quarta-feira, 14 de setembro de 2011

14.- ¿O que é Ciência afinal?

Ano 6

PORTO ALEGRE

Edição 1868

Quando a maioria de meus leitores acessar esta edição, devo estar – assim, queiram os deuses encarregados de determinar a intensidade de neblina nos aeroportos – em Niterói. Esta manhã, antes das 5 horas, devo estar saindo para o Salgado Filho, para viajar ao Rio de Janeiro e então, atravessar a baía da Guanabara, para às 10h30min iniciar a palestra A Ciência é masculina? É, sim senhora! na XXII Semana do curso de Química da Universidade Federal Fluminense. Amanhã, volto cedo ao Rio de Janeiro, para ir a Uberlândia onde tenho falas à tarde e à noite.

Desde a noite da última sexta-feira, estou matutando escrever algo acerca da questionadora palestra “Como anda a Ciência?” proferida pelo Prof. Dr. Guido Lenz (UFRGS) como aula inaugural dos Mestrados Profissional de Reabilitação e Inclusão e Acadêmico de Biociências e Reabilitação do Centro Universitário Metodista, do IPA.

Não tenho a pretensão de fazer uma síntese da palestra, mas tentar ampliar algumas discussões que surgiram durante o debate, mesmo que este tenha sido muito tênue. É importante aproveitarmos momentos acadêmicos como o de uma aula magna, para estimular discussões. É isto que esta edição quer catalisar.

Talvez, antes de envolver-nos com a pergunta título, pudéssemos perguntar O que é Ciência afinal? Este interrogante é título de um livro[i] mais de 300 páginas de Alan F. Chalmers – no original What Is This Thing Called Science? ou O que é essa coisa chamada Ciência?que traz extensas tentativas de responder à questão que a meu juízo é fulcral. É importante definirmos de que Ciência estamos falando.

Aqui e agora, não é possível fazer uma discussão do livro de Chalmers. Trago uma definição que aceito possa ser rotulada como reducionista. Mas, serve aos propósitos deste texto: Ciência pode ser considerada uma linguagem construída pelos homens e pelas mulheres para explicar o nosso mundo natural. Permito-me sublinhar, agora, apenas dois pontos nesta definição de Ciência:

a) é um construto humano, isso é, foi construída pelos homens e pelas mulheres. Como consequência desta natureza humana, a Ciência não tem a verdade, mas aceita algumas verdades transitórias, provisórias em um cenário parcial onde os humanos não são o centro da natureza, mas elementos da mesma. O entendimento destas verdades – e, portanto, a não crença nas mesmas –, tem uma exigência: a razão. Aqui temos um primeiro alerta: diferentemente das religiões, que admitem ter verdades reveladas, a Ciência não tem a Verdade e sim verdades provisórias ou interpretações temporárias ou desafios a resolver ou achados reveladores.

b) trago um segundo sublinhamento: afirmar que a Ciência é uma construção dos homens e das mulheres acoberta uma questão de gênero significativa. Escrevi um livro[ii] no qual procuro mostrar que a Ciência é uma construção masculina, como também o são masculinas as Artes, a Filosofia, a Política, a Religião, o Esporte. Estas construções culturais são, predominantemente, masculinas, brancas e eurocêntricas. Aliás, as religiões também podem ser consideradas construtos humanos masculinos (mesmo que aceitos por alguns como legados divinos) e têm responsabilidades muito grandes nesse enviezamento machista da Sociedade.

Assim, considerar a Ciência como “uma linguagem para facilitar nossa leitura do mundo natural” e sabê-la como descrição do mundo ajuda a entendermos a nós mesmos e o ambiente que nos cerca. Mas atenção: a Ciência é apenas um dos diversos óculos que podemos usar para ler o mundo. E mais: não se afiança que seja o melhor. Provavelmente para aqueles de nós que nos envolvemos com a Academia, a Ciência possa parecer o melhor óculo.

Talvez possamos identificar no nosso cotidiano, além da Ciência, leituras do mundo marcadas pelo senso comum, pelos mitos, pelo pensamento mágico, pelos saberes primevos ou pelas religiões. Aqui e agora, parece ser importante afirmarmos que qualquer um destes mentefatos[iii] não recebe um aval, ou mesmo um rótulo, de que seja o melhor (=mais certo) ou mais adequado. Cada uma e cada um de nós pode se afiliar a uma destas leituras. Ou em determinadas circunstâncias, usar mais de um óculo, ao mesmo tempo. Nesta situação há que se estar alerta a possíveis embaralhamentos por usar-se mais de um óculo, ao mesmo tempo.

Volto ao debate suscitado pela palestra. O Prof. Dr. Norberto Garin trouxe uma boa analogia: Quem pertence a uma Igreja? Aquele que segue os cânones da mesma. Temos, por exemplo, dezenas de Igrejas cristãs que têm significativas semelhanças /diferenças e que nem sempre se aceitam entre si. A Ciência também tem seus sacerdotes e suas paróquias.

Afirmei no debate, por exemplo, que os que fazem vírus para computadores, por exemplo, são cientistas. Entendo que alguém possa não aceitar isso, pois a ‘sua Ciência’, tida por ele como uma ‘imaculada concepção’ está sendo comparada com uma Ciência prostituída, logo expulsa da paróquia que abriga a Ciência não mazelada.

E a biopirataria? Não são cientistas aqueles que patenteiam espécies animais e vegetais que são patrimônio da humanidade? Temos o caso dos suínos, das galinhas, do milho e dezena de exemplos de sementes que não são sementes porque programadas para ser estéreis em uma segunda geração. Por outro lado não é cientista o agricultor que agrega valor ao milho caipira, fazendo melhoramentos genéticos com a troca de sementes com outros agricultores?

Assim, não há que ter surpresa com a afirmação: “Os produtores de vírus (para

computadores, por exemplo... poderia ser para guerras biológicas) não são cientistas!”. Afinal, os cátaros (mesmo que pregassem uma religião mais voltada à igreja primitiva), não eram considerados cristãos, e sim, heréticos, pois afinal eles não pensavam como os dirigentes da Igreja hegemônica.

Os critérios da exigência de uma ligação a ortodoxia, são bem postos quando se apresentam as exigências para pertencer a uma determinada grei: treinamento em Ciência (graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado); financiamento; revisão pelos pares; índice de impacto; citações...

Dizer que os produtores de vírus não têm treinamento, não publicam, não tem finaciamento, não são julgados pelos pares... pode ser um ledo engano.

Espraiei-me de mais. Queria falar na Ciência vista como o Golem. Fico devendo. Prometo pagar a dívida. Até outro encontro. Uma muito boa quarta-feira. Amanhã nos lemos, provavelmente, de Niterói.

[I] CHALMERS, A. F. O que é Ciência, afinal? São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.

[II] CHASSOT, Attico. A Ciência é masculina? São Leopoldo: Editora UNISINOS. (2011, 5ª. ed.) 2003

[III] Trago uma distinção entre artefato e mentefato. O ser humano age em função de sua capacidade sensorial, que responde ao material [artefatos], e de sua imaginação, muitas vezes chamada criatividade, que responde ao abstrato [mentefatos]. A realidade percebida por cada indivíduo da espécie humana é a realidade natural, acrescida da totalidade de artefatos e de mentefatos [experiências e pensares], acumulados por ele e pela espécie [cultura].



9 comentários:

  1. Paulo Fensterseifer Junior14 de setembro de 2011 às 00:52

    Olá Professor!
    Ótimo texto! Acredito ser um bom assunto para rodinha da próxima terça!
    Boa viagem!

    Abraço

    Paulo

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  2. Bom dia, mestre!
    Já estava com saudades de tua forma de falar[escrever], Professor.
    É cada vez mais fascinante "ouvir" o senhor falar sobre Ciência.
    Conheço o livro do Chalmers, já tive oportunidade de discutir um pouco acerca dele com a Professora Agustina, em Epistemologia.
    Mas tenho que concordar com senhor quando diz:
    "...a Ciência não tem a Verdade e sim verdades provisórias ou interpretações temporárias ou desafios a resolver ou achados reveladores."
    E também:
    "...a Ciência como “uma linguagem para facilitar nossa leitura do mundo natural” e sabê-la como descrição do mundo ajuda a entendermos a nós mesmos e o ambiente que nos cerca."Sem esquecermos de que ela é "apenas um dos diversos óculos que podemos usar para ler o mundo."
    Cada vez que passo um certo tempo sem vir aqui, me re - encanto!
    Um mol de abraços, Professor! E, boa viagem!

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  3. Caro Chassot,
    Blogada espinhosa, importante, relevante, significativa, momentosa, complexa e polêmica. Primeiro: A ciência, como não se propõe ser "dona da verdade", está sujeita a qualquer interpretação ou qualquer definição, portanto, podemos enquadrá-la como nos aprouver sem medo de errar. Segundo: A ciência não é dogmática, suas afirmações, embora as vezes provisórias, sempre estão baseadas em fatos e não em especulações, como as superstições e misticismos. Quanto ao uso que se faz dela, podemos afirmar que biopirataria é ciência sim. A ciência descobre, define, afirma e constrói, mas não tem ação sobre como suas descobertas serão usadas. Depois do descobrimento da fissão nuclear os descobridores perderam o controle do uso que se faria dessa força descomunal que resultou na bomba atômica, e é assim que as coisas continuam sendo. Produzi um texto sobre maconha transgênica que ilustra bem esse imbróglio, vou mandá-lo por email para você. Abraços, JAIR.

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  4. Caro Chassot,

    a tua primeira provocação está muito boa. Precisamos te cobrar o saldo. Entretanto, cada 'paróquia' imagina possuir a verdade que salvará toda a humanidade de todo o pecado. O problema é que há choque entre as paróquias resultantes de interpretações diferentes sobre a oikoumene. É fundamental descobrir que o saber é resultado de construções coletivas e dialogadas - interdisciplinares. Assumir a propriedade de qualquer verdade é sempre um risco considerável. Mesmo no diálogo interdisciplinar, ainda assim o conhecimento que resulta pode ser contestado, posto que circunscrito a um determinado contexto sócio-cultural e cronológico.

    Uma boa palestra. Um abraço!

    Garin

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  5. Muito estimado Paulo,
    fiquei muito orgulhoso com teu comentário, postado um pouco depois de nossa aula.
    Um abraço desde uma Niterói chuvosa.
    attico chassot

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  6. Muito querida Thaiza,
    saudades estava eu, Teus comentários – pelo teu fazer na área da Educação Química – qualifica este blogue.
    Desde Niterói um agradecimento pela parceria intelectual
    attico chassot

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  7. Valeu, estimado Jair,
    quando alguém que não tem a boca torta viciada pelo cachimbar(leia-se: não tem os ranços da Academia) faz comentário como o que fizeste, digo-me que vale a pela ser bloguista.
    Com apreço

    attico chassot

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  8. Garin, meu caro parceiro de provocações epistemológica,
    matutar este texto foi catalisado por tua fala.
    Obrigado pela ajuda.
    Vou cumprir o prometido e continuar olhando a Ciência.
    Coo agradecimentos
    attico chassot

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  9. Ave Chassot,

    estou botando minha leitura em dia.
    Esta semana de fim de trimestre me atarefou.

    Achei este texto formidável! Muito instrutivo, vou passar aos meus alunos.

    Abraços,
    Guy.

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