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sexta-feira, 28 de maio de 2021

28MAIO2021 *** O legado de Descartes: bem mais que as coordenadas cartesianas


 

 ANO 15

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EDIÇÃO

1374

 

É a última blogada do 14º mês pandêmico. Cada vez mais, se robustece em nosso imaginário que o bissexto 2020 inexistiu. Consegui, depois de 84 dias de ter tomado a primeira dose, receber a segunda dose da vacina. Vivo desde terça-feira uma dupla sensação.

Pertenço a uma privilegiada elite de 10% da população brasileira bi-vacinada. E os outros por que não têm acesso a esta benesse? A maioria destes, como eu, pagam impostos, não fraudam a constituição... Como eu usam máscara e respeitam o isolamento social... por que não são vacinado?  Por que são penalizados? Só porque o motoqueiro do Planalto não crê em vacinas? Afinal, já morreram mais de meio milhão de brasileiros! E todos nós morreremos! ...

Nesta semana de agenda mirabolante, no esteirar das aulas das tardes de quartas-feiras com o Licurgo (in memoriam) e a Sílvia na UFPA, nos envolvemos muito intensamente com Descartes. A blogada de hoje se tece com uma resenha que publiquei em Educação Unisinos Volume 11, número 2, maio/agosto 2007, p. 138-140, quando, há época, eu era professor de uma das mais importante universidades da América Latina, a jesuítica Unisinos.

O legado de Descartes: bem mais que as coordenadas cartesianas

ACZEL, Amir D. O caderno secreto de Descartes: Um mistério que

envolve filosofia, matemática, história e ciências ocultas. [Original estadunidense: Descartes’ Secret Notebook – A True Tale of Mathematics, Mysticism, and Quest to Understand the Universe]; tradução: Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, 230 p. ISBN 978-85-7110-973-5

Muito provavelmente, quando referimos o nome de René Descartes (1596-1650), no imaginário da maioria dos leitores de Educação UNISINOS aflore sua célebre frase: “Penso, logo existo!”. É razoável essa emergência, pois podemos considerar que Descartes, com esta máxima, tenha “inaugurado” uma nova relação entre corpo e mente, marcando a teorização [e não apenas a experimentação, e quase fazemos uma oposição a seu coetâneo Francis Bacon (1561-1626) a quem creditamos a proposta de um Método Científico] como uma possibilidade de construirmos conhecimento. Mesmo que usemos Descartes diariamente, quando queremos localizar espacialmente um ponto, ou mesmo um móvel, no espaço, muitas vezes, não nos damos conta de estarmos usando um dos mais significativos e úteis resultados de suas várias teorizações e descobertas: as coordenadas cartesianas, ainda de muito significado na atualidade.

Amir D. Aczel, um estadunidense, professor universitário de Matemática e Estatística, conta que muito recentemente estava perdido em uma nevasca no Canadá e foi salvo pelo rastreamento de seu carro por GPS*. Deu-se em conta, então, que fora algo baseado nas coordenadas cartesianas que garantiu que pudesse ser levado ao conforto e à segurança de um hotel. Desejoso, a partir desse evento, de saber mais acerca do inventor que lhe proporcionara ter a vida salva, passa a investigar sua história. Vai viver em Paris, em um edifício do século 17, próximo à igreja de Saint-Germain-des-Prés – aí se diz repousarem os restos mortais de René Descartes –, nas imediações do local em que, há 400 anos, vivera em diferentes oportunidades o genial matemático. Aczel fez então descobertas surpreendentes que nos conta em O caderno secreto de Descartes, um primoroso lançamento recente no Brasil da Jorge Zahar.

Conhecer a vida daqueles que são “nossas bibliografias” é algo que sempre me entusiasma. Como professor de História da Ciência e de Educação nas Ciências, frequentemente, Descartes está em minhas falas e, é natural, no meu cotidiano, por exemplo, toda vez que preciso me localizar espacialmente. Foi, para mim, das mais enriquecedoras e sumarentas leituras que fiz sobre a vida e obra do filósofo e matemático da aurora da Revolução Científica.

Aczel nos oferece uma sumarenta biografia do francês que perambulou por quase uma dezena de países da Europa. Sabemos sobre seu nascimento em berço protestante e próspero, mas também de sua adesão à fé católica romana devido aos ensinamentos recebidos de sua devota governanta católica. Conhecemos sobre seus significativos anos de estudos no magnífico colégio La Fleche dos jesuítas e do seu ser soldado voluntário de Nassau na Holanda. Recebemos detalhes de seu vagar, por mais de nove anos, por muitos países da Europa em busca de voluntariado em exércitos envolvidos em guerras religiosas, quando sempre achava tempo para “entreter-se com seus pensamentos em seu ‘forno’”, como chamava seu quarto superaquecido. Nesse peregrinar, sempre com seu fiel camareiro, Descartes está resolvendo problemas como aqueles dos geômetras gregos, insolúveis há dois séculos, como duplicar o volume do cúbico templo de Apolo em Delfos. Foi nesse perambular que teve contato com a filosofia rosa-cruz, havendo dúvidas se chegou a aderir à mesma, mas que serviu duramente para discriminá-lo posteriormente.

Talvez coubesse uma pergunta: como se sustentava o filósofo nessas viagens sempre acompanhado de criadagem? Seu pai era proprietário de terras. De tempos em tempos, ele voltava a Touraine, sua região natal, para vender partes de seu valioso quinhão. Sabia fazer bons investimentos e assim se mantinha.

Acompanhamos também a sua decisão de se estabelecer na Holanda, aonde parece teria ido em busca de liberdades religiosas que temia não encontrar entre os católicos da França, e termina alvo da intolerância dos protestantes holandeses, sendo condenado por ateísmo e por discutíveis ligações com a Ordem Rosa-Cruz.

Mas é na Holanda, onde viveu por 20 anos, em dezenas de locais, que o cartesianismo passa ser ensinado nas universidades com a publicação do “Discurso sobre o Método”. Descartes, com a filosofia matemática, tenta fazer o casamento da geometria com a álgebra; com isso, ganha adeptos fervorosos e inimigos ferrenhos. As disputas que houve em torno do cartesianismo na Universidade de Utrech envolveram não só o julgamento da filosofia como questionamentos severos ao filósofo, pelo seu racionalismo, que poderia ser visto como um questionamento à teologia e uma flagrante desconsideração à escolástica, que ainda se faz sustentáculo na nascente universidade europeia. Suas continuadas tentativas de evidenciar com a matemática a existência de Deus valem-lhe a acusação, então quase hedionda, de ateu. Pasmem! Isso na liberal Holanda.

É também do período em que perambulou pelos Países Baixos que se tem referência de dois amores, ambos sempre mantidos quase como secretos, talvez por razões de mesma natureza, mesmo que opostas. O primeiro, com Hélène, que por ser uma empregada doméstica não estava no nível de ser esposa de um rico e reputado filósofo. Desta união nasceu Francine (a pequena França, em homenagem à pátria do pai), que foi batizada no protestantismo, religião da mãe. Nos registros batismais de Francine aparece como se Hélène e René fossem casados. Francine morreu em torno dos 5 anos de escarlatina, fazendo o pai mergulhar em profunda tristeza. O romance não prosperou, pois sempre foi escondido e considerado impróprio socialmente. Uma outra douradora paixão — talvez não concretizada pelo fato de o filósofo não ser da nobreza — foi com a Princesa Elizabeth, filha do deposto rei da Baviera. A princesa foi das mais apaixonadas discípulas do cartesianismo; visitas e cartas, sempre censuradas por familiares da moça, sucederam-se por bom tempo, mas não se sabe se houve encontros mais íntimos entre os dois enamorados.

Uma figura que tem destaque no enredo é o matemático, teórico musical, padre, teólogo e filósofo francês Marin Mersenne (1588-1648), um amigo muito próximo de Descartes. Ficou conhecido pelo seu estudo dos chamados números primos de Mersenne. O asteróide 8191 Mersenne foi batizado em sua honra. Mersenne, ainda que sacerdote católico, era também muito ligado a Galileu Galilei (1564-1642), mesmo enquanto a Igreja tinha as maiores objeções ao cientista italiano condenado pelo Santo Ofício. É em Mersenne que Descartes encontra apoio a suas dúvidas teológicas e no seu desejo de permanecer ligado ao catolicismo e, mais especialmente, como fugir da ira da Igreja por estar convencido do copernicanismo, como seu protetor e orientador Mersenne.

É importante destacar o quanto as notícias do julgamento e condenação de Galileu abalaram a Descartes, especialmente na produção de sua obra O mundo, que renuncia publicar, ameaçando queimar um trabalho de quatro anos. Esta obra só se tornará conhecida alguns anos depois da morte do autor, quando então é publicada.

Em meio aos dissabores amealhados na Holanda, Descartes recebe continuados convites para ir à corte da jovem rainha Cristina da Suécia, que se tornara rainha aos 6 anos, é coroada como soberana do país aos 18 anos e transforma Estocolmo na “Atenas do Norte”, tal o número de sábios de diferentes países que reuniu em sua corte. Como estudiosa do cartesianismo, quis ter o seu inspirador como professor particular na corte. Após muitas resistências, Descartes aceita o convite e transfere-se, já com frágil saúde, para a frígida Estocolmo. A rainha quer suas aulas às 5 h da manhã. O clima frio do inverno mais severo que se tinha registro faz Descartes doente. Em 11 de fevereiro de 1650, menos de cinco meses depois de ter chegado à Suécia, o grande filósofo morre. Há suspeita de que tenha sido envenenado por algum membro da corte protestante, invejoso da aproximação de preceptor católico junto à Rainha Cristina, então protestante. Esta, um tempo depois da morte de seu ídolo, renuncia ao trono, torna-se católica e não nega que faz isso influenciada por seu preceptor, cujo falecimento lhe trouxera tristezas e dissabores políticos.

É nesta narrativa, trazida aqui resumidamente, tecida saborosamente, que o autor nos envolve com uma trama muito bem posta. Esta se inicia 26 anos após a morte de Descartes, com chegada a Paris de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), o matemático que divide com Isaac Newton (1642-1727) o mérito de ter criado o cálculo diferencial integral. Leibniz procura por um caderno secreto de Descartes, que teria sido remetido da Suécia, quando seu autor lá morrera aos 54 anos. Em rápidos momentos em que tem contato com o Diário, é permitido a Leibniz copiar algumas páginas. Qual o segredo que continha o caderno de Descartes? O que Leibniz decifrou? A ratificação de Descartes das idéias copernicanas era motivo de ocultação de suas descobertas? Respondo apenas a última das questões: sim. Não podemos esquecer que o século 17 foi inaugurado com a levada de Giordano Bruno (1548-1600) à fogueira e que Galileu, condenado ao silêncio sem poder dar aulas e publicar, morreu um pouco antes de Descartes. Logo, havia razões para Descartes, que não queria perder a comunhão com a Igreja católica, manter segredos e estes parecem estar no famoso caderno secreto. Assim, mais do que sabermos como Descartes propõe uma solução geométrica ao modelo de Nicolau Copérnico (1473-1543), O caderno secreto de Descartes nos traz detalhes saborosos da vida e da obra de um dos maiores gênios da Ciência ocidental. Por tal motivo e também para conhecermos mais acerca de um dos balizadores da Ciência moderna, vale ler o texto aqui resenhado.

·               O Sistema de Posicionamento Global, vulgarmente conhecido por GPS (do acrônimo do inglês Global Positioning System), é um sistema de posicionamento por satélite, por vezes incorretamente designado de sistema de navegação, utilizado para determinação da posição de um receptor na superfície da Terra ou em órbita.

 

 

Um comentário:

  1. Muito instigante a leitura acerca de Descartes e seu legado....Sobre vacinas, política, atual contexto: Quem imaginaria viver dias tão repletos de negacionismo científico, ódio visceral a quem pensa ou age com humanismo, enfim....como isso foi possível, como permitimos? Saudades, Mestre!!!

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