segunda-feira, 29 de agosto de 2011

29.- Uma história dolorosa

Ano 6

PORTO ALEGRE

Edição 1852

Uma segunda-feira que sucede um domingo que para mim foi indoor. Primeiro a chuva que apagou o sol, e depois uma natural ressaca da fabulosa estada no ABC, que faz encolher o fim de semana.

Houve tempo para ler jornais de três dias espalhados gostosamente pelo chão. Vimos, a Gelsa e eu, um filme muito bom (Joana, a Papisa) que ainda desejo ampliar o assunto que está no A Ciência é masculina? É, sim senhora.

Mas a propósito de violência contra a mulher, a pernambucana Severina Maria da Silva, de 44 anos conta sua história dolorosa. Ela foi absolvida pela Justiça de Pernambuco na última quinta-feira, dia 25 de agosto. Ela era acusada de ter encomendado a morte do pai, Severino Pedro de Andrade, de quem engravidou 12 vezes e teve cinco filhos durante os 29 anos em que foi vítima de abusos sexuais e agressões por parte dele. Os assassinos, Edilson de Amorim e Denisar dos Santos, foram presos, julgados e condenados. Mãe de cinco filhos, todos gerados à força com o próprio pai, pagou R$ 800 para que ele fosse assassinado e agora foi inocentada pela Justiça.

Hesitei muito em publicar esta dramática história. Não sei se já tive conhecimento de algo mais doloroso. Junto com os votos de uma boa segunda-feira, peço com antecipação desculpas, se firo a sensibilidade de meus leitores.

A seguir o depoimento de Severina ao jornalista Fábio Guibu, publicada na Folha de S.

Paulo de sábado. Severina ao deixar prédio do Ministério Público em Caruaru

Depoimento: Nunca estudei, nunca tive amiga, nunca arrumei namorado na vida, nunca saí para ir a festa. Até os 38 anos vivi assim e foi assim até quando me desliguei do meu pai, no dia em que ele foi morto.
Meu pai não deixava eu e minhas irmãs fazer nada. Comecei a trabalhar na roça com seis anos.
Aos nove, fui com meu pai para o roçado. No caminho, ele me levou para o mato, amarrou minha boca com a camisa e tentou ser dono de mim. Eu dei uma pezada no nariz dele, e ele puxou uma faca para me sangrar.
A faca pegou no meu pescoço e no joelho. Depois, ele tentou de novo, mas não conseguiu ser dono de mim.
Em casa, contei para minha mãe e ela me deu uma pisa. Fiquei sem almoço.
À noite, minha mãe foi me buscar e me levou para ele, que me abusou. No outro dia, fui andar e não consegui. Falei: "Mãe, isso é um pecado". E ela: "Não é pecado. Filha tem que ser mulher do pai."
A partir daquele dia, três dias por semana, ele ia abusando de mim. Com 14 anos, eu engravidei. Tive o filho, e ele morreu. Eu tive 12 filhos com meu pai. Sete morreram. Seis foram feitos na cama da minha mãe. Dormíamos eu, pai e mãe na mesma cama.
Um dia, uma irmã minha disse que estava interessada em um namorado. O pai quis pegar ela, disse que já tinha um touro em casa.
Eu mandei minha mãe correr com minha irmã. Depois disso, minha mãe não ficou mais com ele. Foram para a casa do meu avô, em Caruaru. Ela e as minhas oito irmãs.
Só ficamos eu e meu pai na casa. Eu tinha 21 anos, e ele sempre batia em mim. Tentei me matar várias vezes, botei até corda no pescoço.
Os filhos nasciam e morriam. Os que vingavam foram se criando. Minha filha estava com 11 anos quando ele quis ser dono dela.
Eu disse para ele: "Se você ameaçar a minha filha, você morre." Meu pai me bateu três dias seguidos.
Um dia, ele amolou a faca e foi vender fubá. Antes, disse: "Rapariga safada, se você não fizer o acordo, vai ver o começo e não o fim." Ele foi para a feira e eu, para a casa da minha tia. Foi quando paguei para matarem ele.
Peguei um dinheiro guardado e paguei ao Edilson R$ 800 na hora. Quando o pai chegou, Edilson e um amigo fizeram o homicídio.
A minha filha, a filha dele, eu salvei. Quem é pai, quem é mãe, dói no coração.
Antes disso, eu ainda procurei os meus direitos, mas perdi. Há uns 15 anos, fui na delegacia, mas ouvi o delegado falar para eu ir embora com o velhinho (o pai), que era uma boa pessoa.
O homicídio foi no dia 15 de novembro de 2005. No cemitério, já tinha um carro de polícia me esperando. Na cadeia, passei um ano e seis dias. Depois do julgamento, fiquei feliz. Agora, quero viver e ficar com meus filhos.

8 comentários:

  1. Impressiona a crueza do depoimento e contundência dessa história horripilante. Por estranho que pareça, a justiça, deixando de condenar essa mulher esmagada pela cultura machista que ainda impera na maioria das regiões brasileiras, fez JUSTIÇA. No meu entender seria impensável condenar essa pobre mulher por ter se livrado dessa condição torturante que a oprimia e já estava quase se estendendo para sua filha. Parabéns pela postagem, JAIR.

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  2. Caro Chassot,

    não resta dúvidas de que o ato da Severina foi um atentado à consciência moral como também foram todos os atos do pai em relação a ela e o do delegado para quem ela o denunciou. Mas do ponto de vista do senso moral, a Severina deveria ser canonizada. Não conhecemos quase nada do que se passa por baixo na entranhas da intimidade doméstica, mas certamente seria motivo para nos 'cobrir de cinzas' para utilizar um termo bíblico.

    Um abraço,

    Garin

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  3. Muito estimado parceiro Jair,
    realmente ter retido essa mulher 1,5 ano na cadeia foi uma infâmia. Aliás, os dois ‘executantes da justiça’ poderiam ser também absolvido, mesmo que então estaríamos validando a pena de morte, algo repúdio.
    Um abraço prenhe de chuva desde Porto Alegre até Floripa.
    attico chassot

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  4. Muito estimado colega Garin,
    encantei-me com tua proposta e seria dado a abrir manchete: “Teólogo, propõe a canonização de Severina”. Seria lindo a mulher que pagou para matar o pai reconhecida como ‘modelo de santidade’.
    Nesta segunda-feira prenhe de chuva a admiração do

    attico chassot

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  5. Que medo dessas facetas das pessoas, nossa, que esta história não seja ouvida pelas crianças, a imagem do pai-segurança, como mantê-la, como? Fcava arrepiada com o caso daquela menina isabela, penando no que se passava na mentezinha de uma criança diante daquele bombardeio, ai.

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  6. Muito querida Marília,
    oportuno tua lembrança: como fica o ‘pai-segurança’.
    Triste bestialidade de um humano,
    com admiração agradeço teu comentário

    attico chassot

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  7. Caro, Chassot

    A história de uma Severina. Quantas mais devem existir por esse “mundão afora”. Meu Deus! Quem colocou o sobrenome de Sapiens no Homo, professor ?

    Um abração do amigo úmido, chuviscado e congelado

    Milton Paulo

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  8. Muito estimado Dr. Milton Paulo,
    realmente dois interrogantes bem postos: quantas ‘Santa Severina’ (como sugere o prof. Garin) existem no nosso entorno e porque sapiens, quando temos estas cruentas provas do homo bestialis.
    Sinto que amigo hoje com toda esta chuva contempla um céu azul.
    Obrigado por tê-lo como leitor

    attico chassot

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