quarta-feira, 2 de novembro de 2016

02.- Como tornar-se escritor

ANO
 11
Breve, um novo livro
Das disciplinas à indisciplina
EDIÇÃO
 3221


Inauguro as blogadas de novembro embalado por sumarento registro. Na segunda-feira, dia 24 de outubro, o Fronteiras do Pensamento teve mais uma edição áurea. No Auditório Araújo Vianna — que sempre oferta evocações de eventos que até imaginara volatilizados — mais de três mil pessoas ouviram encantados o escritor britânico Ian McEwan. O evento se constituiu em edição especial da série de 2016, em celebração aos 10 anos de projeto que faz Porto Alegre distinguida.
Uma apreciada atração da fala foi quando Mc Ewan apresentou a literatura como uma forma de investigação da natureza humana. O papel do autor, a sua experiência com o realismo, o trabalho em alguns de seus livros.
McEwan, nascido em 1948, falou também sobre a morte do autor, tema que se adequa a data de hoje, quando evocamos nossos queridos que já se foram. "Vivamos a vida com paixão, apesar de nossos mortos. Eu, ou melhor, os homens da minha idade, contabilizamos nossos defuntos todos os dias. Após os cinquenta anos, a vida é parecida com um campo de batalha, onde os companheiros tombam e um pedaço de nossa energia e de nossa história se vai com eles”(DAUNT, Ricardo. Migração dos cisnes). Por tal, esta blogada é dedicada ao Prof. Aron Taitelbaun, que nos deixou nesta noite de Finados.
McEwan disse no Fronteiras: “O que fica, realmente, após o funeral, o obituário e, talvez um ano depois, o memorial construído pelos amigos mais próximos? Segundo ele, permanecem a reputação e outras coisas que não se podem prever. “O sucesso e o declínio do autor, por exemplo. Durante muitos anos, o autor passa ao obscurantismo, e talvez depois volte a ser mais famoso ou repentinamente famoso após sua morte." Para alguns escritores, o que restam são 60 centímetros na prateleira de uma estante. Ou dois metros, no caso de outros. Mas este espaço físico representa uma história que um autor ou autora jamais poderiam ter planejado. “É como se fosse uma metaficção: ficção a respeito da ficção".
A trajetória de McEwan na literatura começou aos 20 anos com a produção de contos, um gênero que, de acordo com ele, permite ao escritor fracassar e não levar muito tempo para constatar isso, passando por vários níveis de experimentação. Sua estreia foi com o volume de contos Primeiro amor, últimos ritos. “As minhas histórias estavam repletas de coisas escuras, sinistras, com narradores escuros e sinistros. Narradores que pareciam repletos de paixões até ridículas. Eu esperava que essas histórias fossem vistas como histórias de humor negro. Na verdade, eu esperava que elas fossem descritas como sendo histórias de humor negro. Mas, depois de um tempo, eu percebi que fui cada vez mais me colocando contra a parede. E comecei a expandir a minha escrita e entrei na área do realismo. A luta de tentar representar um mundo numa página, que é um mundo do qual todos compartilhamos e reconhecemos."
A representação deste mundo envolve pesquisa. E foi exatamente a pesquisa que se tornou uma das maiores paixões do escritor. “Com cada romance é como se eu estivesse começando uma nova jornada. Com apenas um mapa mínimo para guiar o meu caminho. A investigação da natureza humana era a alma deste projeto, de tentar gerar a sensação de um mundo compartilhado." Para escrever o romance Sábado, McEwan acompanhou, durante dois anos, o neurocirurgião Neil Kitchen, participando da rotina de trabalho a partir das 6 da manhã, assistindo a cirurgias e procedimentos e utilizando as mesmas roupas. Sem revelar sua identidade de escritor, em uma ocasião, foi abordado no bloco cirúrgico por duas estudantes de medicina que gostariam de assistir ao procedimento e o confundiram com o médico. “Eu disse a elas: 'Aproximem-se aqui. Gostaria de lhes mostrar estas imagens de tomografia'. Eu já era uma fraude absoluta. Mas pensei: se eu não conseguir me safar com isso, não vou conseguir escrever este livro. Então, com a minha melhor voz de autoridade no assunto, eu disse: 'Nós vamos agora bloquear este aneurisma na artéria mediocerebral, e vamos utilizar esta via que foi criada por um cirurgião canadense e vamos fazer o bloqueio do vaso'. Eu falei durante cinco minutos. E, ao final da minha fala, elas me agradeceram. 'Muito obrigada, doutor. Foi muito iluminador'. E foram embora. Eu sempre fiquei me perguntando que nota elas tiraram na prova."
McEwan comentou o quanto a ficção busca o realismo. E isto é desejado pelos leitores. Citou exemplos da vigilância dos leitores. Assim, mesmo quando se tenta descrever um mundo governado por instituições, o escritor acaba fazendo coisas erradas. Exemplificando, contou o caso de uma correspondência recebida a respeito de um livro publicado há 28 anos, intitulado Deus-Dará. Em determinada cena, os personagens estão em Veneza, em julho, e olham para o céu claro, visualizando a constelação de Órion, a mais linda do mundo para McEwan. A leitora, no entanto, não perdoou a falha. “Ela escreveu que era impossível ver a constelação de Órion em julho no Hemisfério Norte. 'Se você faz questão de ver Órion em julho é melhor ir à Nova Zelândia' – ou Porto Alegre, ela poderia ter dito. E acrescentou: 'Já que o seu romance é tão sinistro, por que não a constelação de escorpião? Eu tenho 87 anos e moro numa pequena ilha no Canal da Mancha. Eu passo grande parte do meu tempo, nas noites de verão, deitada numa rede olhando as estrelas. Boa sorte com os seus livros'. Eu não tive escolha. Na edição seguinte do livro, mudei a constelação."
É esta busca pelo realismo e a sua tradição que o escritor valorizou em seu mais recente romance, Enclausurado. O livro parte de uma impossibilidade física e biológica, com um feto palestrando e opinando sobre o mundo e a sua ansiedade, enquanto presencia os planos da mãe e do amante dela de assassinarem o seu pai. “Eu vejo este livro como um romance que segue a tradição do realismo. Porque, uma vez que esta primeira premissa é aceita, todo o resto que eu faço, neste romance, está no universo de um mundo compartilhado que eu acho plausível." McEwan finalizou a sua conferência lendo dois trechos de Enclausurado.
Apossei-me na produção desta edição, uma vez mais, de excertos de um bem elaborado resumo da conferência produzido por Luciana Thomé que pode ser acessado na integra em www.fronteiras.com/resumos

4 comentários:

  1. Então, existe mesmo ficção ou apenas parte da realidade ficcionada?
    Saudações frederiquenses.

    ResponderExcluir
  2. Oi, o Aron Taitelbaum a que a dedicatória se refere seria o professor de Matemática? Obrigada!

    ResponderExcluir
  3. Sim, Karina!
    é ao professor Aron que foi professor (e diretor) do Instituto de Matemática da UFRGS, que dediquei a blogada a que te referes.

    ResponderExcluir
  4. Ele foi meu professor na faculdade e sempre tive muito carinho por ele. Fico triste em saber que ele já não está mais aqui. Muito obrigada por me responder! Abraços

    ResponderExcluir