quinta-feira, 10 de maio de 2012

10.- ¿O QUE É CIÊNCIA, AFINAL?



Ano 6*** WWW.PROFESSORCHASSOT.PRO.BR ***Edição 2108
Esta edição poderia ter um nome poético: assemblage. Aprendi essa palavra em rótulos de vinhos. No Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha, um enólogo explicou-me que assemblage consiste de vinho formado pela reunião controlada de dois ou mais varietais em proporções estudadas. Assim, por exemplo, cabernet sauvignon + merlot poderiam formar uma assemblage (o substantivo é feminino, numa evocação à assembleia), ou tanat + pinot noir, outra.
Observaram como esses varietais (palavra não dicionarizada, usada para indicar tipos de cepas) têm nomes sonoros? Aqui a palavra cepa (que pode ser usado para designar cebola, a partir de seu nome genérico) está sendo usada em duas acepções no ramo das videiras: uma como caule ou tronco da videira, de onde nascem os sarmentos; outra como estirpe, linhagem ou tronco de família; cepo.
O Houaiss me diz que assemblage significa composição artística realizada com retalhos de papel ou tecido, objetos descartados, pedaços de madeira, pedras etc e diz que a etimologia é da palavra francesa homônima assemblage (datada de 1493) 'conjunto constituído de elementos ajustados uns aos outros'. Já que estou brincando com palavras, transcorreram duas que são dissonantes: sarmento e cepo. Sarmento, mesmo que em Porto Alegre tenha na família Sarmento Leite uma das mais importantes, sarmento ser ‘vara que a videira dá a cada ano’ nunca me soa bem, talvez por que evoque mais um ‘cão sarnento’. A outra é cepo, que para mim sempre foi ‘pedaço de tronco cortado transversalmente’ e não um não ramo de videira.
Assim reúno aqui algumas reflexões trazidas de outros textos que escrevi, que em decorrência das muitas liças aqui havidas nos últimos dias, me parecem importantes. Faço com elas uma assemblage. Não tenho a pretensão de fazer uma suma e muito menos o encerramento das momentosas discussões.
Nos nossos diálogos aqui transcorridos há uma pergunta quase óbvia, mas ao mesmo tempo crucial: O que é Ciência, afinal? Este interrogante é título de um livro mais de 300 páginas de Alan F. Chalmers – no original What Is This Thing Called Science? ou O que é essa coisa chamada Ciência?[i] que traz extensas tentativas de responder à questão proposta.
Releio, agora, o que escrevi no segundo capítulo de um dos meus livros[ii] sem a pretensão dar uma resposta a esta pergunta. Mesmo que no livro me proponha ampliar a leitura feita pela Ciência, ou até usar da Ciência como um instrumental para ler o mundo, e discutir as necessidades de alfabetização científica, trago aqui uma descrição de Ciência que talvez pareça reducionista. Asseguro que a mesma serve para os propósitos das discussões que temos entabulado. Lateralmente evoco o significado primeiro dessa ação verbal — entabular —: conversar em roda de uma mesa. Aqui, o mundo internético amplia a extensão de nossa mesa. Talvez pudesse antes acrescentar que a extensão de uma definição teórica ou mesmo a precisão matemática de um resultado dependem dos objetivos com que os usamos.
A Ciência pode ser considerada uma linguagem construída pelos homens e pelas mulheres para explicar o nosso mundo natural. Permito-me sublinhar agora dois pontos nesta definição de Ciência:
a) é um construto humano, isso é, foi construída pelos homens e pelas mulheres. Como consequência desta natureza humana, a Ciência não tem a verdade, mas aceita algumas verdades transitórias, provisórias em um cenário parcial onde os humanos não são o centro da natureza, mas elementos da mesma. O entendimento destas verdades – e, portanto, a não crença nas mesmas –, tem uma exigência: a razão.
Aqui temos um primeiro alerta: diferentemente das religiões que admitem ter verdades reveladas, a Ciência não tem a Verdade e sim verdades provisórias ou interpretações temporárias ou desafios a resolver ou achados reveladores.
Vivemos tempos que temos cada vez mais emergentes duas posturas diametralmente opostas: o fundamentalismo religioso e a ateologia. Aquela perturba nossas salas de aulas dificultando ou embaralhando o ensino de Ciências. Esta – ainda não dicionarizada – parece ser algo muito novo fruto das liberdades que vivemos neste Século 21. Ouso definir ateologia: possibilidade de ler o mundo assumindo a posição filosófica de que não existem deus ou deuses, ou em sentido lato, a ausência de crença na existência de divindades. Também, sobre isso acredito que vamos voltar a conversar.
b) Trago um segundo sublinhamento: afirmar que a Ciência é uma construção dos homens e das mulheres acoberta uma questão de gênero significativa. Escrevi um livro[iii] no qual procuro mostrar que a Ciência é uma construção masculina, como também o são a construção das Artes, da Filosofia, da Política, da Religião, do Esporte. Cada uma destas são construções predominantemente masculinas, brancas e eurocêntricas. Aliás, as religiões também são construtos humanos (mesmo que aceitos por alguns como divinos) masculinos e têm responsabilidades muito grandes nesse enviezamento machista da Sociedade.
Assim, considerar a Ciência como “uma linguagem para facilitar nossa leitura do mundo natural” e sabê-la como descrição do mundo natural ajuda a entendermos a nós mesmos e o ambiente que nos cerca. Mas atenção: a Ciência é apenas um dos diversos óculos que podemos usar para ler o mundo. E mais: não se pode afiançar que seja o melhor. Provavelmente para pessoas que se envolvem com a Academia, a Ciência possa parecer o melhor óculo.
Mas, meus leitores, já me alonguei. Penso que por hoje deixo estas reflexões. Essa é uma charla que deve continuar, para, talvez, responder: ao referir ser a Ciência um dos mentefatos culturais de lermos o mundo, surge a interrogação: quais são outras possibilidades?
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i CHALMERS, A. F. O que é Ciência, afinal? São Paulo: Editora Brasiliense, 1993
ii CHASSOT, Attico. Sete escritos sobre Educação e Ciências. São Paulo: Cortez, 2008, 285p. ISBN 978-85-249-1377-8
iii CHASSOT, Attico. A Ciência é masculina? São Leopoldo: Editora UNISINOS. (2009, 4ª. ed.) 2003

8 comentários:

  1. Caro Attico,
    graças a Deus dispomos da possibilidade de usarmos os óculos da Ciência para enxergarmos o mundo de um ângulo tão privilegiado e seguro,que a ciência avance e melhore dia á dia, em nome de Jesus.
    Essa é uma forma de ver o mundo com as lentes da fé.
    Também posso citar o óculos do conhecimento empírico, porém este possui na maioria das vezes muitas falhas e maus hábitos incutidos em sua cultura.
    Quero adquirir todas as lentes que minha curiosidade permitir,para usar cada uma em seu devido momento de minha vida.
    Hendney Cardoso Fernandes
    Ciências da Natureza primeiro semestre
    UniPampa Uruguaiana RS

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  2. Caro Chassot,

    Na verdade, a ferramenta ciências, nos impõe um equilíbrio delicado entre uma abertura sem obstáculos a ideias novas, por mais heréticas que pareçam, e o exame criterioso de tudo, de acordo com o conhecimento já estabelecido. Uma das razões para o sucesso da ciência é que ela tem um mecanismo de correção de erros embutido em seu próprio âmago. Ela se questiona o tempo todo, não há verdade absoluta a não ser na matemática pura. Todas as leis estabelecidas por ela estão sujeitas à contestação sempre que surjam fatos novos que a justifiquem. Ao contrário dos dogmas religiosos, cujos enunciados não permitem questionamentos, dúvidas e contestações, a ciência é muito simples e aberta a novas ideias e modos de interpretar os fenômenos os quais explica ou equaciona. Toda vez que um artigo científico apresenta dados originais, eles vêm acompanhados por uma margem de erro – um lembrete que nenhum conhecimento é completo ou perfeito. Se as margens de erro são pequenas, a acuidade das assertivas é elevada; se são grandes, a incerteza é enorme. Contudo, são justamente as margens de erros que incrementam a credibilidade da ciência, ela é tão sólida nos seus fundamentos, tão imparcial, que se dá ao luxo de expor, sempre que houver, um flanco vulnerável onde é possível opor-se a ela nos seus próprios termos. Abraços newtonianos, JAIR

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  3. Caro Attico,
    Como muito bem (é sempre o caso) você destacou, a ferramenta fala muito sobre o seu usuário/criador. Moldamos as ferramentas para nos, a nossa imagem, por assim dizer. O avanço que o desenvolvimento científico tem promovido levou a muita gente a uma "deificação" da ferramenta, e tornar cientistas semi-sacerdotes. Um erro crasso para uma disciplina que tem que lembrar que sua provisoriedade deveria inculcar humildade. Contudo, em certas áreas das nossas vidas o uso da ciência tem se mostrado melhor que o de outras "lentes", para usar sua imagem. Mas ciência, como toda ferramenta, não pode tudo. Os cientistas, como qualquer outra pessoa, tem que tem uma formação moral e ética que vai além (e vem de outras fontes) da ciência.
    Sobre o ponto um, concordo contigo, também. Para ser ateu é preciso tanta fé como para ser crente. Uma que eu não tenho. É uma reação, eu acho, ao avanço do fundamentalismo religioso, mas como toda reação, chaga aos mesmo extremos que critica. A Lei do caminho do meio é a melhor regra. Nem pouco, e nem de mais...
    Abraços,
    Mario

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  4. Que curioso, Chassot... Temos em paleontologia um uso para o termo "assemblage" também...

    Vou trazer aqui um trecho do livro da prof. dra. Maria Léa Salgado Labouriau (História Ecológica da Terra, ed Edgard Blücher): "A palavra 'assemblage' (do francês 'assembler', reunir) é usada em francês e adotada em inglês para denominar o conjunto de fósseis de um determinado nível estratigráfico e será usada neste livro com o mesmo significado e como sinônimo de conjunto de fósseis. A palavra 'assembléia' usada por alguns é uma tradução errada de 'assemblage'. A palavra 'associação' empregada por outros não pode ser usada neste sentido porque 'associação' tem um sentido específico em Ecologia, qua não é este."

    Bom é só uma curiosidade cultural. ASSEMBLAGE para nós é um conjunto de fósseis encontrados juntos em um mesmo nível rochoso, mas que não guardam relações entre si (podem ter vivido em condições ambientais e até tempos diferentes e por motivos de erosão, transporte e sedimentação, foram depositados juntos em uma sedimento que virou rocha). ASSOCIAÇÃO em paleontologia é um caso específico, onde os animais encontrados juntos também mantinham relações em vida, ou seja são provenientes daquele mesmo local e tem mesma idade, conviveram em vida. ASSEMBLÉIA, segundo me explicou Maria Léa, é uma reunião de PESSOAS, e não pode ser aplicada a coisas...

    Quanto ao restante, se puder volto para falar algo mais... só vou destacar um ponto:
    Vc comentou que "Assim, considerar a Ciência como 'uma linguagem para facilitar nossa leitura do mundo natural'e sabê-la como descrição do mundo natural ajuda a entendermos a nós mesmos e o ambiente que nos cerca." -- Não sei. Bachelard dizia que a ciência contraria muitas vezes o senso comum. É necessário abandonar o senso comum para compreender os fatos naturais. Um dos exemplos que ele nos dá é o caso da Terra ser redonda e girar no espaço. Pois bem mas as pessoas nascem crescem e vêem a Terra de sua superfície, RAROS DE NÓS puderam contemplá-la do espaço... E não no tempo de Bachelard... Assim o senso comum era de que a Terra é fixa, e plana para quem vive aqui... ou ao menos para quem vivia antes da Era Espacial...

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  5. Caro Chassot,
    deixo de lado as considerações sobre os 'óculos' da ciência até porque conheço bastante a tua posição pela parceria que temos no seminário sobre História e Filosofia da Ciência e me fixo da definição de assemblage: com os devidos cuidados, esses casamentos de cepas distintas de videiras proporcionam preciosíssimos vinhos aqui pelo nosso Rio Grande. Pena que é apenas a metade da tarde, senão iria sair para buscar uma garrafa de um bom assemblage para degustar agora mesmo.
    Um abraço,

    Garin

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  6. Querido mestre,
    A blogada de hoje me faz refletir sobre a nossa temática na dissertação, no sentido das transições, incluindo em seu segundo sublinhamento a História, que durante séculos foi de construção apenas masculina e pensando no Brasil, em muito (para ser delicada)conservadora e eurocêntrica.
    O estudo e ensino da cultura afro-brasileira e indígena transitam neste sentido: é um novo cenário que se processa na Educação, em especial e com o nosso olhar atento, ao Ensino de História.
    A ciência vai se (re)construindo, novos olhares e questões vão sendo refletidas, mas, a incerteza (positivamente) e necessidades por mudanças, permanecem e elas movimentam, diferem e fazem pensar.

    Abraços da sua orientanda Camila

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  7. Meus jovens da noite, após atividade sobre os óculos do conhecimento, concluíram que o óculos mais fácil de se escrever é o do senso-comum "é só escrever o que eu penso sobre a notícia"; e o mais difícil, seria o religioso, pois eles não concebem mais fechar as verdades em dogmas.

    Lembrando sempre que as pessoas mais equilibradas fazem uso de outras ferramentas além da razão. Limitar-se a compreender o mundo pelo cognitivo é podar possibilidade de ser integral.

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