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sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

EX MORTUIS NIHIL NISI BONUM

 

 ANO 17*** 06/01/2023***EDIÇÃO 2065

À última segunda-feira, além das saborosas evocações da  terceira investidura do Lula como presidente do Brasil, acompanhei pela Rádio Vaticana significativa programação catalisada pela morte de Bento 16. O testamento espiritual de Joseph Aloisius Ratzinger é uma preciosidade, pois contém também uma aula de teologia de fé católica. 

{NOTA DO EDITOR: Há um tempo não uso mais números romanos, pois os mais jovens não os conhecem. Neste texto, nas citações uso números romanos. Quando transcrevo citações, mantenho como no original.}

Já contei que recém posto o blogue no entardecer da sexta-feira, já estou assuntando a próxima edição. Estava buscando um tema para a primeira blogada2023, quando, à noite, minha colega Alessandra, da Unifesspa, de um barco viajando Oriximiná> Santarém sugere que a morte de Bento 16 seria um bom assunto para uma próxima edição. A sugestão foi aceita. Por tal vou tecer esta blogada com ‘uma notícia’ e um ‘texto jornalístico'. Transcrevo os dois textos e após cada um deles teço comentários acerca dos mesmos.

O primeiro texto foi publicado em 10/10/2022 na Aleteia {= site católico diário publicado em vários idiomas ‘destinado a espalhar -- como se auto define -- os ensinamentos de Jesus pela internet’} no qual é comentado que Bento 16 publicara instigante livro em diálogo com um matemático ateu. Eis o texto, numa edição de Francisco Vêneto, jornalista, filósofo e tradutor: A caminho em busca da verdade” testemunha a abertura da Igreja à ciência e àqueles que não acreditam em Deus. O Papa Emérito Bento XVI publicou um novo livro no qual mantém um instigante diálogo com o matemático ateu italiano Piergiorgio Odifreddi (Cuneo, Piemonte, 13 de julho de 1950) é um matemático, lógico e historiador da ciência italiano, que já foi presidente honorário da União de Ateus, Racionalistas e Agnósticos.

O título em italiano do novo livro é “In cammino alla ricerca della Verità“, que pode ser traduzido livremente como “A caminho em busca da verdade“. Ainda não há edição oficial em português. O original foi apresentado ao público no último 6 de outubro, em Roma.

A obra, que testemunha a abertura da Igreja à ciência e àqueles que não acreditam em Deus, consiste na troca de correspondências entre Bento e Odifreddi entre os anos de 2013 e 2022, além de contar os encontros ocorridos entre o pontífice emérito e o matemático ateu.

Os intercâmbios tiveram origem em 2011, quando Odifeddi publicou uma carta aberta ao então Papa reinante. A carta começava citando um livro do próprio cardeal Joseph Ratzinger escrito em 1968: “Introdução ao Cristianismo“. Bento só teve tempo para dedicar-se a uma resposta em 2013, depois da sua renúncia ao pontificado.

A demora em responder foi amplamente compensada pela profundidade do Papa Emérito, que deu origem a uma amizade duradoura com o cientista descrente.

Aliás, dom Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, descreve essa amizade como “coisa rara”, dada a imensa diferença de posicionamento entre os dois amigos. O padre Federico Lombardi, ex-porta-voz vaticano, também comentou a atitude de Bento XVI em responder ao matemático ateu: “É um sinal da sua atenção ao diálogo entre a fé, a razão e a ciência, e da própria atitude voluntária e aberta com a qual ele sempre viveu. Se até um Papa e um ateu podem conversar com amizade, isto significa que nós também talvez possamos nos comportar assim na vida”.

As primeiras cartas entre Bento e Odifreddi tratavam de fé e ciência, mas, conforme a amizade entre os dois se aprofundava, passaram a versar também sobre a vida e a morte, a antropologia, além de questões de lógica. Aliás, os dois se aproximaram ainda mais durante um período doloroso de luto: em 2020, Bento XVI perdeu seu irmão e Odifreddi perdeu sua mãe.

Apresento a seguir meus comentários ao texto de Francisco Vêneto: Os argumentos para justificar o diálogo entre o Papa e o  matemático são frageis e mais, há muito usuais. Considerar essa amizade como “coisa rara”, dada a imensa diferença de posicionamento entre os dois amigos como algo excepcional é exagero, pois algo similar faz parte de nosso cotidiano. Trago apenas um exemplo: tenho um reconhecido amigo, doutor em literatura, de quem fui orientador em estágio pós-doutoral, que é pastor e que já se hospedou em minha casa com quem posso dialogar por horas, sem qualquer estremecimento. Tenho amigos de distintas religiões e alguns que não sei se têm religiões. Tenho familiares muito próximos e queridos que são budistas. Assim não surpreende que até um Papa e um ateu podem conversar com amizade. Parece passaram tempos que, quando fazíamos palavras cruzadas, aparecia ‘homem mau com 4 letras: ateu’. De uma maneira não rara se vê que os ateus são convertidos de religiões herdadas dos pais. Hoje temos uma geração que são ateus de berço. Assim surpreende o destaque ao diálogo entre a fé e a razão. Na Universidade ele é frequente e fertil e não há a marca de proselitismo, presente de maneira mais usual nas religiões.

O segundo texto é de Julian Rodrigues, jornalista e professor brasileiro, ativista do movimento LGBTI e de Direitos Humanos e foi publicado em a terra é redonda’ em 31/12/2022, dia do falecimento do Papa Emérito. Não vou antecipar meu posicionamento discordante ao texto de Rodrigues; ele é expresso no primeiro parágrafo: O desaparecimento de Joseph Aloisius Ratzinger merece um brinde. Perdoem-me os mais sensíveis, sobretudo os católicos. Mas nenhuma pessoa de boa vontade pode deixar de comemorar a morte do senhor Joseph Aloisius Ratzinger.

Não vou entrar aqui em questões de fé. Meu ateísmo marxista é profundamente respeitoso com as crenças das pessoas. Qualquer papa é um dirigente político internacional. A linha teológica- -tática-geopolítica de cada um dos chefes da Igreja Católica tem grande peso (cada vez menor, é verdade) na luta de classes.

Vamos falar de Joseph. O alemão consolidou e reforçou o aggiornamento iniciado pelo polonês Karol Józef Wojtyła. João Paulo II (que reinou de 1978 a 2005) não só interrompeu a fagulha progressista que João XXIII havia aceso, como guinou tudo à direita. Junto com Margaret Tatcher e Ronald Reagan foi um dos artífices da ordem neoliberal. Anticomunista até a medula, Karol perseguiu e puniu os teólogos progressistas em todo o mundo. A história é conhecida: nosso Leonardo Boff – ideólogo da teologia da libertação foi punido com a pena de “silêncio obsequioso” em 1984. Sempre achei muito chic esse castigo –coisa de instituição milenar. Só lembrei de Karol porque Joseph já mandava muito desde o papado dele. Era o chefe da Congregação da Doutrina da Fé. Não sou especialista, mas consta que esse cargo equivaleria a algo como um Suslov – entendedores entenderão.

Há algo excepcional na biografia de Joseph Aloisius Ratzinger (além de ser islamofóbico, sexista, homofóbico, tradicionalista, autoritário, vaidoso, neoliberal). O sujeito foi deposto sutilmente. Aposentado na marra. Os sábios chegaram à conclusão que aquele alemão mal humorado, chato, com cara de nazi e sapatos vermelhos Prada estava queimando muito o filme da Igreja Católica Apostólica Romana. Aí, elegeram um anti-Ratzinger: Bergoglio. Um papa progressista, simpático, argentino, terceiro-mundista.

Bento XVI agiu sempre como um homofóbico militante: “o conceito de casamento homossexual está em contradição com todas as culturas da humanidade” escreveu ele. Jorge Mario Bergoglio, por outro lado, vai avançando quase no limite: “se um casal homossexual quer levar uma vida em conjunto, os Estados têm a possibilidade de lhes segurança, estabilidade não só para os homossexuais mas para todas as pessoas que se desejem juntar. Mas o casamento é o casamento”. Quanta diferença!

O papado de Joseph Aloisius Ratzinger é indissociável de sua renúncia. Optou por sair de cena em meio a várias crises principalmente àquelas relacionada aos crimes de abuso sexual que vieram à tona. Milhares de vítimas, mundo afora relataram terem sido violentadas por padres católicos. Trata-se de algo quase trivial – inerente à organização da igreja e à formação dos sacerdotes.

Joseph Aloisius Ratzinger foi arrastado para o epicentro dessa crise. Não era mais coisa apenas de malucos padres norte-americanos. Ele próprio foi acusado de ter sido conivente com abusos ocorridos no final dos anos 1970, em Munique, quando era o arcebispo da região.

Nos EUA o negócio é tão grave, que a Igreja topou pagar, num único acordo, 88 milhões de dólares para cerca de 300 vítimas – abusadas entre 1950 e 1980 na Diocese de Camden, em New Jersey. Mas é muito pior: são milhares de padres católicos denunciados, de 10 mil para cima. É uma coisa absurda!

Relembro tudo isso porque Joseph Aloisius Ratzinger nada fez para enfrentar esses escândalos, que, na verdade, apenas expuseram uma prática aparentemente usual. Homens proibidos oficialmente de fazer sexo e gozar – e que, ademais, tem vários privilégios, só pode dar nisso. Quando a Igreja Católica vai revogar o celibato? E ordenar mulheres? 

O nojo que a Igreja Católica tem do corpo, do gozo, do prazer é uma fábrica de doenças. Os fiéis fingem que seguem as regrais morais, mas pobre dos padres! Joseph Aloisius Ratzinger operou apenas retrocessos, na linha de uma Igreja mais ritualista, machista, opressora, homofóbica, elitista, e, claro, muito mais hipócrita. R.I.P, primeiro senhor papa impitimado. Não deixará saudades.

Este segundo texto pode ser lido pelo menos em duas dimenções: uma quanto à forma; outra quanto ao conteúdo. Tanto em uma como em outra das dimensões eu não as faço em uma defesa de Bento 16, até porque não pertenço à Igreja do papa. Enquanto professor, e mais pontualmente como orientador e avaliador de teses e dissertações, preceituo que as discordâncias (ou uma oposição) devem ser mais educadas que os elogios. 

No texto em pauta, no primeiro parágrafo de menos de quatro linhas, estão ferreteadas marcas de sentimento de intensa animosidade relativamente ao papa recém falecido ‘que merece um brinde ao seu desaparecimento’, que parece motivado por antipatia, ofensa, ressentimento ou raiva. Considero-me uma pessoa de boa vontade mas jamais me ocorreu comemorar a morte do ‘senhor Joseph Aloisius Ratzinger’. Parece, há uma leitura numa dimensão formal encharcada de ódio em quase cada análise. Isto posto, não vou mais assinala-las. 

Quanto ao conteúdo há que considerar situações no texto de Rodrigues  onde não emergem referências algo positivo, que é usual em obituário. Não recomendaria, muito menos esperaria a recomendação título desta blogada herdada dos romanos ex mortuis nihil nisi bonum {dos mortos nada a não ser o bem}. Bento 16 deixa pelo menos duas peças positivas para o acervo da Igreja Católica Romana:

(1) o Cardeal Ratzinger foi muito mais que um distinguido teólogo em seu breve papado de 7 anos (24/04/2005>28/02/2013). Ele não apenas fez releituras da teologia como ensinou, mas enquanto renomado teólogo católico muito escreveu. Esta produção é um legado apropriado à conservadora Igreja católica. No papado de 26 anos de seu antecessor Karol Józef Wojtyła (e desde 2014, São João Paulo II) Ratzinger foi muito mais que o chefe da Congregação da Doutrina da Fé (ex-Tribunal do Santo Ofício, ou o sucessor do Tribunal da Inquisição). Se o Cardeal Ratzinger assestou seus óculos nas Teologias da Libertação e não as aprovou, foi natural -- não estou julgando o veto pois não sou teólogo e muito menos vaticanólogo -- que Leonardo Boff e outros ideólogos fossem punidos com a pena de “silêncio obsequioso”. Além de um ‘nome simpático’ esta punição é muito mais branda que fogueira, punição de tempos não tão distantes. Nesta terça e quarta feiras as milhares de pessoas que foram se despedir na basílica de São Pedro não vão se despedir do sucessor de João Paulo II nem do Papa Emerito. Lembro o quanto sabíamos do Cardeal alemão pré-papa. Lembro do começo da tarde de 19 de abril de 2005: sabíamos, dos dias anteriores, que pelas 13 horas ocorria o anúncio do resultado do escrutínio da votação da manhã. Estávamos, talvez um grupo de 10 pessoas, no hall do Centro de Ciêsncias Humanas da Unisinos nos preparando para entrar em aula. A televisão informava que a fumaça era branca. Temos papa! Mais uns minutos. O nome do Cardeal Joseph Aloisius Ratzinger foi anunciado e o nome do novo papa. Desânimo total. Eu manifestei minha desilusão atirando ao chão os livros que portava para aula que tinha a seguir. Cercamos nosso colega Professor Carlos Roberto Velho Cirne Lima que fora colega de doutorado de Ratzinger. Queríamos sua opinião.  Queríamos consolo. Foi difícil dar aula aquela tarde.

(2) Uma segunda contribuição para o catolicismo romano foi a renúncia de Bento 16, há 10 anos. Há época foi um dos momentos mais bombásticos no Ocidente. Já vivemos tantas situação desde fevereiro de 2013 que parece natural trazermos relembranças. Ajuda-me em uma sintese a Wikipedia.   

A renúncia do papa Bento 16 foi anunciada na manhã do dia 11 de fevereiro de 2013, quando o Vaticano confirmou que ele renunciaria ao papado em 28 de fevereiro, às 20h. A decisão de Bento XVI em renunciar ao cargo de líder da Igreja Católica o tornou o primeiro papa a abdicar do posto desde o papa Gregório 12, em 1415, que o fizera durante a Grande Cisma do Ocidente, e o primeiro a renunciar sem pressão externa desde o papa Celestino V, em 1294. Foi um gesto inesperado, já que na história moderna os papas se mantiveram no cargo até a morte, para que só então fosse escolhido um sucessor. O papa comunicou que sua saúde frágil era a razão de sua renúncia. O Conclave de 2013 elegeu seu sucessor, Francisco.

Em https://pt.wikipedia.org/wiki/Ren%C3%BAncia_do_papa_Bento_XVI há cópia na integra em português de extensa carta de renúncia escrita por Bento 16.

Para o filósofo Giorgio Agamben, "ao realizar a grande recusa, Bento 16 deu provas não de covardia, como Dante (Dante Alighieri, [séculos 13/14, considerado o maior poeta da Italiano) escreveu talvez injustamente sobre Celestino V, mas Bento 16 foi de uma coragem que adquire hoje um sentido e um valor exemplares. Diante de uma cúria que se esquece totalmente da própria legitimidade e persegue obstinadamente as razões da economia e do poder temporal, Bento 16 escolheu usar apenas o poder espiritual, do único modo que lhe pareceu possível: isto é, renunciando ao exercício do vicariato de Cristo. Desse modo, a própria Igreja foi posta em questão desde a sua raiz.

Após a demissão, o Vaticano explicou que isso aconteceu devido principalmente a sua velhice, e não por causa de suas condições de saúde que são boas para uma pessoa dessa idade, uma declaração que vai de acordo com o anúncio feito pelo Pontífice.

Há os que não aceitam a tese de que Bento 16 ao realizar a grande renúncia, tenha dado de prova coragem mas sim de covardia  que se conecta com aquilo que talvez seja o ‘crime’ maior: a pedofilia de um número significatívo do clero em diferentes países, inclusive no Brasil. Isto por diferentes razões me eximo comentar, aqui. Agora, quando escrevo Francisco, em cadeira de rodas (= sinal de pré-renúncia?) preside as exéquias de seu antecessor.


3 comentários:

  1. Nossa live em 2020 demonstra que o diálogo Ciências-Religião não só é possível como pode ser interessante, alegre e fraterno. Ótima blogada!

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  2. Obrigadíssimo, Sílvia querida! dentre a centena de lives na qual embalamos diálogos -- sem saber que viveríamos a dolorosa do querida perda do Licurgo -- vivemos amorosamente o dialogo entre Ciências

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  3. Muito feliz em ler seu bonito texto, professor. Quero comunicar, também, que seus artigos e o livro Alfabetização Científica (a edição de 2018) participaram da base do projeto de monografia e mestrado do mais novo professor de Química do Brasil: eu! Gostaria de agradecê-lo pela excelente contribuição à Educação. Aprendi e aprendo com suas palavras, principalmente a enxergar o processo de ensino e aprendizagem como uma possibilidade de trazer mais pessoas às discussões possíveis a partir do entendimento da linguagem do mundo natural: a Ciência; e que estas, de preferência, transformem o mundo para melhor.

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