ANO
8 |
LIVRARIA VIRTUAL em
www.professorchassot.pro.br
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EDIÇÃO
2562
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Como prometi ontem, e faço isso
também como homenagem pela data
dedicada aos
professores, trago excerto do
conto "O Olho", que integra a mais recente coletânea de Alice Munro
(na foto), a canadense de 82 anos, premiada com o Nobel de Literatura na última
quinta-feira, a única mulher entre DOZE laureados (ver edição de ontem deste
blogue). A tradução é de Caetano W. Galindo. "O Olho" é um dos quatro
escritos de inspiração autobiográfica com que a escritora encerra "Querida
Vida", volume de 2012 que a Companhia das Letras lança em novembro. A
versão integral do conto e resenha de "Querida Vida" está em
folha.com/ilustrissima.
SADIE Quando eu tinha cinco anos, de repente meus pais apareceram
com um menininho, que minha mãe disse que era o que eu sempre quisera. De onde
ela tirou essa ideia eu não sei. Ela deu uma bela enfeitada naquilo, tudo
inventado, mas difícil de contrariar.
Aí um
ano depois apareceu uma menininha, e de novo foi uma balbúrdia, mas menos que
da primeira vez.
Até a época do primeiro bebê, eu não me lembro
de ter sentido algo diferente do que aquilo que a minha mãe dizia que eu estava
sentindo. E até aquela época, a casa toda era tomada pela minha mãe, pelos
passos dela, pela sua voz, por aquele cheiro poeirento, mas funesto que ocupava
todos os cômodos mesmo quando ela não estava dentro deles.
Por que eu digo funesto? Eu não tinha medo. Não
é que a minha mãe me dissesse exatamente como eu devia me sentir a respeito das
coisas. Ela era uma autoridade no assunto, isso nem se questionava. Não só no
caso de um irmão mais novo, mas também quanto ao cereal Red River, que me fazia
bem e de que, portanto, eu devia gostar. E quanto à minha interpretação do
quadro que ficava no pé da minha cama, que mostrava Jesus tolerando que as
criancinhas viessem até ele. Tolerar significava outra coisa naquele tempo, mas
não era nisso que a gente se concentrava. Minha mãe apontava a menininha meio
escondida num canto porque queria ir até Jesus, mas era tímida demais para
isso. Aquela era eu, minha mãe dizia, e eu achava que era, mas não teria
entendido isso sem ela me dizer e na verdade preferia que não fosse assim.
O que me deixava tristíssima mesmo era a Alice
no país das maravilhas imensa e presa no buraco do coelho, mas eu ria, porque a
minha mãe parecia estar adorando.
Mas foi com a chegada do meu irmão e com aquele
falatório todo sobre como ele era um tipo de presente pra mim que eu comecei a
aceitar o quanto as certezas que minha mãe tinha a meu respeito diferiam das
minhas próprias.
Acho que isso tudo estava me preparando para o
momento em que a Sadie veio trabalhar para nós. Minha mãe tinha se recolhido
para sabe-se lá qual território que ela ocupava com os bebês. Sem ela por ali o
tempo todo, eu podia pensar no que era verdade e no que não era. Eu já sabia o
suficiente para não falar dessas coisas com ninguém.
A coisa mais estranha da Sadie -- apesar de não
ser muito comentada lá em casa -- era que ela era uma celebridade. A nossa
cidade tinha uma rádio onde ela tocava violão e cantava o tema de abertura da
programação, que ela mesma tinha composto.
"Olá, olá, olá, todo mundo..."
E meia-hora depois era, "A-deus, a-deus,
a-deus, todo mundo." Entre um e outro, ela cantava músicas que as pessoas
pediam e também algumas que ela mesma escolhia. As pessoas mais sofisticadas da
cidade tendiam a rir das músicas dela e da rádio toda, que diziam que era a
menor do Canadá. Essas pessoas escutavam uma estação de Toronto que transmitia
canções populares da época -- "Three little fishes and a mommy fishy
too..." -- e Jim Hunter berrando as desesperadas notícias da guerra. Mas as
pessoas das fazendas gostavam da rádio local e daquelas canções que a Sadie
cantava. A voz dela era forte e triste e ela cantava sobre a solidão e a dor.
Apoiada na cerca fria
De um curral imenso
Olhando pela trilha ao fim do dia
É só em você que eu penso
Quase todas as fazendas daquele canto do país
tinham sido desmatadas e ocupadas havia coisa de cento e cinquenta anos, e de
quase qualquer casa de fazenda dava para avistar outra casa de fazenda a poucos
pastos de distância. Ainda assim, as músicas que os fazendeiros queriam ouvir
falavam todas de vaqueiros solitários, do encanto e da decepção de lugares
distantes, dos crimes horrorosos que faziam criminosos morrerem com o nome da
mãe nos lábios, ou o de Deus.
Era isso que a Sadie cantava com tanto sentimento
num tom de contralto encorpado, mas trabalhando com a gente ela era cheia de
energia e de confiança, gostava de conversar e em especial de conversar sobre
si própria. Normalmente não tinha ninguém para ouvir o que ela dizia, só eu. As
ocupações dela e as da minha mãe as mantinham separadas quase o tempo todo e de
qualquer forma eu acho mesmo que elas não teriam gostado de conversar. Minha
mãe era uma pessoa séria, como já insinuei, que tinha dado aulas na escolinha
antes de dar aulas para mim. Talvez ela tivesse gostado se a Sadie fosse alguém
que ela pudesse ajudar, ensinando a não dizer "Cês quer". Mas a Sadie
não dava muitos indícios de querer ajuda de quem quer que fosse, ou de querer
falar de um jeito diferente de como sempre falara.
Depois da ceia, que era a refeição do meio-dia,
a Sadie e eu ficávamos sozinhas na cozinha. Minha mãe aproveitava para tirar
uma soneca e, se estivesse num dia de sorte, os bebês dormiam também. Quando
ela acordava, punha um vestido diferente, como se estivesse esperando uma tarde
tranquila, mesmo que seguramente fosse haver mais fraldas para trocar e também
mais daquela atividade desagradável que eu me esforçava para não ver, a
menorzinha chupando um peito dela.
Meu pai também tirava uma soneca -- talvez uns
quinze minutos na varanda com o "Saturday Evening Post" cobrindo a
cara antes de voltar para o celeiro.
A Sadie esquentava água no fogão e lavava a
louça, com a minha ajuda e com as persianas abaixadas para não deixar entrar o
calor. Quando a gente acabava, ela esfregava o chão e eu secava, com um método
que eu tinha inventado -- patinando de um lado para outro com panos de chão nos
pés. Aí a gente retirava as espirais de papel pega-mosca amarelo e grudento que
tinham sido colocadas depois do café da manhã e que àquela altura já estavam
pesadas, cheias de moscas pretas mortas ou que zumbiam quase mortas, e
pendurava as espirais novinhas, que estariam cheias das recém-mortas na hora do
jantar. Tudo isso enquanto a Sadie me falava da vida dela.
Querido Professor Chassot!!! Receba meu abraço especial!!!
ResponderExcluirMestre Chassot,
ResponderExcluirconto gostoso e ajuda a sua tese dos seminários de escrita: “Se aprende a escrever, lendo bons autores!’
Alice Munro, vale apena ler.
Obrigado pela dica e parabéns ao mestre muito querido pela data
Limerique:
ResponderExcluirPorrada neles, na população dói
Desse governo que tudo destrói
No Rio o professor
Carrega imensa dor
Mas continua nosso mestre herói.
Mestre Chassot: A meio da noite deixo uma supresa: nota 10 prá você professor. Um abraço Ley
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