Porto Alegre Ano 5 # 1514 |
É a manhã do primeiro sábado de primavera 2010. O dia parece cumprir o design previsto para estação. Manha de céu azul, temperatura agradável.
Quando depois de assistirmos a um filme o relembramos e de vez em vez o comentamos, dizemos que o filme entrou em nós. Pois desde que na primeira hora de ontem retornei de Campo Grande o IV Seminário Internacional: Fronteiras Étnico-Culturais e Fronteiras da Exclusão que envolvera a Gelsa e a mim, desde a noite de segunda-feira se fez presente em meus fazeres de maneira inusual, se comparo a outros eventos que assisto. No Seminário de História e Filosofia que ministrei pela manhã, em mais de uma oportunidade nas discussões acerca dos mentefatos culturais que usamos para a leitura de mundo, me referi a temáticas que ouvi no ‘Fronteiras’. Quando do almoço das sextas feiras com meu trio ABC, que ontem teve uma alteração na constituição: a Maria Clara, juntou-se ao André e a a Clarissa em substituição ao Bernardo, que estava fora de Porto Alegre. À tarde na entrevista à jornalista Vera Nunes da revista NovOlhar, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana quando falamos sofre História do pensamento científico e do confronto entre ciência e teologia foi natural que eu ‘retornasse’, em alguns momentos a Universidade Católica Dom Bosco. Em leituras do material que amealhei no encontro, especialmente no livro ‘Povos indígenas e Sustentabilidade: saberes e práticas interculturais na universidade’ e em conversas com a Gelsa a semana que encerrávamos voltou densa.
Assim parece natural que a dica de leitura que é tradição sabática aqui hoje tenha marcas indígenas. A UNESCO definiu, para fins estatísticos, na década de 60 que se considera livro “uma publicação impressa não periódica, que tenha no mínimo 49 páginas, sem contar as capas.” Não sei por que o mítico 7 x 7 foi escolhido. Mas concluo que hoje a sugestão sabatina não é de um livro, mas sim de um opúsculo, palavra que para mim tem poesia na designação de um objeto muito querido.
CUNHA, Fátima Cristina Duarte Ferreira (org). Caminhando pelo mundo: Mitologia terena. Texto em português, terena, inglês, espanhol. Campo Grande: Ed.UFMS. 24p. Ilustrado, 21 cm Brochura. 2010, 978-85-7613-259-2
O simpático opúsculo Caminhando pelo mundo: Mitologia terena é um dos produtos da dissertação de mestrado de Fátima Cristina Duarte Ferreira Cunha, no ano de 2008, na Linha 3: Diversidade Cultural e educação indígena do Programa de Pós Graduação em Educação, na Universidade Católica Dom Bosco.
A prof. Dra. Marina Vinha, Coordenadora do Curso de Licenciatura indígena Teko Arandu da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Grande Dourados escreve na apresentação que a relação de Fátima Cristina com as questões do ambiente e, principalmente, com ambiente da Aldeia Bananal, localizada no município de Aquidauana foi o mote para que elementos culturais de uma das versões da mitologia terena, escrita em 1947 pelo antropólogo Baldus, fosse detalhada citando as aves e os bichos que precederam a existência do povo Terena.
A apresentadora da sugestão de hoje conclui dizendo que ‘foi a palavra, ou a língua Terena, trazida por um desses seres, quem trouxe para esse povo o lugar da diferença; A diferença cultural, em mundo que todos eram iguais. A pesquisadora teve o esforço de transformar esses elementos constitutivos da identidade dos Terena em um livro dedicado as crianças, mas que alegra jovens e adultos’.
Em http://pib.socioambiental.org/pt/povo/terena aprendemos que o Mato Grosso do Sul abriga uma das maiores populações indígenas do país. Os Terena, por contarem com uma população bastante numerosa e manterem um contato intenso com a população regional, são o povo indígena cuja presença no estado se revela de forma mais explícita, seja através das mulheres vendedoras nas ruas de Campo Grande ou das legiões de cortadores de cana-de-açúcar que periodicamente se deslocam às destilarias para changa, o trabalho temporário nas fazendas e usinas de açúcar e álcool. Essa intensa participação no cotidiano sul-matogrossense favorece a atribuição aos Terena de estereótipos tais como “aculturados” e “índios urbanos”. Tais declarações servem para mascarar a resistência de um povo que, através dos séculos, luta para manter viva sua cultura, sabendo positivar situações adversas ligadas ao antigo contato, além de mudanças bruscas na paisagem, ecológica e social, que o poder colonial e, em seguida, o Estado brasileiro os reservou.
Acerca da Cosmologia e do xamanismo no mesmo endereço antes citados se conhece que, apesar do longo tempo de contato, os Terena, sobretudo aqueles residentes nas aldeias mais "tradicionais", como Cachoeirinha e Bananal, utilizam os poderes dos seus "porangueiros", como dizem, ou curadores (xamãs, em terena: koixomuneti). Recorrem a estes para a cura de doenças, interpretadas como "males do espírito" que afetam o corpo do indivíduo (não há separação entre o corpo e o espírito na concepção dos curadores terena). Também possuem o poder de descobrir feitiço que terceiros podem ter colocado no doente, causando sua morte. Estas acusações são uma constante fonte de fuxicos, que geram crises políticas internas nas aldeias de Cachoeirinha, por exemplo. O koixomuneti age por meio de um "espírito companheiro" (koipihapati) que na verdade é quem "descobre" as coisas encobertas e lhe orienta na cura.
Em Cachoeirinha, no mês de maio, quando as plêiades voltam a aparecer no horizonte, realizam uma festa (oheokoti) em que os vários koixomuneti, paramentados e pintados, utilizando seus instrumentos básicos de trabalho (o "porango" ou maracá - itaaká e um tufo de penas de ema - kipahê) passam a noite cantando em invocação dos seus "espíritos guia" para que tragam boas colheitas, abundância e para livrar a aldeia dos "feitiços".
O mito de origem do povo Terena, um longo relato de como o herói civilizador duplo (tem uma parte "gêmea" que age como um anti-herói) Yurikoyuvakái tirou-os de debaixo da terra e ensinou-lhes o uso do fogo e das ferramentas agrícolas, é ainda passado de geração a geração, pelo menos em Cachoeirinha. É essa dupla face do herói que fundamenta o comportamento dos membros das metades xumonó (gozadores, "bravos") esukirikionó (sérios, "mansos"), ainda presentes em muitos aspectos da vida social e cerimonial Terena.
Assim, ainda marcado pelo IV Seminário Internacional: Fronteiras Étnico-Culturais e Fronteiras da Exclusão, ofereço aos meus leitores o convite para conhecermos algo de um povo que é fundante de nossa brasilidade. Um muito Com sábado a cada uma e cada um.
Bom dia, Professor!
ResponderExcluirMe recuperando [aliás eu e meu filho] de uma dessas viroses loucas nesta última semana...
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Sabe, lendo tua sugestão de hoje, estava me lembrando de uma situação pelo qual meu marido passou esses dias atrás.
Ele é o típico cafuzo, apesar de como ele mesmo diz ser mais é 'confuso', devido às muitas misturas, não vendo-o não há como negar a prevalência dos sangues índio e negro. Enfim, quando o pessoal do censo bateu à nossa porta este ano, f oi ele quem os atendeu; e uma das primeiras perguntas é justamente: "Qual a sua cor?"E as sugestões de respostas são extremamente restritas:"branco-preto-pardo-amarelo"
Ele não se encaixa em nenhuma delas e, por mais que tentasse, não conseguiu.Acabou deixando o branco...
Eu fiquei pensando depois o quão 'exclusiva' é esse tipo de pergunta, esse tipo de pesquisa...
Um povo que, como o senhor mesmo nos diz, "é fundante de nossa brasilidade", sequer aparece em um censo...e pergunto:para eles é diferente?!Tipo, são outras perguntas que vão até eles para serem respondidas, ou nem vão?!Acabei ficando com esta dúvida...
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Bom, um sábado de primavera bem colorido!
=]
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Abraços!
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Muito querida colega Thaiza,
ResponderExcluirPrimeiro, votos de recuperação de mais destas viroses. Sabes que ainda ontem comentava com uma jornalista acerca de minhas expectativas com o censo... Mas parece que o censo não tem bom censo.
Um bom resto de sábado para ti e para os teus.
Afagos do
attico chassot
Estimado professor estou encantada e agradecida pelos comentários! Sou apaixonada pela causa indígena e me dedico principalmente aos Terena, que são da minha região, Aquidauana, MS.
ResponderExcluirProfessora Fátima Cristina
facdf@hotmail.com
Muito estimada colega Fátima Cristina,
ResponderExcluirfico feliz que tenha havido ressonância com minha blogada de hoje.
Este blogue diário tem a pretensão de fazer alfabetização científica, numa dimensão muito ampla.
Há mais de dois anos aos sábados trago dicas de leituras e é a primeira vez que tenho o retorno de uma autora.
Agrada-me também ter hoje um acesso em Aquidauna, O Mato Grosso do Sul, em minhas diferentes estadas em Campo Grande e Dourado tem me oferecido aprendizados. Queria que estendesse minha admiração àquelas e àqueles que são teus parceiros nesse lindo opúsculo incluindo também a Professora Marina.
Com muita admiração
attico chassot
sobre o censo... estou pasma: esta semana, um agente bateu na nossa porta, fez aquelas perguntinhas que as respostas bem podem ser inventadas. E, como o vizinho não estava em casa, indagou por informações dele!! "Mas a sr não sabe mais ou menos a idade deles? a casa deve ter uns dois quartos, né?" Soube depois que muitos questionarios foram preenchidos assim...
ResponderExcluirE diante desta rica miscigenação, por que, por que, classificar as pessoas em "assim ou assado".
Muito querida Marília,
ResponderExcluirnão sei se leste minha blogada acerca de minha recepção a moça do censo. Lamentei ter ficado nos 95% do questionário rapidinho. Estou com plano de no censo 2020 me candidatar a recenseador.
Antecipo na fazer essas que o teu fez.
Fiquei feliz que a autora do livro que recomendo hoje postou um comentário.
Um muito bom saldo de sábado ai na hinterlândia.
Afagos saudosos e não esqueça teu livro.
attico chassot
enquanto pensava: esta obra é um folheto, brochura que não ultrapassa 48 páginas, corri ao dicionário a consultar o significado de opúsculo. ^^ Neste anos de biblioteca, se algum leitor pedisse por opúsculo, não sei o que lhe indicaria. Sempre enriqueço vocabulário lendo este blogue!
ResponderExcluirMeu caro Mestre Chassot! Vibro com a blogada de hoje, quando fazes tributo a uma obra dedicada ao resgate daqueles que nos antecederam no povoamento destas paragens, e que tanto tiveram que pagar com o proprio sangue pela colonização iniciada com o advento de 1500. Aproveito para registrar aqui os cumprimentos à Fátima Cristina pela bela idéia. Abraços e bom domingo. JB
ResponderExcluirMuito querida Marília,
ResponderExcluirpois pensei que no meu comentário anterior te surpreenderia com a beleza de substantivo que escolhi para teu hábitat: HINTERLÂNDIA. Vibro te encantares com OPÚSCULO = impresso ou livro pequeno, de poucas páginas; folheto de conteúdo artístico, literário, científico etc. Parece-me uma palavra tão sonora. Lembro sua etimologia: opus = obra. Opúsculo = obra pequena ou obrazinha. Opereta deve ter a mesma origem/significado. O trabalho da Fátima Cristina é lindo opúsculo.
Ósculos para muito bom domingo envolvida em alguns opúsculos
attico chassot
Muito querido Jairo,
ResponderExcluirtu como meu leitor muito assíduo viste o quanto este seminário na UCDB entrou em mim. Como historiador entendes por que de meu encantamento com o trabalho da Fátima Cristina ~~ que recebe copias destes comentários ~~ que busca uma história em tempos pré-cabrálicos.
Que este primeiro domingo de primavera será seja muito bom.
Um afago com saudades,
attico chassot
bom, meu pai usava um termo semelhante quando se referia ao quintal, horta. Soava como "enterland". Dai buscando o significado entendi os dois contextos. ~~
ResponderExcluirMarília querida,
ResponderExcluirObrigado por responderes a minha provocação linguística. Vês que brincamos com senso/censo, ósculo/opúsculo e ainda Hinterlândia. Hoje falo na voz do tucano, que certamente será novidade.
Afagos dominicais
attico chassot