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terça-feira, 11 de maio de 2010

11* Needham, um sinólogo que amava a China

Porto Alegre Ano 4 # 1377

Mais uma madrugada com chuvisqueiros, Há anúncio de temporais e ciclones para região. Há umidade continuada de quase 100%. É amostra do inverno que se antecipa ocupando o final do outono, que se diz ser a estação mais linda aqui nos pampas, hoje está uma morrinha (= falta de disposição, de vontade para fazer alguma coisa).

Aqueles que já me assistiram em algum curso de História e Filosofia da Ciência,

talvez recordem ser recorrente a questão: Por que não houve revolução científica no Oriente? Os argumentos que trago na busca da resposta são buscados na obra de Noel Joseph Terence Montgomery Needham, mais conhecido Joseph Needham (1900-1995), um sinólogo (especialista em sinologia: Estudo da língua, escrita, literatura, história, costumes, instituições da China e dos chineses).

Na edição de ontem: Operação ‘engorda Lattes’ citei o texto O fetiche de quantidade” de Renato Mezan, publicado no caderno Mais, da Folha de S. Paulo deste domingo 09MAI2010. Neste artigo o professor titular da PUC-SP apresenta o trabalho de Neeham como exemplo da sua argumentação para mostrar a fetichização de "artigo em revista" em detrimento de textos de maior fôlego, para cuja elaboração, às vezes, são necessários anos de trabalho paciente. Vale ver a exemplificação.

Exemplo de que o tempo de gestação de uma obra precisa ser respeitado é o de Joseph Needham, cuja vida extraordinária ficamos conhecendo em "O Homem Que Amava a China" [WINCHESTER Simon, São Paulo, Companhia das Letras, 2009, ISBN: 978-85-359-1551-8)
Bioquímico de formação, apaixonou-se por uma estudante chinesa que fora a Cambridge [no Reino Unido] para se aperfeiçoar; ela lhe ensinou a língua e, à medida que se aprofundava no estudo da cultura chinesa, Needham foi se tomando de admiração pelas suas realizações científicas e tecnológicas.
Em 1943, o Ministério do Exterior britânico o enviou como diplomata à China, então parcialmente ocupada pelos japoneses. Sua missão era ajudar os acadêmicos a manter o ânimo e a prosseguir em suas pesquisas.
Para saber do que precisavam, viajou muito pelo país e entrou em contato com inúmeros cientistas; em seguida, mandava-lhes publicações científicas, reagentes, instrumentos e o que mais pudesse obter.
Nesse périplo, Needham se deu conta de que – longe de terem se mantido à margem do desenvolvimento da civilização, como então se acreditava no Ocidente – os chineses tinham descoberto e inventado muito antes dos europeus uma enorme quantidade de coisas, tanto em áreas teóricas quanto no que se refere à vida prática (uma lista parcial cobre 12 páginas do livro de Winchester).
Formulou então o que se tornou conhecido como "a pergunta de Needham": se aquele povo tinha demonstrado tamanha criatividade, por que não foi entre eles, e sim na Europa, que a ciência moderna se desenvolveu?
A resposta envolvia provar que existiam condições para que isso pudesse ter acontecido, e depois elaborar hipóteses sobre por que não ocorreu. Daí a ideia de escrever um livro que mostrasse toda a inventividade dos chineses, tendo como base os textos recolhidos em suas viagens e as práticas que pudera observar.
Embora o projeto fosse ambicioso, a Cambridge University Press o aceitou, considerando que, uma vez realizado, abrilhantaria ainda mais a reputação da universidade.
"Science and Civilization in China" [Ciência e Civilização na China] teria sete volumes, e Needham acreditava que poderia escrevê-lo "num prazo relativamente curto para uma obra acadêmica: dez anos".
Na verdade, tomou quatro vezes mais tempo, e, quando o autor morreu, em 1995, já contava 15 mil páginas. Empreendimento hercúleo, como se vê, que transformou radicalmente a percepção ocidental quanto ao papel da China na história da civilização.
O volume de trabalho envolvido era imenso: de saída, ler e classificar milhares de documentos sobre os mais variados assuntos; em seguida, organizar tudo de modo claro e persuasivo, e por fim apresentar algumas respostas à "pergunta de Needham". Várias pessoas o auxiliaram no percurso (em particular, sua amante chinesa), mas a concepção de base, e boa parte do texto final, se devem exclusivamente a ele.
Needham não publicou uma linha de bioquímica durante os últimos 30 anos de sua carreira.
Tampouco tinha formação acadêmica em história das ideias – mas isso não o impediu de, com talento e disciplina, redigir uma das obras mais importantes do século 20.
Se tivesse sido atrapalhado por exigências burocráticas, se tivesse de orientar pós-graduandos, se a editora o pressionasse com prazos ou não o deixasse trabalhar em seu ritmo (o primeiro volume levou seis anos para ficar pronto), teria talvez escrito mais um livro interessante, mas não o monumento que nos legou.
O que estes exemplos nos ensinam é que um trabalho intelectual de grande alcance só pode ser feito em condições adequadas – e uma delas é a confiança dos que decidem (e manejam os cordões da bolsa) em quem se propõe a realizá-lo.
Tal confiança envolve não suspeitar que tempo longo signifique preguiça, admitir que pensar também é trabalho, que a verificação de uma ideia-chave ou de uma referência central pode levar meses -e que nada disso tem importância frente ao resultado final.
Em tempo: um dos motivos encontrados por Needham para o estancamento da criatividade chinesa a partir de 1500 foi justamente a aversão de uma estrutura burocrática acomodada na certeza de sua própria sapiência a tudo que discrepasse dos padrões impostos.
Enquanto isso, na Europa (e depois na América do Norte) a inovação era valorizada, e o talento individual, recompensado. Nas palavras de um sinólogo citado no fim do livro, o resultado da atitude dos mandarins foi que "o incentivo se atrofiou, e a mediocridade tornou-se a norma". Seria uma pena que, em nome da produtividade medida em termos somente quantitativos, caíssemos no mesmo erro.

Não sei como dentro dos atuais padrões do Lattes se contaria a monumental obra de Needham. Talvez valesse menos que dois ou três artiguetes escritos na corrida, formados por (auto-)plágios. Repito, é preciso repensarmos como avaliar a produtividade acadêmica. Nessas reflexões, adito votos de uma muito boa terça-feira e o convite de nos encontrarmos aqui, amanhã.

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