ANO
9 |
EDIÇÃO
3024
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Num imprevisto despertar à madrugada,
pareceu-me — em instante súbito — que esquecera a luz acessa. Ledo engano. O
quarto se fazia iluminado pelo plenilúnio. Dava-me conta que era quase
sexta-feira-santa. Celebração que por ser marcada por calendário lunar —
diferente de outras — sempre ocorre em lua cheia.
A data é prenhe de evocações. Algumas logo
se fizeram presentes em maiêuticas saudosas que povoaram a busca por mais uma hora
de sono que merecia. Não iria colher marcela. Não guardaria jejum. Não faria
abstinência de carne. Nem sei se comeria peixe. Lembrei-me de minha mãe que não
varreria a casa e de meu pai, que mesmo marceneiro, não usava martelo neste
dia. Ele não permitiria nem que assobiássemos. Minha avó não ordenharia as
vacas.
Como tudo isso é distante. Como a religiosidade
se mitifica. Como mitos se esboroam. Adormeço pensando no que dizer para meus
netos acerca da Páscoa.
Hora depois acordo. Alegro-me com um
ritual matinal que ainda ocorre: há jornal à porta. Dou-me conta que este
requinte cotidiano não deve subsistir por muito tempo. Há pelo menos duas
conspirações contra esta mordomia.
A primeira:
um tablete ou mesmo um smartphone me oferece não apenas o jornal local (que
parece significativo porque me anuncia óbitos e missas de sétimo dia de
possíveis conhecidos), mas jornais de todo o mundo. Olho jornais espanhóis e
evoco uma semana santa que passei na Andaluzia. Nos jornais franceses sei mais
sobre a tragédia aérea nos Alpes. De vez e vez, espio até o L’osservatore Romano. Devo aqui confessar
que não poucas vezes ouço a rádio vaticana.
A segunda
razão que me seduz ao abandono de assinar jornal em suporte papel é o apelo do
meio ambiente. Condoo-me quando vejo o volume de papel que descarto a cada
semana, mesmo que este ano já tenha deixado de assinar um jornal. Há um número
muito grande de páginas (noticiário de futebol, classificados e publicações
legais de empresas) que nem sequer abro. Além de anúncios fúnebres para que
assinar jornais em suporte papel?
Tomo o jornal. Enquanto promessa fugaz,
deleito-me, ainda, antes do café e da academia com quase uma hora de leitura
diária, entremeada com notícias de rádio, onde pontificam os ditos formadores
de opinião, que sabem tudo melhor que ninguém. Convenço-me que é saboroso ler
jornal em suporte papel. Desentranho por primeiro os encartes que me
desinteressam. Há um, de rede de lojas, que
tem na capa uma modelo com um título que me repugna. A vida é um grande desfile.
Nego-me a sequer folha-lo. Esta simplificação capitalista para a vida é
desoladora. Mas, lamentavelmente vejo que na sociedade atual é verídica. Um dos
itens que mais pesa no orçamento de muitas pessoas é o vestuário. E este é para
quem? Para desfilar para os outro. Vi ontem num tapume, na av. Goethe: Estar
na moda é sentir-se. Não sou adepto do nudismo, por questões estéticas.
Se tivéssemos pelos como nossos irmãos macacos, nos sentiríamos mais na moda. Pelados
(também no sentido de sem pelos) a maioria de nós não parece muito bonita. Penso
que a experiência de usarmos roupas mais iguais, como por exemplo, entre os
gregos, na época do nascimento da filosofia ocidental, era mais simpática. Uniformes
unissex como na China de Mao, eliminaria muitos estresses antes de da maioria
das partidas de casa a cada dia.
Encerro com votos de
um bom recesso pascoalino. Aos que creem e aos que não
Muito querido Mestre,
ResponderExcluirDensas reflexões em três tempos.
PASSADO: o que era há pouco tempo a sexta-feira-santa; PRESENTE: a vida realmente é um desfile; FUTURO: o ocaso dos jornais em suporte papel.
Um bom recesso de Páscoa e obrigado por esta blogada
mirian
Salve, Mestre!
ResponderExcluirUma edição para matar saudades e, duas dimensões. Uma próxima, pois lembro quando a cada dia tínhamos suas reflexões; agora, é bom ter surpresas quando acessamos o seu blog e encontramos novidades. Uma remota, e a suas evocações lembro, quando nesse dia as estações de rádio (era assim que chamávamos as emissoras de rádio) só tocavam música clássica. Agora enquanto escrevo a há uma música barulhenta e avisos que os shoppings estarão abertos normalmente.
Saudades próximas e remotas,
LLL
Carissimo amigo prof. Chassot:
ResponderExcluirAcabei de ler sua (sempre) pertinente reflexão sobre a sexta feira santa e sobre o jornal impresso. Assino embaixo, sem mudar sequer uma vírgula.
Amanheci numa ensolarada sexta feira santa de Belém. Na minha infância o silêncio também se impunha e o que eu mais lamentava era a proibição do futebol.
Abs
José Carneiro
Carissimo,
ResponderExcluiraprendi mais um pouco com o teu blog. Plenilúnio...nunca tinha ouvido falar!
Minha mãe, que guarda muito das tradições deste dia, hoje não varre casa e vai fazer bacalhau! Este ano, com ela, acompanhei muito das cerimonias da quaresma e confesso que gostei.
Conquistei muita coisa nessa minha vida breve e de tudo a acho a paz e o amor os bens mais necessários.
Desejo fortemente que essa disposição não me seja extinta com a chegada do coelhinho e seus ovos de pascoa!
boa pascoa, amigo!
beijim,
Rita
Caro Chassot
ResponderExcluirminha mãe nos compungiu a visitar uns amigos, na minha infância, porque inadvertidamente teria dito, a uma despedida : qualquer dia irei comer uma galinha contigo. Depois, refletindo, pensou : vou constrangê-lá a matar uma galinha por minha causa! Então vamos numa sexta-feira santa. Assim ela não poderá matar a galinha e eu vou me livrar dessa pecha.
Boa Páscoa!
Caro Chassot
ResponderExcluirminha mãe nos compungiu a visitar uns amigos, na minha infância, porque inadvertidamente teria dito, a uma despedida : qualquer dia irei comer uma galinha contigo. Depois, refletindo, pensou : vou constrangê-lá a matar uma galinha por minha causa! Então vamos numa sexta-feira santa. Assim ela não poderá matar a galinha e eu vou me livrar dessa pecha.
Boa Páscoa!
Querido Chassot
ResponderExcluirObrigada pelo convite/lembrança, vou curtir a Lua...
Feliz Páscoa para ti junto aos teus.
Obrigado pelo convite e a enriquecedora leitura que me proporcionaste. E é claro mais um rito.
ResponderExcluirHoje, ao entardecer aproveitei para sorver a típica bebida dos sulinos com meus queridos jovens(70 e 74 anos) vizinhos e, ao visualizarmos o firmamento, juntos curtimos o plenilúnio anunciado pelo mestre. Aproveitei para comentar da nossa amizade, de tradições religiosas e outras particularidades da vida. E assim se percebe o quanto é bom viver distante dos apelos consumistas e midiáticos. É possível SER sem TER muito, basta SABER o que se QUER. Para mim e os que coabitam meu Lar eis um dos sentidos da Páscoa. A Lua é nossa fiel testemunha...
ResponderExcluirVotos de uma frutuosa páscoa. Que sua mente continue fértil como o coelho, repleto de ideias, saberes e sabores!!!
Abraços,
Giovana, Lúcia, Luvander e Vanderlei.
Mestre Chassot, uma pitada de insônia e um show de filosofia, divagações que enriquecem qualquer debate.
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