sexta-feira, 12 de agosto de 2011

12.- Um retorno à infância

Ano 6

PORTO ALEGRE

Edição 1835

A chamada da portada diz tudo. A blogada desta sexta-feira sabe a saudades. Mas antes de buscar um passado que YouTube não terminou (referência a blogada desta terça-feira), um relato de atualidade.

Esta tarde no Mestrado Profissional de Reabilitação e Inclusão do Centro Universitário Metodista, do IPA meu aluno Bruno Luis Piazza, um educador físico, leva a qualificação sua dissertação onde investiga o ensino da disciplina de Anatomia Humana e uma possível participação do mesmo na exclusão ou evasão de alunos de cursos de Educação Física (Licenciatura e Bacharelado), determinado pela maneira como é oferecida a referida disciplina. Estarão na banca a Profa. Dra. Denise Grosso da Fonseca (UFRGS) e o Prof. Dr. Jerri Luiz Ribeiro (Coordenador do Mestrado). Já disse aqui, mais de uma vez o quanto este ritual da trajetória de fazer uma tese ou uma dissertação tem um nome bem posto. Qualificar o trabalho do candidato. Tenho muitas expectativas para a sessão de hoje.

Mas, por que o saudosismo na chamada da edição? Hoje é o aniversário de minha mãe. Faz

102 anos. Seu sepultamento ocorreu no momento histórico de 11 de setembro de 2001. Há dois anos, quando fizemos a celebração do seu centenário, tínhamos como lema. “Ela existe, porque contamos sua história!”. Aliás, três anos foi a mesma inspiração que reuniu, filhos, netos, bisnetos e aqueles que se uniram a clã, na celebra do centenário de meu pai.

Datas como a de hoje fazem saudades. Aliás, já ontem, quando a Gelsa e eu telefonamos, para a Tile e o Paulo pelos aniversários, recordava como o aniversário dos dois ‘geminhos’ era significativo, por ser às vésperas do aniversário da mãe e o quanto ela ter tido gêmeos era uma superação pela menina natimorta um ano antes e que sempre era lembrada com tristeza ‘pois devia estar no limbo, pois não pode ser batizada. Agora que o limbo inexiste nas instâncias da vida eterna, certamente ficariam apaziguados. Das cenas mais remotas que recordo é meu pai – o marceneiro que trabalhava a madeira com amor – fazendo o caixãozinho para o sepultamento.

Assim como este passado ficou na Estação Jacuí, deixo evocações tristes e visito a casa paterna para encontrar minha mãe. Como meu pai trabalhava, muitas vezes, em pontos da linha férrea distante de Montenegro, tínhamos em minha mãe a presença absoluta na casa.

Assim, os leitores e as leitoras encontram nestas evocações uma casa de família de um ferroviário. À época a companhia ferroviária gaúcha era representativa, e ser empregado da mesma tinha uma distinção na classe operária. Éramos sete filhos, sendo que as ascendências paterna e materna estão entre colonos que chegaram ao Rio Grande do Sul no primeiro quartel do século 19. Os ascendentes paternos eram colonos suíços de fala francesa, que foram germanizados pelos colonos alemães, onde está minha ascendência materna. Portanto, a língua materna de meu pai e de minha mãe, mesmo que terceira geração no Brasil era o alemão, que não aprendi, pois nasci durante a guerra, quando este idioma fora banido.

Meu pai era, na sua família, o primeiro que deixava a agricultura para buscar uma profissionalização no mundo urbano. Minha mãe fora professora na colônia. O casamento é que determinou sua migração do mundo colonial.

Elejo a cozinha, por ser esta muito provavelmente o local de nossas casas que mais modificações sofreu no espaço de uma ou duas gerações. Um educador-poeta, fala em uma cozinha “lenta, erótica, lugar onde a química está mais próxima da vida e do prazer, cozinha velha, quem sabe com alguns picumãs pendurados no teto, testemunhos de que até mesmo as aranhas se sentem bem ali”. [ALVES, Rubem, Estórias de quem gosta de ensinar. São Paulo: Cortez, 1984. p. 93]

A casa de hoje, se comparada com a casa de nossas bisavós ou até de avós apresenta muitas modificações. Mas, se uma destas nossas ancestrais entrasse em nossas casas hoje, muito provavelmente em nenhuma dependência se acharia mais estranha que em uma de nossas assépticas e inodoras cozinhas hodiernas, na qual o onipresente fogão à lenha foi substituído por discreto forno de microondas.

Visitemos uma cozinha do começo da segunda metade do século 20. E vejam o quando meu retroceder temporal é pequeno... Nossa primeira surpresa serão os odores. O fogão à lenha, com um crepitar que começava ainda de madrugada e se estendia, quase ininterruptamente, até noite adentro, quando, terminados os afazeres, a família se reunia junto ao mesmo, para, na evocação do passado, transmitir aos mais jovens a história dos pósteros. Quanto a televisão hoje castra a transmissão das histórias orais (e das escritas)!

Só o fogão determinava uma série de fazeres domésticos que hoje inexistem. Uma das últimas tarefas da noite era arrumar o fogo para o dia seguinte. Havia rituais. Duas achas de lenha em cada lado da pequena fornalha, no meio destas maravalhas e sobre estas a lenha fina. Nesta simples descrição há alguns trabalhos. A lenha era adquirida em pedaços de cerca de um metro e era serrada, em casa, em achas menores. Cada pedaço originava quatro achas. As maravalhas eram requisitos preciosos. Eu era filho de marceneiro, logo tínhamos produção própria. Outros havia que precisavam buscar em alguma marcenaria. Um sucedâneo era o papel, mas é preciso recordar que a assinatura de jornais era bastante incomum, e, assim, jornais ou mesmo papéis velhos sempre eram aproveitados para outros fins e menos usados como combustíveis. O preparo da lenha fina era outro trabalho que tinha suas exigências. Na região colonial a lenha fina era substituída por gravetos ou sabugos provenientes de espigas das quais fora removido o milho, mas na cidade algumas achas de lenha precisavam ser convertidas em lenha fina. Cada casa tinha entre o ferramental uma machadinha e um cepo para este trabalho.

As tarefas aqui descritas eram usualmente trabalhos cometidos aos adolescentes, e nas divisões do trabalho eram preferentemente trabalhos masculinos, ou melhor, classificados como trabalho de guri.

Outro trabalho noturno, que acontecia também ao final das lides, era o escolher o feijão. Uma tarefa muito exigente, também destinada aos mais jovens, pois se precisava ter um bom olho, para saber descartar aquilo que era impróprio para cozer. Havia sempre muita terra, restos de vegetais, grãos estragados e sementes estranhas. Estas sempre despertavam minha curiosidade. Mas era desestimulado a plantá-las pois poderiam ser algum inço daninho. A eficiência do escolhedor era medida pela quantidade e variedade de rejeitos que ele apresentava no final da sua faina. O feijão, depois de escolhido, ia para uma bacia, usualmente de barro, onde ficava de molho até a manhã seguinte. Quando o feijão era colocado de molho, vinha mais um teste para verificar a habilidade do catador. Se houvesse materiais sobrenadantes, como grãos chochos ou algum resto foliar, é que a escolha não fora bem feita.

Outro trabalho desta hora da noite, conhecida como “depois da janta”, era algo que na minha casa ocorria nas noites de terças e sextas-feiras: o amassar o pão. Esse era um trabalho materno. Era algo que tinha muito ritual. Tínhamos uma grande gamela de madeira, feita pelo meu pai. Nesta eram colocadas as rigorosas medidas de farinha. A estas se adicionavam água, sal, ovos e o ingrediente que para mim era mágico: o fermento. Sua eficiência garantia algo importante: o pão não ficaria embatumado. O crescer da massa era algo bonito. Nas noites frias a gamela precisava ser coberta, para as magias não escaparem. Havia frustrações, nas madrugadas, quando a massa não crescia. Às vezes, acontecia algo imprevisto. A massa crescia demais e transbordava.

Havia, em datas especiais, preparativos diferenciados na padaria doméstica. O pão sovado era apenas para certos dias. O sovar o pão tinha também ares de encantamento. As roscas eram produzidas nos períodos nos quais a colônia oportunizava o polvilho. A qualidade das roscas atestava também a competência do produtor do polvilho. As cucas eram somente para algum aniversário ou festas religiosas. Em função da temporada as cucas podiam ser de laranja ou de uva. As passas e os adornos solenizavam os acontecimentos.

Nas manhãs de quartas e sábados bem cedo o forno estava em brasas, e depois assistíamos ao ritual de enfornar as diferentes formas com os pães. Esta operação jamais era delegada pela mãe. Havia necessidade de precisão. O forno de barro era algo presente na maioria das casas, mesmo no perímetro urbano das cidades. Havia ainda a alternativa de se usar o “forninho” do fogão à lenha. O pão feito em padaria comercial era algo tão raro, que a eventualidade parecia uma festa, pois sua marca mais característica era não ter a côdea, usualmente mais dura, dos pães caseiros.

Aqui ainda poderia se fazer referência à confecção de bolachas ou biscoitos. Para as festas

de Natal ou Páscoa, além de haver a produção de iguarias muito gostosas, estas tinham ainda esmeradas formas e decorações que lembravam as celebrações. Assim, sinos, papais-noéis, anjos, coelhos eram artisticamente coloridos com açúcares e confeitos coloridos. A padaria doméstica era também uma muito competente confeitaria. Uma das lembranças de minha mãe era a sua caligrafia. Este cartão foi escrito oito anos antes de ela casar.

Já me alonguei, quando sair o ‘Memórias de um professor: hologramas desde um trem misto’ muitas outras evocações. Agora só resta desejar uma muito boa sexta-feira para cada uma e cada um. Um convite para nos encontrarmos amanhã e falar em livros.


20 comentários:

  1. Antes de dormir curti muito os relatos da tua infância, relembrei o gostinho das cucas, bolachas e pães da vó. Com expectativa de estarmos juntos sábado..beijos Clarissa

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  2. MESTRE CHASSOT
    Uma postagem sublime essa de hoje. Levantei cedo e me deliciei com essa leitura, pois tenho um apreço muito grande por essas historias familiares. Paralelamente a história por tia trazida nesta blogada, observava os escritos candangos descobertos em uma reforma do predio do Congresso Nacional e o que se pode observar é que pelos versos ali contidos é possivel concluir o quanto nosso povo já foi tão carinhoso e aos poucos perdeu muito dessas inspirações. Talvez sejamos nós, educadores, responsáveis em despertar esse espírito novamente.
    JB

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  3. Clarissa, filha querida,
    comoves-me com teu comentário. E amanhã sonhamos com uma curtida celebração do dia dos pais.
    Que bom que evocaste tua vó no dia de seu aniversário,
    um beijo agradecido,
    do pai

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  4. Meu caro Jairo,
    não conheço acerca do encontro das ‘memorias dos candangos’ que referes,
    Como historiador sabes que ‘se não escrevermos nossas histórias, outros o farão e farão a sua maneira’.
    Com admiração,

    attico chassot

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  5. Caro Chassot,

    tua blogada está maravilhosa, especialmente de um ex-vizinho do vale do Jacuí. As memórias são muito próximas e a escolha do feijão, à luz de lampião, no final da noite, era uma tarefa compartilhada pelos irmãos (6 ao todo) supervisionada pelo meu pai.

    Um abraço,

    Garin

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  6. Caro Chassot,
    Sabe o que me emocionou? Tua descrição da cozinha com o fogão a lenha e suas utilidades, parecia que tu recordavas a minha casa! Por sermos do sul, pobres e oriundos de cidade pequenas rurais, provavelmente tivemos uma infância parecida com todos as pequenas coisas triviais como cortar lenha e fazer pão em comum. Gostei demais dessa blogada, não sou particularmente saudosista, mas ela me comeveu. Abraços de um guri do interior do Paraná, JAIR.

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  7. Meu caro Garin,
    mesma origens, histórias parecidas.
    O importante é conta-las.
    Obrigado pela parceria,

    attico chassot

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  8. Meu caro Jair,
    nossos filhos e nossos netos não terão nada parecido com cozinhas como as nossas.
    Que bom que tenhamos essas histórias para contar-lhes
    Obrigado pela parceria
    attico chassot

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  9. Attico

    Muito lindas as tuas lembranças. Também já lembrei muito a nossa mãe hoje.

    Abraço

    Tile

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  10. Tile muito querida,
    que bom que te trouxe evocações nesta blogada onde recordamos nossa mãe.
    Saudades
    attico

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  11. Attico, querido
    obrigada por compartlhar conosco tuas memorias. Tornas-te a Maria Clara viva hoje em nossoso coracoes. Visitei a cozinha!! Lindo cartao.
    beijos Carla

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  12. Carla muito querida,
    obrigado por te associares na celebração dos 102 anos da minha mãe, pois como escrevi contar a sua história é tê-la conosco,
    com carinho e gratidão
    attico

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  13. Mestre, foi um prazer apreciar suas ricas descrições de uma infância que foi em alguns pontos semelhante à minha...
    Apesar de não ter sido criado no interior, mas em Porto Alegre, na nossa cozinha também tinha o fogão à lenha e a escolha do feijão, feita por minhas diligentes irmãs, "depois da janta", o que era usualmente já bem depois do entardecer...
    Com sua permissão, voltarei outras vezes, para ouvir(ler) outros "causos" da terrinha!
    Boa noite!

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  14. Mestre Chassot

    Escolher feijão a luz do lampião, também me traz recordações, momentos dificeis aqueles, porem momentos de grande emoção, naquela época ouvia no rádio novelas quando nossa imaginação funcionava com imagens que construiamos em nosso interior, diferente do hoje que as imagens já estão prontas. Que Saudade, espero que meus filhos também sintam a mesma saudade que sinto, é uma saudade prazerosa.

    Forte Abraço, é uma emoção ler seus artigos, posso sentir o sabor e colorido.

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  15. Muito estimado Leonel,
    ~~ lamento que não deixaste teu endereço para resposta ~~
    realmente o ‘depois da janta’ era um espaço de rituais,
    Que bom que despertei saudades.
    Apareça aqui de vez em vez para prosear,
    a gratidão do
    attico chassot

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  16. Meu caro Adão,
    tua presença aqui sempre me dá alegria. Volto para as aulas de Filosofia ou para os ‘PhiloCine’ onde comparecias com tua atenciosa esposa. Isso também é passado.
    Alegria de tê-lo aqui é muito grande e que bom que evoquei saudades de tua infância,
    a admiração e o carinho para o casal do
    attico chassot

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  17. OTELO escreveu
    Ático

    Parabéns pela memória!!!!

    Também haviam as cucas de figo e coco (doce preferido do Oscar).

    Esta foto do casal sempre me alegrou muito.

    Um bom final de semana.

    Otélo

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  18. Pai
    adorei ler as tuas lembranças da infancia e da vó. Lembrei muito dela e também da festa do centenário ha 2 anos quando estavamos toidos reunidos... ate amanha
    Beijos Ana

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  19. Muito estimado Otélo,
    é muito bom tenhamos juntos oportunidade para curtir evocações tão densas de significados para nós,
    com admiração

    attico chassot

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  20. Ana Lúcia filha muito querida,
    adorei que tu evocaste história de tua infâncias associadas a teus avós paternas. É, como nos dizíamos ontem, nestas recordações que fazemos a presença continuada deles entre nós.
    Até breve aqui, quando começa chover,

    pai

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