Ano 6 *** www.professorchassot.pro.br
*** Edição 2033
Por quase mirabolante coincidência
as quatro dicas de leituras de fevereiro são latino-americanas, mais
precisamente de vertente hispânica. Com exceção da primeira do dia 4 — acerca
do execrável caso Karadima — as três outras são de Prêmios Nobel de Literatura.
Dia 11, Pablo Neruda, com amorosas poesias; dia 18, Gabriela Mistral, com
revelações surpreendentes; e, hoje, Mario Vargas Llosa. Uma vez mais, reafirmo que
não desvalorizo os envolvimentos, às vezes, escusos na atribuição do Nobel, mas
esta láurea é, apesar de tudo, um indicador que tem relativa validade.
Quando a Gelsa retornou no dia 9 de São Paulo, onde fora assistir a
inauguração da exposição ‘Guerra e Paz’ sobre a obra de Portinari,
presenteou-me — não sem reservas — com ‘Conversas com Vargas Llosa’ de Ricardo Setti. Por mais que admiremos um escritor por sua
obra literária é difícil dissociarmo-nos de sua postura política. Com Nobel
peruano, ela e eu temos, há muito, divergências ideológicas. Antecipo que na
leitura do excelente livro, estão marcadas claras as divergências políticas
(maiores que imaginava), mas que não conflitam com a admiração literária, mesmo
que enodoem leituras de história de vida.
Assim a dica de leitura é:
SETTI, Ricardo. Conversas com
Vargas Llosa, antes e depois do Nobel. 2.ed São Paulo: Panda Books,
2011, 232 p. 208x138x14 mm. ISBN 978-85-7888-160-3.
O livro é marcadamente o que diz o seu subtítulo: antes e depois do Nobel. Ricardo Setti, jornalista da revista Veja,
havia publicado, fruto de três longas sessões, realizadas numa das casas do
escritor em Lima, Conversas com Vargas
Llosa (Brasiliense, 1986) com edições, também em Portugal, França e Estados
Unidos. Este livro de então recebeu agora uma adição de cerca de 50 paginas,
produto de uma nova entrevista, mais de 25 anos depois, em outubro de 2011, nos
dias imediatos ao anuncio da outorga do Nobel.
O livro é muito gostoso de ler, pois Setti é não apenas um arguto entrevistador,
mas um conhecedor e admirador da vida e obra do entrevistado. E também por que Vargas
Llosa além de um escritor (romancista e ensaísta) renomado é um globe-trotter competentíssimo,
professor convidado de várias Universidades, que não tem travas na língua e
fala sobre sua vida literária, política, politicagem, sexo, visão de mundo,
rotina de trabalho. Assim, o livro, sem
perder o tom de bate-papo, faz uma panorâmica de tudo que diga respeito ao
mundo do entrevistado.
Como temos um quarto de século — cerca de um terço da vida de Jorge
Mario Vargas Llosa, nascido em Arequipa, 28 de março de 1936 — mediando as duas
entrevistas, se pode avaliar caminhadas e coerências teóricas e politicas e
posturas frente à vida, pois ele fala muito de política: direitos humanos,
ditaduras e liberdade, Cuba, Colômbia, Chile, questões da América Latina,
terrorismo, Europa, o Brasil de Lula, o politicamente correto, o
antiamericanismo, direita e esquerda, sua desilusão com o socialismo, sua
candidatura frustrada à Presidência do Peru e assuntos pessoais como a relação
com o pai que só conheceu aos 10 anos de idade, família, filhos, fidelidade
conjugal e tentações, iniciação sexual, drogas, andanças pelo mundo.
Setti (à direita) domina a técnica de deixar o entrevistado à vontade, mas não
permite que ele lhe exclua da pauta nenhuma pergunta embaraçosa. Nem mesmo
sobre a famosa briga com o ex-amigo Gabriel García Márquez – o único tema que
leva Vargas Llosa a desconversar.
O livro prenhe de passagens preciosas agradará especialmente dois tipos
de leitores: um, aquele que conhece a
obra de Vargas Llosa e quiser saber alguns detalhes da construção de
determinado livro; outro, o leitor que
escreve ou gostaria de escrever. Pretensiosamente, me incluo nos dois tipos, e
de uma e outra situação faço amostras.
Destaco três dos vários livros que li do entrevistado. Um humorístico e
dois históricos.
Pantaleão e as visitadoras (1973) — quem o leu deve recordar-se da ideia de organizar em um barco
com prostitutas para levar ‘conforto’ a militares em serviço em pontos
distantes da floresta amazônica peruana. Na entrevista se fica sabendo dos
fatos reais que catalisaram a construção do saboroso texto.
Acerca de A guerra do fim do mundo
(1981), um romance da nossa ‘Guerra dos Canudos’, ficamos conhecendo dos
anos de pesquisa que Vargas Llosa fez no sertão nordestino com muitas
entrevistas em diferentes locais onde aconteceu a epopeia e ainda trabalhos
exaustivos em bibliotecas estadunidenses.
Sobre o melhor dos livros de Vargas Llosa para mim — O segredo do Celta (2010) — na
entrevista se conhece o que significou para o autor viver os horrores do Congo,
pesquisar na Alemanha, na Irlanda, na selva amazônica onde Roger Casement —
personagem real — viveu sua vida libertária e trágica.
Um exemplo acerca da arte da escritura, eis a resposta para a pergunta: Como
começa um livro? Bem, primeiro de tudo é
um ‘fantaseo’, uma espécie de especulação em torno de certo personagem ou certa
situação, algo que simplesmente ocorre na mente. E depois começo a tomar notas,
faço fichas, trajetórias anedóticas – um personagem começa aqui, termina ali,
faz isso. Esse outro personagem começa aqui, acaba ali – enfim, elaboro essas
pequenas trajetórias. E, quando já vou começar a trabalhar num livro, faço
primeiro um esquema geral da história – que nunca respeito, que depois mudo
completamente, mas que me serve para começar a operar. Depois começo a redigir,
e redijo bem depressa, sem parar, sem nenhuma preocupação com estilo, repetindo
episódios, narrando situações contraditórias…
Encerro esta dica de leitura, com
um excerto que está na quarta capa e que catalisou a opção da Gelsa quando
escolheu este presente para mim. Ousadamente, subscrevo este trecho para ela:
Deixar
de escrever jamais. Sei que não vou deixar de escrever nunca, até morrer.
Escrever é a minha natureza, a vida se organiza para mim em função de meu
trabalho [...] Gostaria que minha obra fosse como dos escritores que mais
admiro, como uma esponja, que absorve tudo que esta acontecendo em seu tempo, e,
entre essas coisas a problemática social e política [...].
Caro Chassot,
ResponderExcluirTaí uma dica de leitura muto boa, sou leitor de Vargas Llosa desde muito tempo e o tenho como um dos maiores escritores vivos. Abraços e parabéns pela postagem, JAIR.
Chassot,
ResponderExcluirvaleu pela dica. Já simpatizava muito com o Vargas Llosa pela definição maravi Lhosa que ele fez sobre os museus:
"Os museus são tão necessários para os países como as escolas e hospitais. Eles educam tanto e às vezes mais que as aulas e, sobretudo de uma maneira mais sutil, privada e permanente do que o fazem os professores.
Eles também curam não os corpos, mas as mentes, da treva que é a ignorância, o preconceito, a superstição e todas as taras que afetam os seres humanos entre si e os incitam a matarem-se.
Os museus substituem a visão diminuída, provinciana, mesquinha, unilateral, de campanário, da vida e das coisas, por uma visão ampliada, generosa e plural.
Afinam a sensibilidade, estimulam a imaginação, refinam os sentimentos e despertam nas pessoas o espírito crítico e autocrítico.
O progresso não significa somente muitas escolas, hospitais e estradas. Também, e acima de tudo, essa sabedoria que nos capacita a diferenciar o feio do belo, o inteligente do estúpido, o bom do mau e o tolerável do intolerável, a que chamamos cultura".
Genial!
Grande abraço,
Guy.
Caro Chassot,
ResponderExcluirde tudo que escreveste, chamou-me a atenção esse trecho sobre a forma como ele começa a escrever. Em outras oportunidades já havia te falado sobre o filme "Encontrando Forester", no qual um personagem ensina o outro a escrever, simplesmente começando a escrever qualquer coisa: depois dá uma forma.
Um forte abraço,
Garin