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sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Lilith abandona um jardim edênico

                                                 15 0UTUBRO 2021

ANO 16     *************   EDIÇÃO 2019 

  


Esta é uma edição muito especial.  Ela se faz engalanada por ser do DIA DA PROFESSORA / DIA DO PROFESSOR. Imagine-se, por exemplo, o frontispício emoldurado por floradas de jacarandás que a cada outubro fazem um tapete roxo em distintas ruas de Porto Alegre. PEDIDO DE DESCULPAS: Como fiz no Facebook e no Instagram, renovo aqui meu pedido de desculpas ao Programa da UFPR Meninas e Mulheres nas Ciências por não ter conferido ao Programa paranaense os créditos pelo uso da imagem (um card com representação das sete laureadas com o Nobel de Química em 120 anos) que ilustrou a última edição.

Na edição de 24/SET2021, narrei aqui assemblages de escritos que abrem capítulos de uma tese doutoral. Estes textos são ‘misturas’ de textos ficcionais com não ficção. No caso em tela estes textos (ficcionais) envolvem ou são envolvidos pelos quatro elementos: ar, água, terra e fogo. Num dos textos há quatro acadêmicos: uma judia, um cristão, um islâmico e um ateu que se envolvem com um dos quatro elementos. Hoje brindo meus leitores com o primeiro dos quatro relatos, trazidos do livro Os quatro elementos entre ciência e religião. Este livro está assuntado na edição de 17SET2021. Estes textos foram produzidos para a tese doutoral de Patrícia Rosinke quando da edição de uma Seleta contendo contos acerca dos quatro elementos, in Contos químicos por químicos contistas. Márlon Herbert Flora Barbosa Soares, Goiânia: Editora Espaço Acadêmico, 109 p ISBN 978-85-80274-76-5. Depois deste extensos preâmbulos, ao texto.

  1. Lilith revisita Terra que fora edênica 

Mathilde Aguillar Martínez*

E disse Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num lugar; e apareça a porção seca; e assim foi. E chamou Deus à porção seca Terra; e ao ajuntamento das águas chamou Mares; e viu Deus que era bom (Gn, 1: 9.10).


Estar no terceiro milênio da era cristã não nos faz imunes aos mitos antigos, em cuja sombra se tecem fantasias, lendas e inclusive cosmogonias com sabor atual. 

No romance Caim, Saramago destaca a figura de Lilith – esposa de Noah, das terras de Nod –, a quem destina o papel de iniciar a Caim na arte amorosa e com quem teria um filho: Enoc, bisavô de Matusalém.

Todavia, há outra Lilith, uma que permaneceu quase desconhecida e que forma parte dos mitos antropogênicos. 

Segundo a Cabala judaica, Lilith foi a primeira mulher, criada igual como Adão. Eva seria uma criação posterior, produto de uma costela do varão.

No sexto dia do primeiro relato da criação, Deus cria o homem a sua imagem e semelhança “Macho e fêmea os criou” (Gn 1:27). Esta narração refere ao primeiro casal humano que teve origem similar.

No segundo relato da criação, Deus forma o homem com pó da terra — um dos elementos primordiais — e lhe infunde alento de vida. Para que não esteja só e o ajude, faz um ser semelhante a ele de sua costela e forma a uma mulher, de quem o homem diz: “Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; ela será chamada varoa (virago), porquanto do varão foi tomada” (Gn 2:23).

Enquanto no primeiro relato a fêmea (mulher) é reflexo de Deus, no segundo, é reflexo do homem.

Por que o Gênesis refere duas criações? Alguns consideram que os versículos são reiterativos e dão a conhecer um mesmo feito de uma maneira diferente.

Outros, diferentemente, aduzem que o primeiro relato alude à criação de uma primeira mulher: Lilith, cujo nome se relaciona com a palavra hebraica lailah, que significa noite.

Lilith se torna o par de Adão, com quem comparte um mesmo gérmen ontológico. Teria uma personalidade forte e emancipada que faz com que se associasse com lado escuro e com a malignidade.

Segundo a tradição judaica, Lilith se opõe a aceitar a postura amorosa que Adão desejava — deitada e por baixo — por se considerar igual. Como Adão quis obrigá-la a obedecer, ela o abandona, deixando o Jardim do Éden.

Eva, em troca, assume uma atitude mais submissa, menos crítica. Por originar-se da costela de Adão, está sujeita a seu domínio. “... e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará” (Gn 3,16).

Lilith e Eva poderiam ser os arquétipos de um duplo feminino: a maldade versus a bondade, a obscuridade versus a luz, a dureza versus a doçura, a mulher-demônio que se opõe à mulher-mãe. 

A primeira se orienta ao egoísmo, a autogratificação, ao prazer sensual; a segunda ao sacrifício, à união espiritual e à procriação. Extremos dos opostos: demônio/santa, rameira/virgem, que tem categorizado e estigmatizado o mundo feminino.

Sem dúvida, uma e outra compartem de ter desorientado ao homem e até se pode pensar, serem mais potentes que ele. Potência ligada em parte à falta de compreensão que o homem tem do feminino. 

Lilith enfrenta Adão e o abandona como uma forma de emancipar-se; não se submete, o desafia. Eva o faz transgredir: é a autora intelectual do pecado original, sua força reside na má sedução passiva.

Segundo uma velha tradição, Lilith seria uma figura sedutora, de longos cabelos, que voa à noite, como uma coruja, para atacar os homens que dormem sozinhos. As poluções noturnas masculinas podem significar um ato de conúbio com a demônia, capaz de gerar filhos demônios para a mesma. As crianças recém-nascidas são as suas principais vítimas. A crença em Lilith, durante muito tempo, serviu para justificar as mortes inexplicáveis dos recém-nascidos. Uma forma de proteger as crianças contra a fúria da bela demônia é escrever na porta do quarto os nomes dos anjos enviados pelo Senhor. Outra maneira é a de afixar no berço do recém-nascido, três fitas, cada uma delas com um nome de um anjo. À véspera do Shabat e da Lua Nova, quando uma criança sorri é porque Lilith está brincando com ela. Afirmava-se que, na Idade Média, era considerado perigoso beber água nos solstícios e equinócios, períodos estes em que o sangue menstrual de Lilith pinga nos líquidos expostos. 

Aos olhos masculinos, a mulher é em si mesma a caixa de Pandora: enigma indecifrável e fonte do mal.

Se a mulher foi melhorada – produto de um upgrade ou turbinada –, o homem não? Poderia se pensar que assim como se deduz ter havido uma Lilith do primeiro relato possa ter havido outro primeiro homem?

Do ponto de vista antropológico, o Gênesis é um mito de origem que busca explicar o surgimento do primeiro homem e como tal não difere muito de outros mitos, integrantes das diferentes cosmologias existentes.

Devido a maior agudeza da psicologia feminina, o crítico literário Harold Bloom formula a hipótese que alguma parte inicial da Bíblia foi escrita por uma mão de mulher.

Se bem que os desígnios de Deus são inescrutáveis, nós, suas criaturas, nos encarregamos de interpretá-los. 

Para saber mais: Jardim do Éden revisitado in Rev. Antropol. vol.40 n.1. São Paulo, 1997 http://dx.doi.org/10.1590/ S0034- 77011997000100005

*Mathilde Aguillar Martínez é doutora em História pela Universidade de Louvain e Professora da Universidade Hebraica em Bogotá. É de fé judaica, mas não manifesta adesão formal a práticas de vertente de judaísmo ortodoxo. Email: mathiguima@gmail.com

 ADVERTÊNCIA Todos os personagens são ficcionais e qualquer semelhança com pessoas reais, é mera coincidência.

Um comentário:

  1. Chassot, meu querido, saudações amigáveis! Tenho refletido sobre as relações de poder na convivência, o que se pode observar desde o início desta blogada: nos personagens citados, quem determina, quem não aceita tal ordem e quem obedece. Estamos nos alinhando ao que garante subsistência às instituições, ainda que a contação seja em fábula, poesia ou historiográfica. Outros modelos podem concorrer para tal trabalho. Não me ponho a identificar o período dos personagens, mas daqueles que contaram fatos e "fatos" para explicar as relações humanas de convivência, que, com lacunas e humildade, aponto como: relações de poder. Abraços despretensiosos!

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