Porto Alegre * Ano 5 # 1675
Porto Alegre * Ano 5 # 1675
Se os sábados são dias de falar em leituras, inauguro as cinco edições carnavalescas, como anunciei ontem, com textos de autores convidados. Tinha outra pauta preparada. Mas a Gelsa e eu nos comovemos esta manhã com a carta que Cíntia Moscovich [(Porto Alegre 15mar1958)| escritora, autora de “Duas iguais” e “Por que sou gorda, mamãe?”] escreve ao filho de Moacyr Scliar. Assim, esta edição é uma homenagem a Moacyr Scliar, de quem hoje recordamos o sétimo dia de passamento. O texto está no caderno Cultura de Zero Hora de hoje. A foto é do arquivo do jornal e ilustra a matéria. O caderno Vida de hoje é dedicado ao médico Moacyr Scliar.
Com votos de um muito bom sábado, vale fruir o emocionante texto de Cíntia:
Querido Beto,
Acabamos de enterrar teu pai. A tua tristeza e a da tua mãe, a tristeza dos teus tios,
primos, de toda tua família, isso foi coisa de não ter mais tamanho. A tristeza de tua mãe era um sentimento como que resignado; tua mãe, sempre gentil, digna, amorosa, mostrou-se tão grande para enorme provação, a maior delas.
Tu estavas mais que triste, no entanto: estavas inconsolável, como fica inconsolável o filho único de pais amantíssimos diante da morte. Me ocorreu que tu representavas em potência máxima o desamparo a que foi arrojada a legião de amigos e leitores que teu pai reuniu ao longo da vida – embora rigorosamente nenhum sentimento na face da terra se compare à tua dor e à dor de tua mãe e de todos os teus. Quis te escrever, Beto, para, quem sabe, te aliviar um pouco a dor. E queria que a dor de todos os amigos e leitores e admiradores fosse também aliviada, quando ainda o luto nos pesa.
Beto, vi tua indignação com a perda, tu que te amparavas na doçura de tua jovem mulher, ela também triste, triste. Eu entendo que a morte do teu pai te revolte e que não compreendas e muito menos te resignes com o sofrimento pelo qual ele passou. Tens razão, Beto querido, teu pai não merecia, um homem bom demais para uma morte suspensa em 40 e tantos dias de agonia. Beto, vou te dizer uma coisa que eu sei, que a doença é sempre uma obscenidade e que a morte é sempre uma ofensa. Te digo mais, que é verdadeiríssima a voz corrente, sempre partem antes os bons, talvez porque, também segundo a voz corrente, Deus chame antes aqueles que ama – nessas horas a gente fala de Deus.
Beto, o que eu queria te falar, bem falado, é que a morte não tem volta. Não tem mesmo, não adianta esperar por um milagre. Os milagres, Beto, já aconteceram. Uma mulher e um homem que se amaram, o filho desejado que chegou, um médico que escrevia belos livros e que tinha uma vida honesta e íntegra. Um milagre, Beto – e me lembrei que quando eras pequeno, teu pai te chamava de Beto, o Terrível, e foste uma criança tão linda quanto o homem em que te transformaste. Foste um milagre na vida de teu pai e da tua mãe, assim como um foi o milagre do outro.
Milagres. Beto, teu pai foi um dos maiores milagres para a gente do Bom Fim. Teu pai nos deu um rosto, a nós, judeus, que nem bem cem anos viemos de outros continentes para nos aquerenciarmos aqui, na remota ponta dessa América que fica do lado de baixo do mundo. Teu pai deu nova feição a nós, gaúchos, nós, brasileiros: teu pai se consagrou imortal da Academia, foi traduzido numas quantas línguas, falou para plateias em lugares diferentes do mundo.
Beto, teu pai chegou lá no alto, lá bem no alto, sem nunca, nunca, nunca fazer mal a quem quer que fosse. Teu pai, Beto, estendia a mão para que os outros subissem. Teu pai era generoso porque era sábio – só um sábio entende a bondade como a virtude alheia. Além disso, teu pai nos deu histórias cheias de fantasia, imaginação, humor, literatura que, por definição, sobrevive ao próprio criador. E assim, no virar das páginas dos livros, teremos novamente nosso amigo e escritor.
Beto, eu sei, tu perdeste teu pai, livros não te bastarão. O que fica de quem se vai é isso mesmo, o quanto foi feito em vida pelos seus e pelos outros, e aqui está um outro milagre que te cabe no mundo. Beto, a dor que estás sentindo vai passar. Sei que parece impossível, mas vai passar, eu juro. No lugar dela, devagarinho, vai nascer um sentimento que é triste mas que é bom, que é o que a gente chama saudades e, que no teu caso, deverá envolver também um baita orgulho. Tu vais ver, Beto, o quanto ser filho de um homem bom vai te ajudar a própria vida e o que vai ser de alentador a recordação bela e limpa.
Beto, diz um ditado da nossa gente que os verdadeiros mortos são aqueles que não são lembrados. Beto, teu pai é mesmo imortal.
Um beijo em ti e em todas as pessoas que amam teu pai.
Hoje pela manhã quando abri a zero hora o que mais me chamou atenção foi esta carta emocionante e verdadeira escrita para o filho de Moacyr Scliar .Me admirei da rapidez como o querido colega Attico atualiza seu blog e feliz por ver que os temas escolhidos por ele coincidem com os que são do meu interesse .Moacyr Scliar merece ser muito homenageado porque além de ser um excelente escritor , um médico que contribuiu para o avanço da saude publica em nosso estado possuia duas qualidades que só os que tem a verdadeira sabedoria possuem :simplicidade e empatia com seus leitores .Marlene danesi
ResponderExcluirMuita querida colega Marlene,
ResponderExcluirprimeiro permita-me registrar a a alegria de ter com meu comentário acerca da gaguez capturado uma leitora tão distinguida. A carta da Cintia é emocionante e penso que todos nós nos sentimos confortados com a expectativa da transformação do luto em saudade.
Destacas com oportunidade o reconhecimento ao médico Moacyr Scliar.
Permito-me antecipar-te o título de um texto polêmico da edição de amanhã: Moda, anorexia e bobas da corte.
Votos de um bom recesso carnavalesco
attico chassot
Cíntia Moscovich ao escrever para Beto Scliar sobre o luto que a familia vivencia e o legado deixado pelo patriarca, consegue brilhantemente materializar o abstrato: a empatia. É fato que este século tem suprimido os sentimentos nobres, outrora natos à humanidade e instaurado o culto exacerbado do "eu" produzindo uma sociedade ensimesmada. A carta em questão é um poço de sensibilidade. Quero registrar meus sentimentos à familia enlutada e, com pequenas ressalvas, faço minhas as palavras de Cíntia à familia.
ResponderExcluirAtenciosamente,
Eliézer Barros
eliezerbarros@hotmail.com
Acadêmico em Letras Univ. Est. de Goiás
Muito prezado Eliézer,
ResponderExcluirprimeiro rejubilo-me em ter um acadêmico em Letras leitor e seguidor deste blogue. Realmente dizes com oportunidade acerca da empatia da carta de Cintia. Sentimo-nos todos amparados na transmutação do luto em saudade.
Obrigado por tua/nossa solidariedade.
attico chassot
Caro Attico,
ResponderExcluira carta que reproduzes também muito me emocionou. Espero que a família enlutada possa ser fortalecida por estas e tantas outras demonstrações de afeto, pois o Moacyr não estará morto, como diz a carta em seu final: os verdadeiros mortos são aqueles que não são lembrados.
Abraços,
Amado Professor Chassot!
ResponderExcluirTive o prazer de ano passado conhecer Moacyr Scliar. Ele esteve em Rio do Sul e nos brindou com uma conversa sobre sua vida, sua profissão e seu encantamento com a escrita e a leitura. Esse momento por mais breve que tenha sido, para mim foi como se o conhecesse a muito tempo, pela simplicidade e gentileza. E esta carta realmente me emocionou. Quero deixar aqui meus sentimentos e que o importante também é deixar saudades... Assim como estamos com saudades de vê-lo e poder ouví-lo mais vezes. Sei que esteve em Blumenau bem pertinho de Rio do Sul. Um forte abraço e também para Gelsa. Anelise
Meu querido amigo e colega,
ResponderExcluirquando te imaginava folião nas ladeiras de tua O..linda, tenho a alegria de receber teu solidário comentário.
Um bom domingo
attico chassot
Muito querida Anelise,
ResponderExcluirque bom ver-te reaparecer aqui. Vibro com isso.
Sentimentos semelhantes aos teus – recordação de um único contato com o Moacyr Scliar – têm sido evocados.
Espero que tu e a Sandra estejam bem.
Lembrei particularmente de vocês nos dias de Blumenau.
Um bom domingo
attico chassot
Attico,
ResponderExcluirparece-me que este carnaval passará na esquina, pois amanheci adoentado ontem. Fui forçado a um dia de repouso em pleno carnaval, em que dei algumas escapadas ao mundo cibernético.
Hoje, ainda conturbado pela crise de sinusite, inicei pela leitura de Florbela Espanca ao som de Calabar, de Chico Buarque. Que os raios de sol que agora se levantam possam animar-nos nesse domingo.
Grande abraço.
Muito querido amigo Paulo Marcelo:
ResponderExcluirDesejo pronta recuperação para que possas fruir do carnaval que sei estar incluído no que te faz polímata.
A amizade e a admiração do
attico chassot