sábado, 6 de agosto de 2011

06.- Teoria da viagem, poética da geografia.

Ano 6

PORTO ALEGRE

Edição 1829

Neste primeiro sábado agustino, honro uma tradição que começou em 4 de abril de 2009, por sugestão do leitor Marcos Vinicius Bastos: sábado, dia de dica de leitura. Assim, mesmo que, por estarmos iniciando um semestre letivo, não seja tempo apropriado para falar de algo muito gostoso, transgrido as restrições e falo, uma vez mais, de viagem.

Quem provocou a dica de hoje foi Jair Lopes – editor de ‘um blog que pensa’ -- jairclopes.blogspot.com/ -- que ontem postou o seguinte comentário: Caro Chassot,
Sente-se pelo teu texto que tu estás acometido de "Síndrome do Retorno", mal que atinge aqueles que retornam de viagens e apresentam certos sintomas como "jet lag" e certa nostalgia pelo visto, sentido e usufruído no tour. Mais uma vez, bem vindo e aproveita nosso inverno, que este ano é um dos mais frios. Abraços,
JAIR .

Este comentário remontou-me a uma resenha que fiz aqui em dezembro de 2009. Admitindo que os leitores se renovem e que mesmo aos mais antigos, vale recordar, a dica de hoje sabe a uma ‘teoria de viagem’ mergulhada em ‘uma poética da geografia’. Assim sugiro um livro do filósofo Michel Onfray: Teoria da viagem, poética da geografia.

O autor é um filósofo francês. Nasceu em 1959, em Argentan, no seio de uma família

de agricultores normandos. Fez doutorado em Ciências Política e Jurídica. Lecionou Filosofia, no ensino secundário durante 20 anos em um liceu em Caen. Descrente do modo como se ensina Filosofia aos alunos, em 2002, fundou a Universidade Popular de Caen, uma universidade gratuita e heterodoxa, cuja concepção se assenta nos princípios do seu manifesto La communauté philosophique, que busca voltar às raízes do humanismo ocidental. Onfray defende que não há Filosofia sem Psicanálise e os seus escritos celebram o hedonismo, a razão e o ateísmo.

De Onfray esse blogue (e também Sete Escritos sobre Educação e Ciências) já referiu em mais de uma oportunidade Tratado de ateologia (Martins Fonte, 2008). Há em português, editados pela Rocco, Ventre dos Filósofos (1990) e Política do rebelde (2001). Pela Martins Fontes há também Contra-história da Filosofia vol. 1 e 2 (2008). Dele possuo também Le souci dês plaisird: construction d’une éotique solaire (Flamarion,2008) e La inocencia del devinir (Gedisa, 2008).

Como autor de mais de 50 livros envolvendo temas como citei acima, é alvo do ódio religioso de muitos. Em um blogue fundamentalista, opinando acerca deste prestigiado autor, encontrei: “Michel Onfray vai arder no lago de fogo e enxofre de satanás, por colocar conhecimento na cabeça das pessoas; é um que coisa mais terrível, tinha que ser ateu, são todos anti-cristos satanistas filhos do demônio e assassinos”. Ou ainda isso “Bom para e Cristão é fazer uma fogueira e queimar os outros. Fazer faculdade, universidades e fazer as pessoas pensarem é pecado.” Quase não parece que estamos encerrando a primeira década do século 21.

ONFRAY, Michel. Teoria da viagem, poética da geografia. [Théorie Du Voyage (Libraire Générale Française, 2007)] Tradução Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2009. 112 p. 21 cm. ISBN 978-85-254-1918-7

Onfray parte do relato de Caim e Abel, no livro fundante da civilização judaico-cristã quase nos inquirindo: Qual é a origem do desejo da viagem? Porque nos sentimos mais nómadas ou sedentários? Porque somos impelidos para o movimento constante, a deslocação, ou amamos o imobilismo e as raízes? Porque mantiveram alguns povos a sua marcha inexorável, pastoreando os seus rebanhos? E porque se dedicaram outros a um só lugar, onde cuidaram dos seus campos? A energia que anima estas formas de vida tão distintas, estes dois arquétipos, é a mesma que anima o resto do universo, e que as combina obscuramente em cada um de nós.

O conceito de viagem ainda faz sentido, num mundo on-line e globalizado? Michel Onfray, pensador francês hedonista, autor de diversos livros de divulgação de filosofia, defensor do ateísmo e da autonomia do pensamento e da vida, faz, em Teoria da viagem: poética da geografia, um elogio à arte de viajar. O viajante Onfray – para quem filosofar só é possível a partir de uma experiência autobiográfica – resgata os significados primeiros de se sair em busca do desconhecido. Remontando à história de Caim (agricultor, sedentário) e Abel (pastor, nômade), ele estabelece dois polos entre os quais todos oscilamos: nomadismo versus sedentarismo, e amor ao movimento versus paixão pelo imobilismo, pelo enraizamento. É sobre as experiências vividas sob o signo do nomadismo, do espírito da viagem que versa este volume de ensaios. Se por um lado, como afirma Onfray, o mundo resiste às tentativas de colocá-lo em palavras, neste manual da aventura ele recupera os estados de alma do viajante primordial e nos recorda uma lição ancestral: o aprendizado do mundo se dá ao mesmo tempo em que o aprendizado de nós mesmos. Como resultado, Teoria da viagem se oferece como um personalíssimo inventário de reflexões andarilhas, que têm a ver com memória, com amizade, com subjetividade, com perder-se, com a escolha de um destino. Graças ao estilo poético e informal que o tornou um dos filósofos mais lidos da contemporaneidade, Onfray atinge o pastor que há em todos nós. Após a leitura, este livro terá assegurado um lugar na bagagem – real ou afetiva – do leitor.

Onfray em sua Teoria da viagem estuda a viagem em três momentos: o Antes; o Durante; e o Depois. Para cada desses momentos traz oportunas teorizações. “No começo, muito antes de qualquer gesto, qualquer iniciativa ou vontade deliberada de viajar, o corpo trabalha, à semelhança dos metais sob a canícula do Sol... O desejo da viagem tem a sua fonte nessa água lustral e morna, alimenta-se estranhamente desse manto metafísico e dessa ontologia germinativa. Só nos tornarmos nômades impenitentes se instruídos na nossa carne nas horas do ventre materno, redondo como um globo, como um mapa-múndi. O resto revela um pergaminho já escrito...”.

"Viajar tornou-se, não apenas uma espécie de apelo da humanidade civilizada e com um mínimo de meios econômicos, mas também uma vitória sobre a eternidade; porque a viagem nos salva do que perdura e que não é tão eterno como julgávamos. Pertencendo a um mundo em que cada minuto tem um preço e uma medida exata, o viajante recupera a poesia, a inutilidade, os monumentos em ruínas, os papéis que hão de ser arquivados fora da memória, as varandas dos hotéis, os instantes fugidios de prazer e de clandestinidade. Ele é verdadeiramente um espião; e o mundo inteiro é o seu território.”

Em Teoria da Viagem - Uma Poética da Geografia, Michel Onfray reflete sobre a origem do desejo de viagem. Por que razão nos sentimos mais nômades ou mais sedentários?

Por que somos impelidos para o movimento constante, a deslocação - ou amamos o imobilismo e as raízes? porque mantiveram alguns povos a sua marcha permanente, atravessando continentes? E por que se dedicaram outros a um só lugar, onde cuidaram dos seus campos? A energia que anima estas diferentes formas de vida, estes dois arquétipos, é a mesma que anima o resto do universo, e que as combina em cada um de nós".

E para as diferentes etapas da viagem uma recomendação de Onfray “A genealogia de ícones inconscientes úteis para escolher destinações ganha em celebrar o texto, o livro, o romance, o poema, o relato de viagem. Qualquer linha de um autor, mesmo medíocre, aumenta mais o desejo do lugar do lugar descrito do que as fotografias, muito menos filmes, vídeos ou reportagem. Entre o mundo e nós, intercalaremos prioritariamente as palavras”.

Teoria da viagem, poética da geografia. Adito votos de um muito bom sábado e o convite para amanhã curtirem uma blogada dominical. Para aquelas e aqueles destas bandas: curtam o frio.

8 comentários:

  1. Caro Chassot,

    o mito etiológico de Abel e Caim têm diferentes interpretações até mesmo porque os mitos se destinam a 'fundar' alguma coisa e como tais, se prestam às distinta cogitações. Não resta dúvidas de que o Caim era o sedentário, o proprietário de terras, o agricultor, o detentor de mais tecnologia. O Abel, o pastor, era andante, pastor de cabras e ovelhas, depositário de tradições ancestrais, diplomata. Não conhece o livro do Onfray, mas pareceu-me, pela resenha que fazes, que está no caminho adequado: o Abel pode ser um 'fundante' desse desejo afetivo de buscar novas pastagens, encontrar novas aguadas, lavar os olhos em distintas paisagens. É impressionante que todos, crentes e descrentes, sempre buscamos beber no universo religioso, claro, por motivos distintos.

    Um bom sábado!

    Garin

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  2. Muito caro colega Garin,
    realmente, em um de nossos mitos fundantes, é muito bom sentir-se mais Abel que Caim, nesta excelente leitura de Onfray. Já a leitura de Saramago dobre o mesmo mito é mais ácida, inclusive me incomodou muito. Escrevi sobre ela á época.
    Obrigado por tua presença aqui.
    Um bom ensolarado sábado,
    attico chassot

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  3. Ave Chassot,

    adorei a blogada. Já conhecia o Onfray de um certo Tractatus, este também é muito interessante.
    Te desejo um bom retorno às atividades acadêmicas e já te convido para um outro chá aqui em casa. Por email marcamos o dia. Forte abraço,
    Guy

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  4. Caro Chassot,
    Excelente blogada, assim você me induziu correr à "Estante Virtual" e procurar o livro de Onfray. Abraços, sabáticos, JAIR.

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  5. Olá Mestre!

    uma estava encantada por este autor, e radicalmente passou a pautar suas escolhas apenas pelo prazer que lhes proporcionavam. Cada um interpreta como lhe convem, eu sei. As mesmas palavras e mundos diferentes.

    um abraço da sempre leitora Marília

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  6. Meu querido amigo Guy,
    imaginava-te ainda em Mauritius, que visitei virtualmente. O convite para o chá esta aceito para ouvir-te contar acerca deste pais que me pareceu no mínimo exótico.
    Com expectativa,
    achassot

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  7. Meu caro Jair,
    que bom que tu catalisaste uma dica de leitura que tenha te agradado.
    Um bom saldo de sábado e um excelente domingo
    attico chassot

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  8. Muito querida Marília,
    primeiro festejo o teu retorno da como comentarista: fazia tempo. Estava com saudades.
    Michel Onfray é realmente um filósofo que bole conosco. Seu tratado de ateologia mexeu comigo.
    Este comentado hoje faz a melhor descrição de nossa situação como viajores, marcado pelo mítico pastor Abel.
    Um excelente domingo para ti e renovo meu festejamento por tua volta.
    Afagos do
    attico chassot

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