É bíblica a referência acerca do ser profeta na própria casa.
Marcos e Mateus narram, de maneira muito aproximada, a surpresa que os
conterrâneos de Jesus manifestavam com a sapiência do nazareno.
Não é este o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, José,
Judas e Simão? Não estão aqui conosco as suas irmãs?" E ficavam escandalizados
por causa dele. Marcos 6:3
Não é este o filho do carpinteiro? O nome de sua mãe não é
Maria, e não são seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? Mateus
13:55
Em outubro de 2014, Marina Silva, foi derrotada eleitoralmente,
no Acre, seu estado natal, quando concorria à Presidência da República, pelo
PV. Ela justificou: “Ninguém é profeta em sua própria
casa!”
Nestes últimos doze meses pandêmicos fiz mais de uma centena
de lives, palestras e gravei podcasts. Ontem à noite, na minha agenda constava:
Palestra de encerramento do I Seminário de Pesquisa do PPGECM UNIFESSPA Tendências em pesquisas para o ensino de Ciências
e Matemática na Amazônia paraense. Os organizadores franquearam-me o tema. Desafiei-me:
“Alfabetização Científica: um mentefato
cultural para garantir a sobrevivência em tempos pandêmicos”
Por que este destaque a feito de aparência irrelevante? Fazeres
como o agendado são rotinas. Eu me auto-encorajava. Sou filho de Maria e de um carpinteiro,
que teria que falar para meus pares. Como a líder acreana tinha que profetizar
em minha casa.
Já destaquei em meus escritos quanto me marcou há uns anos,
quando um colega do IFRO assinalava que no contexto de nosso ser professor hoje,
nossa missão é profetizar.
Mais uma vez falaria para meus colegas. Sou professor
visitante Sênior da Unifesspa, em Marabá desde 01/dezembro/2018. Em 2019 fui 11
vezes à Marabá. Em 2020, duas. Em 2021, nenhuma. Tenho dito que a pandemia nos
deu o dom da ubiquidade. Antes isso era privilégio dos deuses. Estou — ao mesmo
tempo — nas casas de meus 8 mestrandos, uma doutoranda e um pós doutorando. Dou
aulas em cursos de pós-graduação na UFPA e na Unifesspa e no IFES e também em
uma turma de graduação na Unifesspa.
Mas desde domingo a atividade da noite de quinta-feira me
envolvia. À última das madrugadas fez-me insone. No meu lapkopf amealhava textos;
deletava produções que imaginara portentos. À meia-tarde decidi que não mais
mexeria mais no texto. Este estava a risco de se esboroar.
Falei quase duas horas, com a mediação competente de minha
colega Ana Clédina R. Gomes. Não descurei a Laudato
Si’. Dividi a exposição dois momentos. Da fala “Assestando óculos para
contemplar o mundo natural” (a mais solicitada) para servir-me de algo seguro,
trouxe comentários de dois dos seis óculos: Religião e Ciência.
A segunda parte iniciei me remontando a março de 2020, quando houve um fenômeno nacional. Eis que
de repente alunos, pais, avós, irmãos mais velhos, empregadas domésticas e
professores foram todos declarados como detentores de expertise em Ensino à
Distância. Não faltou quem se rejubilasse e dissesse: agora a Educação
brasileira migrou do medievo ao Século 21. Temos Educação à distância. A sigla
EaD é o ícone messiânico quase salvífico.
As improvisações abundaram. Foi esquecido que cerca de um
terço dos lares brasileiros não tem acesso à internet. Há aqueles que têm
internet mas não tem um notebook ou um tablete para as ditas aulas remotas. Um
único smartphone é, não raro, o único hardware familiar, usado de maneira
comunitária. A cozinha e sala de estar (para atender recomendação de ficar em
casa), que se fundem com o dormitório passa ser também o ‘gabinete’ para
realizar as lições remotas de dois ou três alunos. Esse é o cenário onde se diz
fazer Educação remota que aumenta a abissal diferença entre pobres e ricos.
Se uma das dimensões da Ciência é ser uma linguagem talvez,
pudéssemos afirmar que a Alfabetização Científica — na acepção de ler o mundo
por meio da linguagem da Ciência — se faz numa assemblage de diferentes
alfabetizações.
Talvez, aqui se possa falar em múltiplas alfabetizações
além do usual letramento no idioma de berço: alfabetização científica,
alfabetização matemática, alfabetização geográfica, alfabetização digital,
alfabetização em inteligência artificial, alfabetização musical, alfabetização
astronômica, alfabetização geológica ou ainda, alfabetização em idioma(s)
estrangeiro(s) etc.
Antes de se
analisar qual destas múltiplas alfabetizações é pré-requisito para as demais,
se caracterizou três estratos populacionais: os nativos digitais, os migrantes
digitais e os alienígenas digitais. Vimos, por exemplo, quanto migrações
foram/são/serão muito díspares. Há aqueles que são (quase) do paleolítico, pois
foram alfabetizados em uma pedra de ardósia escrevendo nela com uma estilete da
mesma pedra. Por outro lado os alienígenas digitais são incapazes de usar os
mais comuns meios de transportes urbanos. Não conseguem operar um aplicativo
(um dos ícones do mundo digital).
Assim, como ninguém discorda que se faça campanhas de
alfabetização na língua materna parece ser uma questão moral, acolher os
alienígenas digitais e fazê-los migrante digitais.
Quando alguém
imigra para um país que tem um Idioma diferente, o que busca aprender por
primeiro? Pois, em uma significativa maioria, fomos emigrados para um mundo que
fala um novo idioma: há que aprender essa nova linguagem.
No amealhar saberes em múltiplas alfabetizações estamos
adensando nossa alfabetização científica, pré-requisitada por uma alfabetização
digital.
Como antidoto ao pensamento mágico tão presente na realidade brasileira nestes tempos
pandêmicos, marcados por doses de acientificismos, com a negação da Ciência, a
Alfabetização Científica é talvez uma excelente solução...
... por tal ensejarmos a Alfabetização Científica como
um direito humano para formarmos cidadãs e cidadãos envolvidos na construção de
um pensamento crítico.