com a queima de 70
mil livros e 300 manuscritos fruto de quase quinhentos anos de vida intelectual
ininterrupta. Passada a 1ª Guerra Mundial, a biblioteca foi reconstruída com
garra. Em maio de 1940, as tropas alemãs invadiram mais uma vez a Bélgica e o
que por primeiro foi bombardeado foi a nova biblioteca, que foi destruída,
restando milhares de livros carbonizados. Esta bilioclastia foi uma prática do
nazismo, que em maio de 1933, em praça pública em Berlim, faz queimar livros
que “o doutor Goebbels, do alto de sua imensa sabedoria, julga impróprio para a
Alemanha nazista”. Essa foi apenas a primeira de 30 queima de livros
universitários na primavera de 1933. Calcula-se que nos 12 anos seguintes o
nazismo tenha queimado mais de 100 milhões de livros. Bibliotecas inteiras
foram queimadas ou roubadas apenas pelo pretexto de pertencerem a comunidades
judaicas. Battles relata o quanto durante o nazismo a função do bibliotecário
tornou-se importante, pois o governo determinava o que o povo deveria ler, ou
melhor, o que não podia ler; isso fez com que os bibliotecários passassem
ocupar o centro das atenções governamentais. Estes então só sobreviveram na
medida em que atendiam aos desejos do governo.
Há
ainda muitas páginas de descrições de antecipações de realidade daquilo que Rad
Bradbury fez irônica ficção em seu livro, levado depois ao cinema: Fahrenheit
451. Em 1981, nacionalistas cingaleses destruíram a Biblioteca Tamil no Sri
Lanka com milhares de livros, com conhecimentos que jamais serão recuperados.
Sabemos o que foi feito contra bibliotecas, em 2001 no Afeganistão pelos
talibans e, em 2003, quando da invasão estadunidense ao Iraque.
Bibioclastias
acidentais, provocadas, revisionistas e abrangente a humanidade as conheceu em
sua história as mais diversas tanto políticas como religiosas. A leitura dos
capítulos “Alexandria em chamas”, “A guerra dos livros” e “O conhecimento
lançado ao fogo” nos faz evocar outras histórias não trazidas por Battles.
Assim, se houve tempos que os colégios recendiam a cheiro de fumaça pois eram
premiados os alunos que trouxessem para queima livros que estavam no Index —
parecendo um assunto para uma próxima blogada — que seus pais ocultavam em
casa, também lembramos que, deva haver entre os leitores deste blogue alguns
que se recordem de ter assistido, nos anos de maior repressão do recente golpe
militar, obras inteiras de Marx, por exemplo, serem colocadas em riachos ou em
fornos de padaria, pois tê-las em casa era se posicionar contra o regime e
candidato, no mínimo, a ser levado a uma comissão policial de inquérito.
Mesmo
que haja estas partes menos atrativas, A conturbada história das Bibliotecas
apresenta uma riqueza muito grande de informações se constituindo em um livro
que encantará as leitoras e os leitores que desejam entender como se deu / dá /
dará essa magnífica acumulação de saber e, também, com houve / há, e
infelizmente haverá, perdas acidentais e desejadas do conhecimento.
Se o objetivo de uma resenha é
(des)estimular a leitura do livro resenhado, quero aqui, de maneira
entusiástica recomendar A conturbada história das Bibliotecas. Acredito
que vale a pena conhecer acerca do livro e porque este, para alguns é companhia
para os mais diferentes momentos e para outros, uma continua ameaça.
Caro Chassot,
ResponderExcluirSe existe uma classificação que cabe a minha pessoa é: rato de biblioteca. Além de ser leitor compulsivo, tenho atração pela parte física das bibliotecas, elas me encantam. Claro que vou adquirir o livro recomendado com avidez. Abraços e obrigado pela excelente dica de leitura, JAIR.
Caro Chassot,
ResponderExcluira destruição de acervos existentes, tanto em bibliotecas quanto na forma digital, apenas com uma pressão no botão "delete" me assusta. Há uma produção considerável da civilização contemporânea que, se destruída em qualquer data, representará novo atraso e o pior, isso é possível. Entendo que o ideal é que essa produção esteja fragmentada e distribuída pela população, o que dificultará a sua destruição, mas representará maior dificuldade de acesso.
Um abraço,
Garin
Meu caro Garin,
ResponderExcluiristo que dizes assusta. Hoje muito da produção não existe em suporte papel. Nossos blogues, por exemplo. Mesmo nossos arquivos em disquetes não são mais acessíveis.
Mas há um perigo maior. Se os Estados Unidos, por uma razão imperialista, resolvesse desativar a WEB!
Isto seria uma catástrofe maior que Hiroshima.
Eu já perdi arquivos irrecuperáveis.
Obrigado por teu alerta
attico chassot
Olá Mestre Chassot,
ResponderExcluirO projeto Leia Livro está aos poucos sendo ressuscitado. Ainda leva tempo até que seja possível refazê-los nos mesmos moldes anteriores, mas aos poucos chegaremos lá!
Obrigado,
Equipe Leia Livro 2012
À Equipe Leia Livro 2012,
ResponderExcluiresta é uma excelente notícia. Já no aguardo da primeira revoada da fênix ressurreta
attico chassot