terça-feira, 28 de junho de 2011

28.- Do reconhecimento da impotência

Ano 5

Porto Alegre

Edição 1790

Uma terça-feira de extensa agenda neste ritual de despedidas acadêmicas de um semestre que se encerra, quando já se vive o planejar de 2011/2. Ao lado daquelas despedidas que houve ‘ao vivo’ ontem e haverá hoje à noite, adito outra. Estarei, mais uma vez, esta tarde, via Skipe, com alunas e alunos da licenciatura em Química da Universidade Federal de Juiz de Fora. A prof. Dra. Cris Flôr catalisa mais uma edição de “Diálogos de Aprendentes” na disciplina ‘Saberes químicos’.

Um dos continuados chamamentos que tenho trazido em minhas falas é insistir sobre

as marcas da virada do século 19/20 (certeza) e 20/21 (incerteza), dizendo que aqui não nos referimos apenas a uma constatação histórica, mas sobre tudo uma postura epistemológica. Não há como não evocarmos a afirmação: ‘Só tenho uma certeza: as minhas incertezas’ de Ilya Prigogine (Moscou 1917- Bruxelas 2003) Foto da The University of Texas at Austin, onde também foi professor. Esta humildade científica de quem recebeu 53 prêmios, entre os quais o Nobel de Química em 1977, publicou 20 livros e cerca de mil artigos é algo encantador. Aprender a trabalhar com a incerteza é algo continuado e exigente.

Nas leituras de jornais deste fim de semana, no caderno Vida, publicado aos sábados por Zero Hora, na secção ‘Palavra de médico’ José J. Camargo, cirurgião torácico e professor gaúcho, trouxe o texto O duro exercício da impotência que tem a ver com desmantelamento de posturas dogmáticas ainda muito presentes. Com votos de uma boa terça-feira, ofereço a reflexão de meus leitores, desejando que o frio hoje seja um pouco abrandado em relação à ontem, onde as fortes rajadas de ventos conferiu aos 6ºC em Porto Alegre, sensação de temperaturas negativas.

No início dos anos 80, a famosa Clínica Mayo capitaneava um projeto de diagnóstico precoce de câncer de pulmão nos EUA. Com um protocolo de raios-X de tórax e exame de escarro anuais na população fumante, muitos casos de tumores pequenos foram identificados e os pacientes eram recepcionados na clínica com indisfarçável euforia.

Mr. Collins, 73 anos, um viúvo plantador de milho em Minnesota, foi internado com um tumor de dois centímetros no pulmão direito, sem apresentar quaisquer sintomas. Os números favoráveis foram apresentados na véspera da cirurgia, e ele dormiu confiante. Quando o visitei naquela noite, ele me abraçou, agradecido. E retribuí acariciando sua careca, atenuando um pouco a enorme saudade do meu pai, já que as duas cabeças eram muito parecidas.

No dia seguinte, tórax aberto, começaram as surpresas: um nódulo foi palpado na superfície diafragmática do fígado e uma punção mostrou que se tratava de uma metástase. Com desencanto geral, o tórax foi fechado. Fiquei imaginando como contariam a ele a completa mudança de horizontes, e fui surpreendido com a naturalidade e frieza com que meu professor, em pé na lateral do leito, relatou-lhe os achados terríveis. Quando perguntado se ele havia retirado o nódulo do pulmão, respondeu simplesmente que não fazia o menor sentido remover um simples nódulo de quem já tinha uma doença disseminada.

Quando o meu professor anunciou que naquela tarde o pessoal da oncologia viria para verificar o que ainda era possível fazer por ele, Mr. Collins encontrou forças para um “Obrigado, Doutor”.

Com o batalhão de choque batendo em retirada, fiquei para trás e, compungido de dor e pena, fui interceptado pelo velho que, com as bochechas tremendo em desespero, me pediu: “Doutor, como eu lhe contei, meu filho único, que é engenheiro, está envolvido num projeto milionário na Tailândia e se ele tiver que voltar antes de dezembro, por minha causa, eu liquido com a carreira dele. Por favor, doutor, faça alguma coisa, mas não me deixe morrer antes do fim do ano!”

Nos registros da clínica, o caso do Mr. Collins certamente não passou de uma falha do protocolo, porque ele tinha sido tratado como se um indivíduo e o seu câncer fossem entidades diferentes.

Sentado ali, de mãos dadas com o Mr. Collins, como dois seres apátridas e carentes, querendo tanto ajudar e não sabendo como, fui apresentado à essa senhora poderosa e cruel: a impotência.

Tentado a desafiá-la, naquela noite, decidi que tipo de médico eu não queria ser.

6 comentários:

  1. Bom dia, querido mestre Chassot!
    Ete texto que você trouxe hoje é realmente comovente, e renova minha esperança de que possa haver mudanças significativas na forma com que nós, seres humanos, lidamos com nossos semelhantes. E também continuo a acreditar que, com exemplos ruins, também pode-se aprender a ser diferente! Não consigo deiar de comparar ese relato "aquele outro, da semana passada, que tanta controvérsia e discussão causou - e isso foi muito bom! O Dr José J. Camargo, que você nos apresenta hoje, não dissocia o indivíduo de seu corpo físico, e isso é muito importante! Um abraço: Cris Flôr

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  2. Muito querida Cris,
    realmente o texto oferecido para aperitivar o nosso “Diálogos de Aprendentes” desta tarde é denso e nos faz refletir acerca de nossas posturas prepotentes,
    Com expectativa
    attico chassot

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  3. Caro Chassot,

    hoje está mudando um pouco, mas a prática de considerar órgãos e membros do ser humano como se fossem peças, sempre foi muito comum. Graças a Deus e a uma verdadeira cruzada de humanização da medicina, essa postura de prepotência está se alterando. Destaco especialmente a atuação da Profa. Dra. Maria Júlia Paes da Silva, docente das Escolas de Enfermagem da USP que proferiu importante conferência sobre a "Humanização dos Serviços Hospitalares" no II Congresso Catarinense de Administração Hospitalar, Planos de Saúde, Diretores Clínicos e Enfermagem", realizado em outubro de 2001, em Florianópolis, do qual alguns alunos meus, na época, participaram. Infelizmente acabei me desconectando dessa cruzada, por motivos profissionais, mas sei que essa ação humanizadora no meio médico continua muito atuante.

    Um abraço e boas despedidas!

    Garin

    http://norberto-garin.blogspot.com

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  4. Meu caro Garin,
    que bom que a prepotência perde vez. Talvez os profissionais da saúde, especialmente os médicos que têm tudo para se reconhecer sua impotência sejam os mais prepotentes. Este texto do Professor Camargo deveria estar em uma antologia para médicos. Não conheço o trabalho da Prof. Maria Júlia.
    Com agradecimentos e um bom período avaliativo
    attico chassot

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  5. Caro Chassot,
    Na verdade a medicina está encontrando o caminho a custa de muita dor e decepção. A visão holística do paciente é o caminho. Abraços fraternos, JAIR.

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  6. Meu caro Jair,
    obrigado pelo oportuno comentário. Mesmo não médicos lutamos por uma medicina mais humana e menos dogmática

    attico chassot

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