Por primeiro, uma vez mais, agradeço convivermos solidariamente, com problemas técnicos que nos impediu circular na edição passada. Posto este agradecimento é importante trazer, aqui e agora, uma informação: a edição desta Semana Santa é uma cópia da edição da Semana Santa de 2002, que vivemos* durante a estada de pós-doutorado na Espanha. (*o vivemos NÃO é um plural majestático. Quando referir NÓS é a Gelsa e eu com quem, então eu era casado).
Meu imaginário está fortemente povoado pela mais emocionante semana santa de minha vida: aquela, na qual fizemos em 2002 um périplo de sete dias por Córdoba, Granada, Cádiz e Sevilha, durante o período pós-doutoramento em Madri. A Andaluzia era então a realização de nossos desejos turísticos. Aproveitamos então a semana de feriados pascoaes.
A Andaluzia se estende ao longo do sul da Espanha, tem, além das cidades
antes mencionadas, muitas outras cidades históricas e vilarejos de casas brancas. Há, ainda, na região reservas naturais (Parque Nacional de Doñana), desertos como os da região de Almeria. Há contrastes que são atrações: a Sierra Nevada, com as mais famosas estações de esqui da Europa e as praias da Costa do Sol no Mediterrâneo e também praias no Atlântico, pois na região está o estreito de Gibraltar, que faz a Europa distante da África apenas 13 km. Vale referir que Gibraltar é um território britânico no sul da Espanha. Mas a Espanha tem dois enclaves em Marrocos – Ceuta e Melia – e também dois territórios insulares – as três ilhas Baleares no Mediterrâneo e as sete ilhas Canárias (a 1050 km a sudoeste de Cadiz e a 150km de Marrocos). Os gibraltarenhos se manifestaram em tempos recentes pela sua não anexação a Espanha; há aspirações de independência.
O histórico Guadalquivir, que recordamos de estudos da assim chamada descoberta da América ou dos romances que têm como cenário os exuberantes sete séculos de domínio muçulmano na Península Ibérica, hoje ainda é via uma fluvial muito importante da Andaluzia. É nesta região que se encontra o maior legado da presença árabe no ocidente.
Na Semana Santa da Andaluzia é atração, não apenas para os espanhóis de
outras regiões, mas para turistas de várias partes do mundo. Já há um tempo, elegêramos que aproveitaríamos o recesso acadêmico. Inicialmente, é preciso dizer que se esta nossa decisão foi com uma antecipação de dois meses, foi muito pequena. Hotéis para Semana Santa andaluz se reservam, no mínimo meio ano antes, para se poder ter alguma opção de escolha. Aliás, os hotéis na região, no período, mesmo reservados com antecedência, são muito mais caros do que no resto do ano, como as próprias tabelas dos hotéis indicam. É algo como procurar um hotel em Salvador, na Bahia, para os dias de carnaval.
Nosso programa, a partir das muitas opções de diferentes cidades e por possibilidades de hotéis e conexões ferroviárias, ficou assim definido: iniciaríamos no Domingo de Ramos por Córdoba, na segunda e na terça-feira iríamos a Granada, na quarta-feira a Cádis, para concluirmos, na quinta e na sexta-feira em Sevilha, retornando à Madrid na noite de sábado.
Foram dias prenhes de envolvimento por uma das mais intensas manifestações de culturais dos espanhóis: a religiosidade. Assim aqui estão alguns excertos de um texto bem mais extenso.
Na madrugada de domingo de ramos, 24 de março de 2002, tomávamos o primeiro metrô, para a movimentadíssima Puerta de Atocha, onde às 7h em um Ave, – trem de Alta Velocidade Espanhol–, partíamos cheios de expectativas. Às 10h30min estávamos em Córdoba, uma cidade com cerca de 200 mil habitantes. O perfume das laranjeiras floridas nas ruas logo nos contagiou. Os preparativos nas ruas para a primeira procissão eram intensos.
Uma primeira novidade: haveria uma procissão que iniciaria às 11h e se prolongaria até às 16h e outras cinco durante a tarde; sendo a primeira, partir da 15h30min e as últimas terminariam à 1h da madrugada, ou seja, mais de 13 horas processionais. E vimos que haveria mais 6 procissões programadas para segunda-feira (Lunes Santo); 5 para terça-feira (Martes Santo); 5 para quarta-feira (Miercoles Santo); 6 para quinta-feira (Jueves Santo); 6 para sexta-feira (Viernes Santo) e uma para o Domingo de Páscoa.
As procissões, que ocorrem durante todos os dias da Semana Santa, em todas as cidades e mesmo em pequenos povoados, são centrais nas comemorações destes dias festivos. Tivemos os primeiros contatos com os “nazarenos” ou “penitentes”, que passariam a integrar nossa realidade durante toda a semana. Estes trajam longas túnicas com cíngulos, revestidas por mantos e longos chapéus cônicos – estes chapéus são muito semelhantes àqueles que usavam os submetidos aos tribunais da Inquisição –, vestem uma cobertura sobre o rosto, com apenas dois buracos na altura dos olhos. Estes hábitos ostentam bordados com as insígnias da irmandade. As vestes são de diferentes cores, predominando o preto e o roxo escuro, mas existem aqueles que são brancos, verdes, azuis ou vermelhos, havendo também possibilidades de combinações de cores entre túnica, manto, chapéu e cíngulo. Os nazarenos podem ser homens, mulheres, jovens e até mesmo crianças. As crianças além de nazarenos são chamadas de hebreus. A grande maioria dos participantes de uma procissão, mesmo as crianças, leva grandes velas.
Aprendemos também que cada uma das diferentes procissões (por exemplo, as 35
desta semana em Córdoba) era responsabilidade de uma cofradía ou irmandade, que é uma entidade civil que se reúne de uma maneira sistemática e permanente, com diferentes fins, por exemplo, assistência social. Estas confrarias têm em um único dia do ano, na semana santa, tem seu momento mais importante, com a saída em procissão. Os membros de cada confraria pagam uma contribuição mensal e ainda arcam com as despesas da própria roupa na procissão anual da Semana Santa.
Entre as muitas descobertas em Córdoba, visitamos emocionados uma sinagoga judaica do século 14. Em toda Espanha só restou esta e aquela que se preserva em Toledo. Admiramos também a homenagem que Córdoba presta ao grande Maimónides (1135-1204), um cordovês que foi médico, talmudista e filósofo judeu, que buscou conciliar a filosofia judaica com a filosofia grega, e que teve então muita influência na filosofia judaica, cristã e árabe. Não posso negar que não tenha me emocionado ao posar ao lado de sua estátua.
A reedição da primeira parte da Semana Santa de março de 2002 se estendeu mais do que imaginava! É preciso recordar que esta descrição que fiz até aqui (e também a segunda parte foi redigida em tempo real) Há quase 22 anos a editoração não tinha as facilidades de agora. Meus atenciosos leitores já podem prever qual o assunto da próxima edição. Há destaques a reapresentar.
Não raro, sou criticado por ser por demais igrejeiro em muitos dos temas aqui assuntados. Justifico quando me refiro que estudo (também) Ciência e Religião. Nesta edição que escrevo acerca do Carnaval (na última terça-feira 04/02 os assuntos vêm a calhar. Eis uma questão: Por que a data do Natal (25 de dezembro) é fixa e a data da Páscoa é móvel (entre 22 de março e 25 de abril)? Torcendo para que esta noite as nuvens nos permitam contemplar o Plenilúnio. Lua cheia; fase da lua que se define pela sua completa iluminação, sendo possível perceber todo o seu contorno circular. O plenilúnio é uma marca de cada Sexta-feira-Santa.
Uma muito
FELIZ PÁSCOA a cada uma e cada um.