quinta-feira, 30 de junho de 2011

30.- Código de Barra & Quipu

Ano 5

Porto Alegre

Edição 1792

Encerramos um mês, um semestre. Minha quinta-feira, assim queiram os deuses que cuidam dos voos neste inverno cinéreo, deve terminar em Niterói. Viajo no começo da tarde ao Rio de Janeiro, atravesso a baia da Guanabara, para às 18h30min fazer a fala de abertura no VII Seminário de Práticas Discentes, Pesquisa e Extensão na Formação do Professor onde ocorre a abertura solene da segunda fase do PIBID - Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - da UFF, envolvendo 12 Licenciaturas diferentes. A atividade ocorre no auditório da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, em Niterói.

Encontrei uma saborosa crônica “Boas e más ideias” escrita por Ruy Castro e publicada na p. A-2 da Folha de S. Paulo 20 de junho. Antes de trazê-la, permito-me um preâmbulo, acerca de algo que sempre me faz interrogante: os códigos de barras.

Código de barras é uma representação gráfica de dados numéricos ou alfanuméricos. A decodificação (leitura) dos dados é realizada por um tipo de scanner - o leitor de código de barras -, que emite um raio vermelho que percorre todas as barras. Onde a barra for escura, a luz é absorvida; onde a barra for clara (espaços), a luz é refletida novamente para o leitor. Os dados capturados nessa leitura óptica são compreendidos pelo computador, que por sua vez converte-os em letras ou números humano-legíveis.

Às 8:01 da manhã de 7 de outubro de 1974, um cliente do supermercado Marsh's em Troy, no estado estadunidense de Ohio, fez a primeira compra de um produto com código de barras. Era um pacote com 10 chicletes Wrigley's Juicy Fruit Gum. Isso deu início a uma nova era na venda a varejo, acelerando as caixas e dando às companhias um método mais eficiente para o controle do estoque. O pacote de chiclete ganhou seu lugar na história e está atualmente em exibição no Smithsonian Institute's National Museum of American History. Aquela compra histórica foi o ponto de partida para quase 30 anos de pesquisa e desenvolvimento.

Nenhum de nós assim acredito sabe decodificar, um código de barra. Permito-me analogia. Vez ou outra, encontro pessoas que, na tentativa de desqualificar determinada civilização, dizem: “Mas, eles eram ágrafos!”. Respondo: “Talvez, não conhecessem a nossa escrita!” Os incas, ditos ágrafos por alguns, usavam os quipos ou quipus, algo comparável com os nossos códigos de barra que não sabemos decifrar.

Quipo (do quíchua cusquenho Quipu ou Khipu, AFI [Alfabeto Fonético

Internacional]: [ˈkʰipu], "nó") era um instrumento utilizado para comunicação, mas também como registro contábil e como registros mnemotécnicos entre os incas. Eram feitos da união de cordões que podiam ser coloridos ou não, e poderiam ter enfeites, como, por exemplo, ossos e penas, onde cada nó que se dava em cada cordão significava uma mensagem distinta. Cada cordão poderia ter um ou mais nós, ou nenhum nó, ou um nó na ponta, um nó na base, enfim, tudo era comunicado e transportado rapidamente ao imperador Inca no centro do império, Cuzco.

Os cordões eram feitos de lã de lhama ou alpaca, ou de algodão. A posição do nó, bem como a sua quantidade, indicavam valores numéricos segundo um sistema decimal. As cores do cordão, por sua vez, indicavam o item que estava sendo contado, sendo que para cada atividade (agricultura, exército, engenharia etc.) existia uma simbologia própria de cores.

Trazida a analogia, agora o artigo referida preambularmente.

“Boas e más ideias” Morreu outro dia, nos EUA, um homem chamado Alan Haberman, 81 anos. Não era famoso, mas tremendamente poderoso, e sua morte saiu em vários jornais. Foi o responsável, em 1974, pela implantação do código de barras, aquele retangulinho zebrado que, passado por um leitor ótico, indica o preço de qualquer coisa, de um cacho de bananas no hortifrúti a um exemplar de "Fenomenologia da Percepção", de Merleau-Ponty, na livraria, e a uma caçamba de entulho na loja de material pesado.
Não apenas isso, mas concentra informação sobre qualquer produto em que venha impresso. É infalível como identificação - não existem dois códigos de barra iguais. Não sei como as crianças já não nascem com um desses impresso no bumbum.
Mas Haberman não foi seu inventor. Apenas convenceu os americanos de que não podiam viver sem ele, e os americanos fizeram o mesmo com o mundo. Não importa - passou à história como o responsável por um dispositivo que, em seu próprio tempo, atingiu bilhões de pessoas, talvez toda a humanidade. Nem Cristo nem os Beatles puderam se gabar disso.
O código de barras, ou seu rascunho, foi bolado em 1948 por dois jovens inventores da Filadélfia, Norman Woodland e Bernard Silver. Já era uma extensão dos pontos e traços do Morse em linhas finas e grossas, só que circulares. Chegaram até a patenteá-lo. Mas ninguém se interessou, nem mesmo a IBM, para quem Woodland trabalhava. Com isso, venderam a ideia para a Philco, que a vendeu para a RCA, que não fez nada com ela, até que a patente expirou em 1969.
Em 1973, outro inventor, George Laurer, da própria IBM, retomou a ideia e adaptou-a para um sistema de barras verticais. Mostrou-a a Haberman, que enxergou o potencial da coisa, e o resto é história. Moral: se você inventar um código de barras, não o venda para ninguém.

E que agora venha julho, mas antes uma curtida quinta-feira como a melhor clausura junina. Lemo-nos, amanhã, desde Niterói, provavelmente.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

29.- A cordilheira andina

Ano 5

Porto Alegre

Edição 1791

Hoje é dia de mais um dos santos juninos: é dia de São Pedro. Mas, desde 2009 o 29 de junho, tem sabor especial: é o natalício do Pedro, meu neto, filho do André e da Tatiana. A celebração de seu 2º aniversário será no próximo sábado.

Mas um texto da imprensa deste fim de semana também me remeteu para 2009, mais precisamente para 11 de outubro. O texto é do médico Dráuzio Varela mais de uma vez presente neste blogue. Antes de trazer o texto, permito-me narrar as evocações que ele catalisou, até para deixar sua beleza, como sobremesa.

Em outubro de 2009 tive o privilégio de fazer em dez dias, seis falas em cinco

universidades da Colômbia (em três cidades: Pasto, Bogotá e Medellín). A viagem foi em companhia da Gelsa, que fez a fala inaugural de evento de Educação Matemática. Num domingo, no recesso de fazeres acadêmicos, fomos de Pasto, capital da província de Nariño, à Basílica Santuário de Nossa Senhora das Lajes no sul da Colômbia. Talvez dos templos mais impressionantes que já visitei. O santuário está situado no cañon do rio Guaítara, no ‘corregimiento’ de Las Lajas. A foto do santuário é da Wikipédia.

Como estávamos quase na fronteira com o Equador, a atravessamos e fomos até Tulcán, capital da província de Carchi que se localiza nos Andes, a 7 km da fronteira Colômbia. Vale observar a latitude: 00º44’ a norte e 77º43’de longitude ocidental, a uma altura de 2.955 msnm (metros sobre o nível do mar). A cidade onde fiz minha única estada no Equador por cerca de três horas tem em cerca de 90 mil habitantes. Como neste país tenho pelo menos uma leitora, talvez uma das mais assíduas dentre aqueles que acessam este blogue no exterior, está evocação de uma já distante viagem, quer ser uma homenagem à Matilde Kalil.

Percorremos na ida e na volta (Pasto/Tulcán/Pasto), duas vezes cerca de 100 km pela Rodovia Pan-americana, onde o singular era nos encantar, e surpreender-nos, com relevo do maciço andino colombiano. Talvez o comentário gélsico de então faça uma melhor síntese: ‘é como se víssemos o movimento do magma de acomodando!’

Agora vejam porque o texto – no qual fiz inserção de duas fotos: uma de Santa Ana de los Cuatro Ríos de Cuenca (a terceira maior cidade do Equador, fundada em 1557) e a outra uma vista dos Andes equatorianos – que segue ressaibo de saudades.

A cordilheira, Dráuzio Varella: Aqui, nas alturas, a visão da cordilheira dos Andes é monumental, assustadora e fascinante.

Cuenca é uma cidade equatoriana que conserva casas com sacadas de madeira dos tempos coloniais; pelas ruas, há mulheres e homens de traços incas, com xales coloridos, chapéus do tipo panamá e roupas que parecem saídas das páginas da “National Geographic”.

A cidade ocupa um pequeno platô cercado de montanhas, a mais de dois mil metros de altitude. Para descer até o litoral, é preciso antes subir a cordilheira por uma estrada com curvas para todos os lados.

A paisagem é assombrosa. A cada volta me defronto com montanhas mais altas do que as anteriores, numa sucessão interminável de volumes monstruosos que tocam as nuvens. Algumas são parcialmente cobertas por vegetações baixas, que preenchem de verde o espaço entre as árvores que conseguem agarrar-se às plataformas e aos sulcos da encosta. Nas áreas mais escarpadas, a rocha aparece nua, ocre, como se feita de tijolos esmigalhados por mãos gigantescas.

Outras, são muralhas exibicionistas que se projetam para o céu com o propósito de encobrir a visão das demais. São como lavas vulcânicas que acabaram de se solidificar sem dar tempo para que a vida fosse semeada em sua superfície. Ao pé delas, a figura humana fica reduzida à mais absoluta insignificância; inclinar a cabeça para trás em busca dos picos nevados dessas torres negras e úmidas faz perder o equilíbrio.

À medida que o carro sobe, aumenta a profundidade dos precipícios. O viajante que consegue chegar à beira deles sem sofrer vertigem, ao olhar morro abaixo percebe que a distância até o rio que corre sinuoso no fundo da garganta angustiada entre as bases dos penhascos é ainda maior do que aquela que vai da estrada até os picos mais elevados.

O ponto culminante da viagem está a 4.200 metros. Nessa altura, a falta de oxigênio acelera a frequência respiratória e agrava a opressão causada pelo desatino de estar pendurado naquele despenhadeiro agorafóbico.

Os Andes não estiveram sempre onde me encontro. Quase todo o norte da América do Sul era uma região de relevo baixo ocupada pela floresta amazônica. Nessa pan-amazônia, os rios da bacia do Amazonas, Orenoco e Magdalena, corriam para desaguar no Pacífico.

Num período que vai de 65 a 33 milhões de anos atrás, ocorreu um rompimento de placas tectônicas às margens do oceano Pacífico, que levantou rochas descomunais e provocou erupções vulcânicas na região que avança para o norte, paralela à costa do Chile.

A partir de 23 milhões de anos atrás, novas fragmentações de placas seguidas de sucessivas colisões entre elas no subsolo da América do Sul e do Caribe intensificaram a emergência de montanhas e vulcões na parte central e no norte de nosso continente, num movimento para o alto que chegou até a Venezuela. Esses abalos descomunais se repetiram por milhões de anos, até que o maciço dos Andes acabou por barrar a passagem do Amazonas, do rio Negro, do Solimões e dos outros rios que se dirigiam ao Pacífico.

Impedidas de seguir adiante, as águas ficaram represadas formando lagos enormes e florestas alagadas, cujo conjunto recebeu o nome de Sistema Pebas.

Prensadas contra a cordilheira, as águas que chegavam sem dar trégua exerceram pressão suficiente para forçar caminho no sentido oposto. Como consequência, há cerca de 10 milhões de anos, o Amazonas e todos os rios que formam sua bacia finalmente conseguiram chegar até o oceano Atlântico, esvaziando os lagos que constituíam o Sistema Pebas. A Amazônia abandonava o estágio lacustre para voltar a ser fluvial.

Esses fenômenos geológicos que se sucederam no decorrer de dezenas de milhões de anos não foram apenas responsáveis por inverter o curso de nossos maiores rios, mas provocaram alterações no clima e na composição do solo que explicam por que a Amazônia é o ecossistema terrestre com a maior biodiversidade do planeta.

Ofegante, no carro a mais de 4 mil metros de altitude, impossível não pensar no terremoto que acabou de destruir parte do Japão. E na hecatombe que o mais leve abalo na crosta terrestre da região andina seria capaz de provocar naquele instante.

Que este dia de São Pedro e também de São Paulo seja agradável para cada uma e cada um na gostosa curtição de um junho que quase se esvai.

terça-feira, 28 de junho de 2011

28.- Do reconhecimento da impotência

Ano 5

Porto Alegre

Edição 1790

Uma terça-feira de extensa agenda neste ritual de despedidas acadêmicas de um semestre que se encerra, quando já se vive o planejar de 2011/2. Ao lado daquelas despedidas que houve ‘ao vivo’ ontem e haverá hoje à noite, adito outra. Estarei, mais uma vez, esta tarde, via Skipe, com alunas e alunos da licenciatura em Química da Universidade Federal de Juiz de Fora. A prof. Dra. Cris Flôr catalisa mais uma edição de “Diálogos de Aprendentes” na disciplina ‘Saberes químicos’.

Um dos continuados chamamentos que tenho trazido em minhas falas é insistir sobre

as marcas da virada do século 19/20 (certeza) e 20/21 (incerteza), dizendo que aqui não nos referimos apenas a uma constatação histórica, mas sobre tudo uma postura epistemológica. Não há como não evocarmos a afirmação: ‘Só tenho uma certeza: as minhas incertezas’ de Ilya Prigogine (Moscou 1917- Bruxelas 2003) Foto da The University of Texas at Austin, onde também foi professor. Esta humildade científica de quem recebeu 53 prêmios, entre os quais o Nobel de Química em 1977, publicou 20 livros e cerca de mil artigos é algo encantador. Aprender a trabalhar com a incerteza é algo continuado e exigente.

Nas leituras de jornais deste fim de semana, no caderno Vida, publicado aos sábados por Zero Hora, na secção ‘Palavra de médico’ José J. Camargo, cirurgião torácico e professor gaúcho, trouxe o texto O duro exercício da impotência que tem a ver com desmantelamento de posturas dogmáticas ainda muito presentes. Com votos de uma boa terça-feira, ofereço a reflexão de meus leitores, desejando que o frio hoje seja um pouco abrandado em relação à ontem, onde as fortes rajadas de ventos conferiu aos 6ºC em Porto Alegre, sensação de temperaturas negativas.

No início dos anos 80, a famosa Clínica Mayo capitaneava um projeto de diagnóstico precoce de câncer de pulmão nos EUA. Com um protocolo de raios-X de tórax e exame de escarro anuais na população fumante, muitos casos de tumores pequenos foram identificados e os pacientes eram recepcionados na clínica com indisfarçável euforia.

Mr. Collins, 73 anos, um viúvo plantador de milho em Minnesota, foi internado com um tumor de dois centímetros no pulmão direito, sem apresentar quaisquer sintomas. Os números favoráveis foram apresentados na véspera da cirurgia, e ele dormiu confiante. Quando o visitei naquela noite, ele me abraçou, agradecido. E retribuí acariciando sua careca, atenuando um pouco a enorme saudade do meu pai, já que as duas cabeças eram muito parecidas.

No dia seguinte, tórax aberto, começaram as surpresas: um nódulo foi palpado na superfície diafragmática do fígado e uma punção mostrou que se tratava de uma metástase. Com desencanto geral, o tórax foi fechado. Fiquei imaginando como contariam a ele a completa mudança de horizontes, e fui surpreendido com a naturalidade e frieza com que meu professor, em pé na lateral do leito, relatou-lhe os achados terríveis. Quando perguntado se ele havia retirado o nódulo do pulmão, respondeu simplesmente que não fazia o menor sentido remover um simples nódulo de quem já tinha uma doença disseminada.

Quando o meu professor anunciou que naquela tarde o pessoal da oncologia viria para verificar o que ainda era possível fazer por ele, Mr. Collins encontrou forças para um “Obrigado, Doutor”.

Com o batalhão de choque batendo em retirada, fiquei para trás e, compungido de dor e pena, fui interceptado pelo velho que, com as bochechas tremendo em desespero, me pediu: “Doutor, como eu lhe contei, meu filho único, que é engenheiro, está envolvido num projeto milionário na Tailândia e se ele tiver que voltar antes de dezembro, por minha causa, eu liquido com a carreira dele. Por favor, doutor, faça alguma coisa, mas não me deixe morrer antes do fim do ano!”

Nos registros da clínica, o caso do Mr. Collins certamente não passou de uma falha do protocolo, porque ele tinha sido tratado como se um indivíduo e o seu câncer fossem entidades diferentes.

Sentado ali, de mãos dadas com o Mr. Collins, como dois seres apátridas e carentes, querendo tanto ajudar e não sabendo como, fui apresentado à essa senhora poderosa e cruel: a impotência.

Tentado a desafiá-la, naquela noite, decidi que tipo de médico eu não queria ser.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

27.- Como encerramento na UAM

Ano 5

Porto Alegre

Edição 1789

Primeiro algo do domingo. Ontem ressuscitei priscas eras. A Gelsa e eu fomos a uma ‘matinê’. Ação que não fazia talvez há meio século. Matinê: espetáculo, representação, sessão de cinema, reunião durante o dia, especialmente, na parte da tarde; vesperal. Na minha adolescência, ir à matiné aos domingos era o máximo.

O excelente filme que assistimos, em uma sessão que se iniciou às 12h50min e que lamentamos seu término, está muito bem apresentado por Martha Medeiros no Donna de ZH dominical de ontem:

Tenho uma tendência a acreditar que tudo era mais intenso antes, tanto o amor quanto a arte e também a rebeldia. A vida era melhor antes ou é melhor hoje? Quem faz parte do time dos nostálgicos não pode perder Meia-Noite em Paris, em que Woody Allen faz não só uma homenagem à mais linda cidade do mundo como também uma reverência aos efervescentes anos 20, quando grandes autores, músicos e pintores foram protagonistas da Era de Ouro do cenário artístico europeu.

Tenho uma tendência a acreditar que tudo era mais intenso antes, tanto o amor, quanto a arte e também a rebeldia. Ao mesmo tempo, sei que houve um antes desse antes, igualmente reverenciado. O personagem Gil (Owen Wilson), homem do século 21, não se conforma com a sociedade vazia e consumista de hoje, da mesma forma que a personagem Adriana (Marion Cotillard), musa dos anos 20, sonha em voltar para a Belle Époque, que teve seu auge em 1890. Por sua vez, os artistas da Belle Époque não se davam conta da revolução que estavam promovendo naquele final do século 19 e afirmavam que prefeririam ter vivido durante a Renascença: o passado sempre parece mais consistente do que o presente. [...]

Se até hoje reverenciamos Hemingway, Fitzgerald, Picasso, Gertrude Stein, Cole Porter, Dalí e Buñuel (entre muitos outros retratados no filme), é porque a genialidade deles ultrapassou o tempo, tornando-os eternos. É comum enaltecer a significância de pessoas que inauguraram um novo mundo através de seu olhar criativo e inquieto, mas esses homens e mulheres fascinantes existem e existirão em todas as épocas.

Ainda, uma auspiciosa notícia do domingo: Brasileiro é eleito diretor da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação. José Graziano da Silva, nascido em Ilinois, em 1949, filho de pais brasileiros. No primeiro mandato de Luís Inácio Lula da Silva, foi Ministro Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome. É o primeiro latino-americano a presidir a FAO.

Junho já vai para o ocaso. Termina o primeiro semestre. Um semestre que para mim é muito significativo: marca o meu 50tenário de professor. Muito já reparti aqui minhas emoções com meus leitores.

Desde que tivemos a semestralização do ano letivo (parece que isto foi consequência da lei 5540/68, que fixou normas de organização e funcionamento do ensino superior) temos ‘encerramentos de turmas’ bianualmente. Pois hoje encerro a turma de Conhecimento, Linguagem e Ação Comunicativa da Licenciatura em Música e amanhã o grupo que tem alunos das licenciaturas em Educação Física e Filosofia.

Na tarde de hoje, há um momento de despedidas muito especial: encerro a minha terceira turma na Universidade do Adulto Maior onde leciono – melhor dizendo: procuro viajar por conhecimentos que pretendem ‘iluminar’ uma disciplina nominada de Processo histórico e antropológico do envelhecimento.

Em março de 2010 iniciei aquela que reputo como minha atividade acadêmica mais importante. Em cada um destes três semestres tive turmas de cerca 50 alunas e alunos (estes sempre menos que 5%) com mais de 65 anos, em uma atividade de extensão do Centro Universitário Metodista do IPA que tenho como a das mais significativas. Já vivo a expectativa de começar o semestre com mais uma turma em 8 de agosto.

Mesmo que houvesse sempre um assunto pautado, dentro de uma proposta que busca ‘acompanhar e entender a dimensão do envelhecimento a partir dos eventos históricos e culturais ao longo dos tempos, principais movimentos sociais artísticos, culturais e compreensão do processo de envelhecimento como decorrente da interação deste contexto’ cada aula abre com um ‘momento da rodinha’ onde se faz uma rápida repassada da semana e os alunos trazem suas leituras de realidade acerca aspectos que lhe pareceram significativos e julgam válidos compartir com o grupo.

Um texto – Idosos: uma geração em conflitode autoria Dercy Furtado, professora de História e ex-deputada estadual, publicado neste junho em Zero Hora, traz um pouco algumas das discussões que estiveram muito presente em cada de nossas aulas este semestre. Antecipo-me em uma crítica ao texto. Não vejo – é claro que minha observação é fugaz em sala de aula apenas – esta dificuldade em aceitar as mudanças expressas ao final pela autora.

Segundo o Censo 2010 do IBGE, temos no Brasil mais de 21 milhões de idosos. Ótimo! A média de vida aumentou muito graças às descobertas da ciência. Tudo estaria bem para nós, os idosos, se as “certezas” com as quais fomos educados também nos acompanhassem. Mas como conviver, aos 83 anos, com tantas mudanças?

O casamento era indissolúvel. “Até que a morte vos separe.” O que dizem as estatísticas hoje? No Brasil, há mais de 135 mil divórcios por ano.

Devíamos ter tantos filhos quantos Deus mandasse. Eu sentia vergonha de dizer que “só” tinha seis. Não podíamos usar anticonceptivos, proibidos pela Igreja Católica, e a virgindade era um valor sagrado. Hoje o que vemos? O Ministério da Saúde distribui milhares de camisinhas durante o Carnaval e tem gente que defende a legalização do aborto.

Minha mãe me ensinou que os sacerdotes eram homens sagrados, prediletos de Deus. No entanto, o que nos informam os meios de comunicação? Aumenta o número de padres pedófilos.

Para nós, as drogas eram totalmente proibidas. Hoje, quem não tem um parente dependente? Basta ligar a televisão para vermos a destruição que as drogas causam nas famílias, mas há passeatas pela descriminalização da maconha! Até o FHC acha que pode.

A homossexualidade era assunto vetado. Hoje, foi aprovado o casamento homoafetivo. Nossos valores foram varridos pelos tsunamis. As chuvas arrancaram nossas raízes. O temporal está lá fora e aqui dentro. Tudo era linear. Quando nascíamos, a estrada a trilhar estava pronta, sem curvas. A moldura na parede, à espera de um lindo retrato de casamento. E, agora, que atitude devemos tomar? Não sei.

Gosto de ver as pessoas felizes com suas escolhas, mas é falso dizer que nós, idosos, não nos chocamos com essas mudanças. Com 83 anos, tenho o direito da dúvida, e é preciso perceber que existe algo novo no mundo: a presença de tantas pessoas com 80 e até 90 anos tentando conviver neste cenário.

Por um lado, é difícil aceitar o que é novo, mas não é bom parar no tempo. Podemos não concordar com os outros, mas devemos amá-los de qualquer maneira. Confesso que nunca amei tantas pessoas com pontos de vista tão diferentes do meu. Buscar o diálogo é sempre possível. E o amor é o sentimento mais poderoso que existe.

Mas repito, não é fácil para um idoso aceitar tudo com naturalidade. Ao menos respeitem nosso conflito. E olha que já somos mais de 21 milhões.

Os melhores votos de uma segunda-feira, que nas geografias onde é editada este blogue promete ser fria, na continuação da neve, que já houve na serra gaúcha, este fim de semana. Aos colegas que, como eu, esta semana estiverem envolvidos em avaliações de discentes, desejo aquilo que mais almejo: sermos justos.

domingo, 26 de junho de 2011

26.- Um domingo com uma atração e um pedido.

Ano 5

Porto Alegre

Edição 1787

Esta edição dominical traz uma excepcional atração e um veemente pedido.

A atração está em um vídeo de um pouco mais de 3 minutos, produzido pela BBC *** http://www.youtube.com/watch_popup?v=2HiUMlOz4UQ&vq=large acerca de nosso Planeta – HUMAN PLANET que é imperdível;

O pedido está na mesma direção:

À presidente Dilma Rousseff :

Estamos fazendo um apelo à senhora, pedindo-lhe que tome medidas imediatas para salvar as preciosas florestas brasileiras vetando as mudanças no Código Florestal. Também insistimos que V.Sa. previna a ocorrência de mais assassinatos de ambientalistas e trabalhadores aumentando a fiscalização contra madeireiros ilegais e reforçando a proteção às pessoas que sofrem risco de ataques violentos ou morte. O mundo precisa que o Brasil seja um líder internacional em questões ambientais. Uma medida firme da parte do governo brasileiro protegerá o planeta para as futuras gerações.

Para aderir basta assinar em www.avaaz.org/po/save_our_forests


A la presidenta Dilma Rousseff :

Le pedimos que tome acciones inmediatas para salvar la preciosa selva amazónica brasileña, ejercitando su veto sobre las reformas de la ley forestal propuestas. También le exigimos que actúe para prevenir nuevos asesinatos de defensores del medio ambiente y trabajadores de la zona, aplicando con firmeza las leyes que prohíben las talas ilegales y fortaleciendo la protección de las personas en peligro. El mundo necesita que Brasil asuma su papel de líder internacional del medio ambiente. Las acciones que usted tome hoy protegerán nuestro planeta para las generaciones futuras.

Para aderir basta assinar em www.avaaz.org/po/save_our_forests

O melhor domingo a cada uma e cada um. Lemo-nos, se for do teu agrado, uma vez mais, quando for segunda-feira. Até então.

sábado, 25 de junho de 2011

25.- Marie Curie: também cenas dolorosas


Ano 5

Porto Alegre

Edição 1787

No último sábado, dia 18, quando da celebração do “Dia do Químico na esteira do 2011 Ano Internacional da Química, a figura central foi Marie Curie. Citei então três biografias daquela que tem o protagonismo na escolha do 2011-AIQ. Um, Madame Curie, a primeira biografia publicada com 103 páginas, escrita pela filha Eva, e naturalmente laudatória, encartada com outros cinco romances, em um volume da ‘Biblioteca de Seleções (de Reader’s Digest)’ numa edição de 1962; uma segunda: Marie Curie de Robert Reid [Barcelona: Salvat, 1984] e uma terceira: Marie Curie, uma vida de autoria de Susan Quinn [São Paulo: Scipione Cultural, 1997]. Hoje cumpro uma promessa feita há uma semana: faço do último livro citado a dica de leitura sabatina.

QUINN Susan, Marie Curie, uma vida. Original: Marie Curie, a life (Simon & Schuster. Estados Unidos, 1995). Tradução Sonia Coitinho. 526 p. 16 X 23 cm. R$ 89,20, São Paulo: Scipione Cultural, 1997. ISBN 85-262-3190-1

Susan Quinn é uma reconhecida escritora livros de não-ficção e artigos. Nascida em 1940. Ela começou sua carreira de escritora como repórter de jornal, em um subúrbio de Cleveland e foi estagiária em uma companhia teatral. Em 1967, ela publicou seu primeiro livro com o nome de Susan Jacobs: On Stage (Alfred A. Knopf) cerca da produção de uma peça da Broadway. Em 1972, tornou-se colaboradora de uma revista semanal alternativa em Cambridge. O livro Marie Curie, a life foi traduzido para oito idiomas.

Susan Quinn conta na apresentação do mesmo que levou sete anos trabalhando no livro e se diz surpresa que Eva Curie Labouisse tivesse publicado, em 1937, uma biografia da mãe, três anos depois da morte; a filha contestou a admiração de Susan, em 1988: tinha medo que alguém fizesse primeiro e não fizesse direito.

Acerca de Susann Quinn, vale conhecer como ela encerra mais de uma página de agradecimentos na biografia hoje comentada: “Finalmente, agradeço a meu marido, Daniel Howard Jacobs, a quem dedico este livro e que acreditou em mim e apoiou com entusiasmo minha vida como escritora por mais de 30 anos. Como Marie Curie, eu tenho ’eu tenho o melhor marido que se pode sonhar ter’”.

Acredito que já no sábado passado tenha trazido informações acerca de Marie Salomea Sklodowska Curie e, também, no Ciência através dos tempos dou merecido destaque àquela que foi das mais destacadas cientista do século 20. Assim, não cabe, aqui e agora, trazer mais detalhadamente aspectos biográficos. Todos aqueles em volvidos com História e Filosofia da Ciência, usualmente convivemos com o espetacular casal Curie e com Marie uma heroína vitoriosa,

Coloquei na portada uma chamada ”Marie Curie: também cenas dolorosas” que traduz um pouco o que livro de Susan Quinn destaca, desejo, porém, que com isso que se trate de um livro tétrico. Ao contrário, mesmo que alguns mitos se esboroem, em narrativas tão triviais como Pierre não se sensibilizando aos pedidos de uma serviçal doméstica que solicita aumento.

Há também uma releitura daquilo que foi o mais significativo na produção científica, reduzindo o peso exagerado atribuído à descoberta do polônio e do rádio (e à associação deste último ao tratamento do câncer e situando-a, sobretudo, entre os pioneiros da física nuclear e da estrutura do átomo.

Mas há três momentos trágicos na história de Marie Curie que desejo destacar aqui, até para justificar a minha chamada a cenas dolorosas: a) a prematura e trágica morte de Pierre; b) a rejeição de Marie ao acesso à Academia Francesa de Ciências; e c) envolvimento amoroso com Paul Langevin. Não estou incluindo outra marca de dor na historia da menina que quando tinha 10 anos perdeu a mãe tuberculosa.

A perda do esposo: Pierre Curie morreu em 19 de Abril de 1906, ao sair de um almoço na Associação de Professores da Faculdade de Ciências. Pierre nesta reunião ainda defendera a importância do ensino de Ciências na educação básica então com mais ênfase no ensino de literatura. Tinha encontrado Joseph Kowalski, físico polonês da Universidade de Freiburg que 12 anos antes lhe apresentara Marie. Ao sair da reunião chovia, e ele dirigia-se a Sorbonne, passado antes em uma editora, que estava fechada por greve. Foi atropelado por uma carroça tracionada por dois cavalos percherões de cerca de 10 metros com mais de 6 mil quilos. Tentava atravessar a Rue Dauphine em Paris durante uma tempestade. O guarda-chuva pode ter toldado a visão ou estava distraído, envolvido com busca de solução a problemas. Tentou se agarrar a um dos cavalos para não cair, mas terminou derrubado. A sua cabeça foi esmagada por uma das rodas da carroça.Marie tornou-se uma mulher incurável e laconicamente solitária. Eis o que ela escreveu, conforme consta na biografia escrita por sua filha Eva:

"Pierre, meu Pierre, você está tranquilo como um pobre ferido que repousa no sono, com a cabeça enfaixada. O seu rosto é suave e sereno. Os seus lábios, que eu costumava chamar de gulosos, estão lívidos e descorados. Que choque terrível deve ter sofrido sua cabeça querida que eu tantas vezes acariciei com as duas mãos. Beijo suas pálpebras, que você costumava fechar para que eu pudesse beijá-las, oferecendo-me a cabeça num gesto tão familiar. Pusemos você no caixão sábado de manhã. Beijamos seu rosto tão frio pela última vez. Espalhamos sobre você pervincas do jardim e um retrato daquela que teve a felicidade de agradar-lhe tanto. (...) Meu Pierre, você não se enganava. Nós fomos feitos para viver um para o outro. Nossa união tinha de ser. Não deixei que o cobrissem com aquele horrível pano negro. Cobri você de flores e fiquei sentada ao seu lado... Tudo está acabado, Pierre dorme o seu último sono debaixo da terra. Isso é o fim de tudo, tudo, tudo"

Muito pouco tempo depois da morte de Pierre surge um problema: quem assumiria a cátedra que fora criada para ele na Sorbonne. O natural seria oferecê-la para esposa, sua principal colaboradora. A ideia era revolucionária. Nenhuma mulher jamais ensinara na Sorbonne, quanto mais ocupar uma cátedra. Apresentou-se uma solução Marie Curie, detentora do Prêmio Nobel de Física, há menos de 2 anos, seria nomeada ‘chargé de cours’ em outras palavras convidava-se Marie para assumir os deveres sem assumir a cátedra.

Em abril de 1907 escreveu em seu diário (referindo-se a Pierre sem mencionar lhe o nome): “Passou-se um ano. Vivo por suas filhas, por seu velho pai. A dor é muda, mais ainda está aí. A carga é pesada sobre meus ombros. Como seria doce dormir e não acordar. Como são jovens as minhas queridas, E como me sinto cansada.”

Rejeição à Academia Francesa de Ciências Quando Marie Curie em 1903 foi laureada

com o Premio Nobel de Física junto com Pierre e Becquerel (este recebeu a metade e os Curie a outra metade) grande parte da imprensa desqualificou a contribuição de Marie a uma simples ‘ajudante’ estrangeira do francês Pierre. Quando em 1911 há uma vaga para Academia Francesa de Ciência e ela feira candidata a imprensa de direita, machista e antei-semítica faz uma campanha ostensiva contra uma mulher e estrangeira na Academia. Os argumentos chegam a ser risíveis. Como uma mulher vai usar o fardão verde e a espada? Se não de bom tom mulheres fazerem visitas a homens, como ela faria para pedir votos. O Institut de France que reúne uma confederação de cinco academis, entre as a de Ciência faz uma tumultuada reunião, na qual não poderia entrar nenhuma mulher sequer como assistente ou jornalista, em 4 de janeiro de 1911 e decide – depois de extensos debates antecedidos na imprensa – por 85 a 60 votos a imutável tradição do instituto: mulher não pode pertencer a Academia.

A Academia de Ciência resolve agir por conta própria e faz uma reunião em 24 de janeiro para decidir a candidatura apresentada de Maria Curie e Edouard Branly, que colaborara com a telefonia sem fio. Como na reunião do Instituto a imprensa se manifestou contra a ajudante estrangeira que ganhara o premio na carona do marido, mesmo que esta já fosse há mais de três anos professora da Sorbonne com continuadas publicações e seu concorrente um cientista aposentada que há muito não publicava. Ele recebe vinte nove votos, Marie Curie vinte e oito e um voto para Marcel Briolouin.

Uma história de amor ‘proíbido’

À desilusão da rejeição à Academia segue-se, ainda em 1911 outro vendaval: Marie Curie envolveu-se amorosamente com o físico Paul Langevin, um professor, como ela, da École de Physique et Chimie.

Paul Langevin (1872-1946) físico francês nascido em Paris. Estudou na École Lavoisier e na École de Fisique et de Chimie Industrielles onde foi supervisionado por Pierre Curie durante suas aulas de laboratório. Estudou na Sorbonne, interrompendo seus estudos durante um ano (1893) por causa do serviço militar obrigatório. Entrou na Ecole Normale Superieure (1894) onde estudou sob orientação de Jean Perrin (1870-1942). Juntou-se a College de France (1902) e tornou-se Professor de Física (1904) e publicou um importante trabalho sobre teoria atômica do paramagnetismo (1905). Poucos anos depois (1909) mudou-se para a Sorbonne, onde ganhou notoriedade por seus trabalhos na estrutura molecular de gases, na análise de emissão secundária de raios-X de metais expostos à radiação e por suas próprias teorias sobre magnetismo. Também é citado como inventor de sonar para detecção de submarinos durante Primeira Guerra Mundial. Depois da primeira guerra mundial dedicou-se a criação de sonares para proteção de navios de linha regular franceses, equipando inicialmente o Ile de France (1928). Por suas opiniões antifascistas foi preso pelos nazistas em Fresnes e depois colocado sob prisão domiciliar em Troyes. Seu genro foi executado e sua filha deportada para Auschwitz, no qual ela sobreviveu, e ele conseguiu escapar para a Suíça (1944). Com a retomada pelos aliados voltou para Paris (1944) onde ficou na direção de sua antiga escola até morrer

Langevin, que vivia um tumultuado casamento com Emma Jeanne Desfosses, com quem se casara em 1898 e com a qual teve quatro filhos, aproximou-se de Marie Curie pouco antes de 1910, após a morte de Pierre Curie. Ao comentar esse episódio, escreveu a biógrafa Susan Quinn:

"O que tornava perigosa a ligação entre Paul Langevin e Marie Curie era o fato de não atender às convenções da Belle Époque. Admitia-se, e até se esperava, que os homens burgueses tivessem uma amante; mas a amante permanecia nos bastidores, permitindo à esposa ficar ao lado do marido, na sociedade educada. Desde que o homem casado fosse discreto e escolhesse esposa e amante que desempenhassem zelosamente seus papéis, ele podia manter um caso, com impunidade. O Código Napoleônico, que endossava o privilégio masculino, era, em tais casos, tolerante com o marido."

Marie Curie era, com efeito, uma amante que discrepava do modelo tolerado, pois estava longe de ser uma mulher a ser escondida, sem recursos, sem aspirações, sem nome, nem personalidade. Configurava-se, desse modo, uma situação em que Paul Langevin deveria renunciar a uma das duas mulheres, sob pena de submeter-se a um vexame, pois, se os casos reservados eram tolerados, os que chegavam ao conhecimento público enxovalhavam todos os envolvidos.

Muito provavelmente por causa dos filhos, Langevin não teve coragem de separar-se de Emma Jeanne, que passou a chantageá-lo com a ameaça de repassar à imprensa cartas que ele escrevera para Marie Curie e, finalmente, entrou com um processo contra ele, por abandono do lar. No dia 4 de novembro de 1911, "Le Journal", um dos diários de maior circulação de Paris publicou matéria de primeira página, com uma foto de Marie Curie e a manchete: UM ROMANCE NUM LABORATÓRIO: O CASO DE MADAME CURIE E O PROFESSOR LANGEVIN;

No dia seguinte, o "Le Petit Journal" falava de Emma Jeanne como uma mãe em prantos, a defender desesperadamente seu lar, mortificada pela opinião pública, desejando perdoar e esquecer, pois estava a processar o marido apenas por causa dos filhos.

Estavam edificadas as bases para uma campanha de difamação e agressões contra Marie Curie, que numa manhã de 1911 levou uma multidão enfurecida para diante de sua residência, a gritar: Abaixo a estrangeira, ladra de marido!

Foi a festa da imprensa sensacionalista, na qual não faltaram insinuações, mentiras, chacotas e até pressões de figuras importantes para que Marie deixasse o país. As discussões do episódio provocaram nada menos que cinco duelos na França, um dos quais envolvendo o próprio Langevin, contra o jornalista Gustave Téry, e no qual nenhum dos dois contendores quis disparar contra o outro.

Foi nesse contexto que, em 7 de novembro de 1911, a Reuters noticiou que Marie acabava de conquistar o Prêmio Nobel de Química de 1911, adicionando-se, este, ao Prêmio Nobel de Física de 1903. Ocorreu então inusitado: um silêncio quase total da imprensa francesa, que seis dias depois iria celebrar como gloriosa a conquista do Prêmio Nobel de Literatura por parte do belga Maurice Maeterlinck, estabelecido na França desde 1896. Um membro da Academia de Ciências, Svante Arrhenius, escreveu-lhe uma carta com a recomendação de que desistisse de aceitar o prêmio. Maria Curie, impassível respondeu que o premio lhe fora dado por seu trabalho científico e nenhuma relação guardava com sua vida particular.

Marie Curie mereceu, porém, muitas manifestações de apoio por parte de cientistas, como Albert Einstein e Ernest Rutherford, e recebeu seu prêmio em Estocolmo, em 11 de dezembro de 1911.

Emma Jeanne e Paul Langevin reconciliaram-se em 1914, e o escândalo terminou. Mais tarde, Langevin teve outra amante, com aquiescência da mulher, mas escolhida segundo o modelo tradicional: uma obscura secretária, sem condições de ultrapassar sua condição de amante.

Esta aí uma boa dica de leitura. O livro de Susan Quinn que em mais de meio milhar traz dados que tentei, com ajuda de diferentes produções em especial o http://ohomemhorizontal.blogspot.com trazer aqui. Um bom sábado e um convite para domingueira especial.