Porto Alegre Ano 5 # 1461 |
É uma manhã fria, mas ensolarada. Ontem nevou em região do Rio Grande do Sul. Não posso deixar de recordar as semanas de fevereiro e março que tive o privilégio de estar na Escandinávia com neve todos os dias e todo dia.
A estreia de meu 100º semestre foi em grande estilo na UAM - Universidade do Adulto Maior. As 50 vagas da disciplina ‘Aspectos antropológicos do envelhecimento’ foram esgotadas, havendo, em auto-classificação, os chamados penetras. Também há quase vinte que se fizeram ‘repetentes’ e cursam novamente a disciplina. O grupo, como na edição anterior, é fabuloso e instigante. Como disse não poderia haver melhor abertura.
Ajuntei, para hoje, algumas linhas, catalisada pela edição de domingo e tecidas em meio a uma já superada gripe que me exigiu no fim de semana e ainda ontem muito resguardo, para usar uma palavra um pouco em desuso. Talvez, estas reflexões não vão além de cumprir um espaço para mais uma ‘blogada nossa de cada dia’.
Há momentos muito imprevistos nessa deleitosa tarefa de blogar. Às vezes, escrevemos algo, que pensamos vá causar frenesi, pois paradigmas são violados. A reação pode ser de quase desdém. Em outros momentos, amealhamos algumas ideias despretensiosas e os leitores se fazem presentes, trazendo expansão do assunto, muitas vezes, com oportunas ilustrações.
A situação de domingo foi típica no desenho desta segunda dimensão. Era dia primeiro de agosto. Eu, sem muito trato a bola, aplastado em estado gripal, juntei algumas lembranças agustinas. Claro que essas não passaram por Santo Agostinho (cuja festa litúrgica é em 28 de agosto), como o adjetivo poderia fazer supor. Aliás, caberia, então, mas não me ocorreu, evidenciar o pensamento mágico – provável lema daquela blogada –, a meu juízo, muito presente neste importante escritor da antiguidade. Pensamento mágico aqui travestido de pensamento religioso.
Enquanto escrevo esse parágrafo (e é assim que se constroem os textos) lembro que no A Ciência é Masculina? É, sim senhora! assinalava:
Santo Agostinho (354-430) quando analisa extensamente o pecado dos nossos primeiros pais é também bastante misógino. Ele foi talvez dos mais influentes Padres da Igreja cristã, cujos ensinamentos foram base da teologia por muitos séculos, mesmo que haja aqueles que também lhe confiram, o título nada edificante de proto-inquisidor, por suas ações contra os pagãos, marcadas por um mote que justificava suas ações “Persigo porque sou filho da Igreja!”. O bispo de Hipona ensinava que todos os problemas da humanidade começaram com o pecado de Eva. Em A cidade de Deus (XIV, 11) diz que a serpente “começou pela parte inferior da sociedade humana, para gradualmente ascender ao todo, na consciência de que o homem não seria tão facilmente crédulo, e não poderia ser enganado por erro, senão ascendendo erro alheio”. E mais adiante acrescenta: “Não em vão disse o Apóstolo: Adão não foi enganado; por sua vez, a mulher sim. Eva tomou por verdadeira as palavras da serpente e Adão não quis romper o único enlace mesmo na comunhão do pecado” (Agostinho, 1990, p. 150). Ou seja, Adão era tão bom que pecou porque amava Eva. Aliás, Agostinho discorre por vários capítulos acerca do primeiro pecado e mostra como a nudez que antes não era vergonhosa, porque a libido ainda não ativava os membros contra a vontade, depois da desobediência, despojados da graça, tiveram necessidade, por pudor, de velar as vergonhas com tangas trançadas com folhas de figueira, pois agora, a libido movia seus membros desobedientemente. Esta exigência passa a determinar que também ato conjugal tenha o máximo de pudor, pois até “os próprios lupanares têm, por vergonha natural, quarto escuro” (ibid. 158) (A Ciência é Masculina? É, sim senhora! p. 63).
Então migro para outro extremo. Se encontrei pensamento mágico nas exortações religiosas pré-medievais de Santo Agostinho, que incluem o discernimento da serpente, em saber escolher a mulher para tentar, pois esta era menos inteligente que o homem, este pensamento mágico também não está presente, por exemplo, no cientista pós moderno que constrói seu avatar no Second Life?
Tenho escrito que talvez possamos identificar, além da Ciência, outras leituras como aquelas marcadas pelo senso comum, pelos mitos, pelo pensamento mágico, pelos saberes primevos ou pelas religiões. Aqui e agora, parece ser importante afirmarmos que qualquer uma destas leituras não recebe um aval, ou mesmo um rótulo, de que seja a mais certa ou mais adequada. Cada uma e cada um de nós pode se afiliar a uma destas leituras.
Aqui, é preciso destacar que para nós – me refiro aqui ao universo dos leitores deste texto – há, naturalmente, o convite para pensarmos acerca de como a Ciência lê o mundo natural. Antecipo que não estejamos desqualificando qualquer uma de outras leituras e muito menos sugerindo que se abandone uma ou outra em favor desta que fazemos central em nossos estudos. Há também a convicção que mesmo que nos afiliemos a Ciência, também usamos em diferentes momentos leituras marcadas pelo senso comum (quando nos encantamos com um pôr do sol); pelo pensamento mágico (quando buscamos a cura através de uma poção dita milagrosa ou consultamos horóscopos); pela religião (quando rezamos ou pedimos algo a um Ser superior); buscamos leituras mitológicas (recordo como Freud usou os mitos para explicar a alma humana); e, encontramos nos saberes primevos explicações para nossos fazeres cotidianos.
Sei que a proposta é ousada. Não desqualificar o pensamento mágico como uma das possibilidades de lermos o mundo. Mas fica então a provocação. E que ela não serva para envaretar nenhum leitor. Esta frase final só foi construída para usar um verbo de minha infância, que hoje ouvi citado depois de dezenas de anos. Fui ao dicionário. Usávamos, enquanto guris, com precisão: zangar-se ou encabular-se com gracejo ou troça; encalistrar, amuar, encavacar (Regionalismo: Sul do Brasil). Talvez o meu texto sirva apenas para matar a saudade de alguns, que um dia disseram: ”Cara não envareta por tão pouco!” e pelos meus votos de uma boa terça-feira.
Mestre Chassot, embora seja um grande defensor da visão crítica, me contrario ao levar em conta algo simples: a ivda não teria a mesma graça sem o pensamento mágico.
ResponderExcluirLógico que ainda sou um "guardião" da visão científica e, se é que assim se pode deizer, racional das coisas. Mas, qual seria a graça deviver em um mundo onde já se sabe a resposta de tudo através de uma única vertente explicativa?
É aí que entro em consonância com o senhor, ao não invalidar o pensamento mágico como uma das formas de se ler o mundo. O que seria das crianças sem o pensamento mágico? O que seria daqueles que passam por dificuldades emocionais sem o pensamento mágico e/ou religioso?
Talvez os ventos de finados perdessem a graça se lembrássemos que eles são apenas um fenômeno meterológico comum em Novembro, assim com as luas cheias perderiam seu encanto por não despertarem os lobisomens e os encantos da natureza.
Nietzsche disse que a vida sem música seria um erro. Eu, em minha opinião mais íntima, acho que seria um erro viver sem o pensamento mágico, pois é ele que dá a possibilidade de tornar a "vida real" em algo simples e fantasticamente mágico.
Ótimo dia.
Muito querido Marcos,
ResponderExcluircustas mais a aparecer, mas quando vens acertas na mosca. Não tenho nenhum senão ao teu comentário. É lúcido e objetivo. Que seria de mim se não estivesse sempre fazendo ‘noves foras’ dos números que encontro para ouvir os deuses falando acerca de decisões que devo tomar.
Perfeito! Obrigado por construíres também aqui.
Saudades
attico chassot
Olá!!!! Amado Professor...após longas leituras sem conseguir postar comentários aqui estou radiantede ter conseguido; minha alfabetização tecnológica está engatinhando :)
ResponderExcluirA leitura de hoje me instigou em vários pontos... fico feliz com sua disciplina e trago minha experiência de constextualização numa turma de 3o ano do Ensino Médio "O corpo envelhece" - abordamos anatomia e fisiologia humana nesse contexto de estruturas que envelhecem e para minha surpresa o envolvimento dos alunos.
Pensamento mágico, conhecimentos primevos, saber científico,... diferentes óculos que podemos utilizar em diferentes momentos... aí está a "magia" de estar nesse mundo que nos permite, mediados por nossos valores experimentar, dialogar,... aprender.
Envaretar... que saudade das reuniões de amigos para pular elástico, corda, brincar de casinha,... jogar varetas:)
Obrigada pela diferença que faz em nossas vidas, pela disposição do diálogo e da blogada de todo dia.
Um forte abraço!!!!!
Sandra
Muito querida Sandra,
ResponderExcluircomo tu também vibro quando consigo um passo a mais em um alfabetizar-me tecnologicamente, Vibro com teres conseguido postar um comentário.
O pensamento mágico é algo fantástico. Talvez a síntese feita pelo Marcos Vinicius (que recebe cópia desta mensagem) é a melhor expressão da necessidade de usarmos deste óculo.
Seja bem vinda ao corpo de comentarista di qual já fizeste parte.
Ainda não recebi o ‘nosso’ livro.
Um afago com saudades