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quarta-feira, 12 de agosto de 2015

12.- A SAUDADE É A MEMÓRIA DO CORAÇÃO


ANO
 10
LIVRARIA VIRTUAL em www.professorchassot.pro.br
EDIÇÃO
 3071
A segunda semana do letivo 2015/2 já chega à metade. Nesta sexta e sábado tenho as primeiras aulas de dois seminários no Mestrado Profissional de Reabilitação e Inclusão. Na noite desta quarta profiro a aula inaugural para alunos dos cursos de Engenharia do Centro Universitário Metodista do IPA. Vou com eles tentar assestar óculos para olharem o mundo.
Mas esta data é muito especial na minha história. Faço uma homenagem muito especial para Maria Clara Volkweiss Chassot (12AGO1909—10SET2001), a minha mãe. Hoje, ela faz 106 anos, mesmo sepultada no bucólico cemitério do Faxinal, em Montenegro, no momento que ruíam as torres do WTC em Nova Iorque, o verbo é no presente (ela faz), pois adiro à tese, que uma pessoa só morre quando a esquecemos. Ela está aqui. A vejo muito comigo na saudade, especialmente neste seu dia natalício, que catalisa tantos evocações de temos já distantes. Adiro ao poeta que diz 'A saudade é a memória do coração’.
Alguém, nascido no último quartel do Século 20, se for evocar, a um tempo, a figura materna, muito provavelmente não o faria no mesmo cenário que eu escolho. Parece natural que nessa blogada, rememore coisas de minha infância, pois são essas que nos fazem mais filhos, isso é mais próximos da figura materna.
Hoje, em para recordações de minha mãe, elejo a cozinha para embalar o passado. Esta, muito provavelmente, é o local de nossas casas que mais modificações sofreu no espaço de uma ou duas gerações. Rubem Alves, o educador-poeta, fala em uma cozinha “lenta, erótica, lugar onde a química está mais próxima da vida e do prazer, cozinha velha, quem sabe com alguns picumãs pendurados no teto, testemunhos de que até mesmo as aranhas se sentem bem ali”. Esta só mais existe em nossos sonhos.
A casa de hoje, se comparada com a casa de nossas bisavós ou até de avós apresenta muitas modificações. Mas, se uma destas nossas ancestrais entrasse em nossas casas hoje, muito provavelmente em nenhuma dependência se acharia mais estranha que em uma de nossas assépticas e inodoras cozinhas hodiernas, na qual o onipresente fogão à lenha foi substituído por discreto forno de micro-ondas.
Visitemos uma cozinha do começo da segunda metade deste século. E vejam o quando meu retroceder temporal é pequeno... Nossas primeiras surpresas serão os odores. O fogão à lenha, com um crepitar que começava ainda de madrugada e se estendia, quase ininterruptamente, até noite adentro, quando, terminados os afazeres, a família se reunia junto ao mesmo, para, na evocação do passado, transmitir aos mais jovens a história dos ancestrais. Quanto a televisão hoje castra a transmissão das histórias orais (e das escritas)!
Só o fogão determinava uma série de fazeres domésticos que hoje inexistem. Uma das últimas tarefas da noite era arrumar o fogo para o dia seguinte. Havia rituais. Duas achas de lenha em cada lado da pequena fornalha, no meio destas maravalhas e sobre estas, lenha fina. Nesta simples descrição há alguns trabalhos. A lenha era adquirida em pedaços, de cerca de um metro, e era serrada, em casa, em achas menores. Cada pedaço originava quatro achas. As maravalhas – resultantes do aplainar a madeira – eram requisitos preciosos. Eu era filho de marceneiro, logo tínhamos produção própria de maravalha. Outros havia que precisavam buscar em alguma marcenaria. Um sucedâneo era o papel, mas é preciso recordar que a assinatura de jornais era bastante incomum, e, assim, jornais ou mesmo papéis velhos sempre eram aproveitados para outros fins e menos usados como combustíveis. O preparo da lenha fina (ou gravetos) era faina que tinha suas exigências. 
Outro trabalho noturno, que acontecia sob o olhar vigilante da mãe, ao final das lides, era o escolher o feijão. Uma tarefa muito exigente, também destinada aos mais jovens, pois se precisava ter um bom olho, para saber descartar aquilo que era impróprio para cozer. Havia sempre muita terra, restos de vegetais, grãos estragados e sementes estranhas. Estas sempre despertavam minha curiosidade. Mas era desestimulado a plantá-las, pois poderiam ser algum inço daninho. A eficiência do escolhedor era medida pela quantidade e variedade de rejeitos que ele apresentava no final da sua faina. O feijão, depois de escolhido, ia para uma bacia, usualmente de barro, onde ficava de molho até a manhã seguinte. Quando o feijão era colocado de molho, vinha mais um teste para verificar a habilidade do catador. Se houvesse materiais sobrenadantes, como grãos chochos ou algum resto foliar, é que a escolha não fora bem feita. Vale referir que o feijão era o prato diário, sendo os almoços de domingo distinguidos pela ausência do feijão, o que trazia a conotação festiva aos mesmos
Outra lide desta hora da noite, conhecida como “depois da janta”, era algo que na minha casa ocorria nas noites de terças e sextas-feiras: o amassar o pão. Esse era um trabalho materno. Era algo que tinha muito ritual. Tínhamos uma grande gamela de madeira, feita pelo meu pai. Nesta eram colocadas as rigorosas medidas de farinha. A estas se adicionavam água, sal, ovos e o ingrediente que para mim era mágico: o fermento. Sua eficiência garantia algo importante: o pão não ficaria embatumado. O crescer da massa era algo bonito. Nas noites frias a gamela precisava ser coberta, para as magias não escaparem. Havia frustrações, nas madrugadas, quando a massa não crescia. Às vezes, acontecia algo imprevisto. A massa crescia demais e transbordava. Talvez, foram as interrogações sobre a magia do fermento que me fizeram professor de Química.
Havia, em datas especiais, preparativos diferenciados na padaria doméstica. O pão sovado era apenas para certos dias. O sovar o pão tinha também ares de encantamento. As roscas eram produzidas nos períodos nos quais a colônia produzia o polvilho. A qualidade das roscas atestava também a competência do produtor do polvilho. As cucas eram somente para algum aniversário ou festas religiosas. Em função da temporada as cucas podiam ser de laranja ou de uva. As passas e os adornos solenizavam os acontecimentos.
Nas manhãs de quartas e sábados bem cedo o forno estava em brasas, e depois assistíamos ao ritual de enfornar as diferentes formas com os pães. Esta operação jamais era delegada pela mãe. Havia necessidade de precisão. O forno de barro era algo presente na maioria das casas, mesmo no perímetro urbano das cidades. Havia ainda a alternativa de se usar o “forninho” do fogão à lenha. O pão feito em padaria comercial era algo tão raro, que a eventualidade parecia uma festa, pois sua marca mais característica era não ter a côdea, usualmente mais dura, dos pães caseiros.
Em todas essas tarefas – e em muitas outra como a criação de galinhas e de um porco, a lavação da casa e da roupa, como a costura de todas as roupas, que ainda quero evocar em outro dia – a figura da mãe era onipresente. 
Evocar e narrar esses fazeres é lembrar com saudades minha mãe. Nossos filhos e netos evocarão mães professoras, médicas, engenheiras, arquitetas, advogadas, pesquisadoras... os de minha geração certamente lembrarão a mãe que nas celebrações laudávamos como ‘a rainha do lar’. E é a esta que homenageio, aqui e agora.

3 comentários:

  1. Recordar é viver, e através dessas doces melancólicas lembranças mantemos vivos nossos antepassados, como também nos damos conta como a vida atual perdeu seu glamour.

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  2. Saudade

    Saudade é adaga que peito apunhala,
    E ferimento que produz chaga imensa,
    Escurece a visão e até emudece a fala
    Faz um crente acreditar na descrença.

    O dia escurece enquanto a noite cala
    Na alma que não suporta tanta ofensa
    Enquanto a existência lá longe estala
    E o universo em seu pesar não pensa.

    Porque coração magoado fica estreito
    Emoldurado numa tristonha escuridão
    Enquanto dor não se vai não tem jeito.

    Se existe saudade é melhor dizer não
    Melhor colocar um cadeado no peito,
    Ou se conformar com nefasta solidão.

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  3. Para não dizer que apenas pensei nas flores, confesso que Dona Maria Clara Volkweiss Chassot iluminou meus pensamentos. Isto por lembrar de um elemento inspirador para as lembranças por seu filho Attico Inácio Chassot, a cozinha. Mais especificamente o feijão, certamente uma de seus pratos prediletos, que cozido em fogão a lenha, creio que com panela sem pressão. Digo sem pressão porque o feijão era cozido em tempo determinado sem perder sabor ou deixar a todos aguardando. Hoje, muito se usa a panela de pressão para diminuir tempo e ter a certeza de ser cozido em tempo hábil. Mas em tudo precisa de pressão? Penso que, ao “natural” o sabor não perderia propriedades. Uso o termo PRESSÃO por quê? Certamente o Mestre já identificou o motivo. Parece que muitos/certos/alguns (leia-se também Instituições) são cozidos (produzem) apenas em panela de pressão. Que coisa, hein?

    Grande abraço, Mestre.

    Desculpe esse aglomerado de palavras, poderia ter ido direto ao ponto. Acontece que tive alguns encontros com um mestre/professor/escritor que me incentivou a aprender a Arte da Escrita. Preciso treinar.

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