quinta-feira, 23 de junho de 2011

23.- A Bíblia do Rei James de 1611

Ano 5

Porto Alegre

Edição 1785

Uma vez mais vive-se um dualismo: feriado ou dia santo ou dia laboral? Hoje é um dia santo católico: Corpus Christi (expressão latina que significa Corpo de Cristo) é uma festa que celebra a presença real e substancial de Cristo na Eucaristia. Logo não é uma celebração cristã, pois as demais denominações, oriundas de reformas não seguem este dogma central do catolicismo: a transubstanciação do pão e do vinho em corpo e sangue de Cristo. Por exemplo, para os luteranos, o pão e o vinho recordam o corpo e o sangue de Jesus; em outros credos evocam a última ceia. Mas esta não minha ‘paróquia’ assim abstenho-me no estender comentários. Tenho leitores teólogos. Vi que entre os seguidores há inclusive um bispo.

Em muitos munícipios brasileiros, graças o poder hegemônico do catolicismo, este é dos feriados municipais que cada município pode eleger. Porto Alegre é um deles. De minha infância são memoráveis nesta data as procissões com os tapetes de serragem e pétalas coloridas nas ruas. Esta tradição ainda é mantida em muitos lugares. Mas, hoje, aqui não vou abrir o baú de memórias.

Trago um texto muito apropriado à data que penso despertará interesse em muitos de meus leitores. Independente de religiosidade se quer contemplar aqui uma obra prima literária, quando se evoca o quarto centenário da versão da Bíblia conhecida como a do Rei James. O autor desta recensão histórica é José de Souza Martins, Professor Emérito da Universidade de São Paulo e autor de vários livros e artigos. Entre os quais A sociabilidade do homem simples (Contexto). O artigo oferecido aqui foi publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Aliás, A Semana Revista], Domingo, 3 de abril de 2011, p. J8. Hoje apresento a primeira parte. Já anuncio para amanhã, como continuação, algo acerca das versões vernaculares da Bíblia que tiveram a histórica função de abri-la à compreensão de multidões em muitos lugares do mundo.

Numerosos eventos, no correr deste ano, na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos e em outros países de língua inglesa, celebram o quarto centenário da versão da Bíblia comissionada pelo Rei James. Em junho, na Igreja de Santa Maria Maior, a igreja da Universidade de Cambridge, um seminário aberto ao público reúne especialistas em história e em literatura para analisar essa versão da Bíblia que é reconhecida como o mais nobre texto da prosa inglesa. Eventos como esse estão ocorrendo em Oxford desde janeiro e em outros lugares do Reino Unido. Desde o início do ano, a BBC vem transmitindo eruditos programas sobre essa efeméride literária e histórica, além de religiosa.

Página de rosto da edição de 1611 da Bíblia do Rei James: O rei James I, filho de Maria I, católica, sendo rei da Escócia, assumiu o trono inglês com o falecimento de Elizabeth I, anglicana. Era um erudito, amigo de autores como Shakespeare. Em 1604, durante três dias, reuniu no Palácio de Hampton Court, em Londres, um grupo de especialistas para projetar e realizar uma tradução da Bíblia para a língua inglesa, um trabalho que se estenderia até 1611. Uma comissão de 54 tradutores e revisores foi formada, constituída de sábios e especialistas de Oxford, Cambridge e Westminster, gente das duas grandes universidades e da Igreja da Inglaterra. Numa sociedade convulsionada por guerras religiosas, que eram guerras sociais e políticas, adversários religiosos queimados vivos em diferentes lugares do país, aquela tradução da Bíblia acabou se impondo como um fato político sobre a guerra das ideias. Ela expressava a lucidez de um monarca culto e teórico da monarquia. James I, era também James VI da Escócia, e na Escócia conhecera as tensões políticas decorrentes das divergências dos puritanos, presbiterianos e não-conformistas. John Knox, fundador do presbiterianismo escocês, convivera com Calvino em Genebra e levara para a Escócia, no fundo, uma igreja republicana. O livre acesso à Bíblia em língua vernácula era parte desse republicanismo de base.

A primorosa Bíblia do Rei James legitimava a Igreja da Inglaterra e o rei como seu cabeça. Uma boa indicação nesse sentido foi o dilema quanto a certas palavras, quanto a que tradução dar ao ajuntamento dos fiéis: “igreja” ou “congregação”. “Igreja” traduzia melhor a dimensão de poder e autoridade que se pretendia dar à instituição, algo mais próximo do catolicismo do que do protestantismo. “Congregação” refletia melhor o puritanismo protestante e seu republicanismo ao por a ênfase não na instituição, mas no ajuntamento republicano do povo e, portanto, no membro da igreja. A Bíblia do Rei James consagra a dimensão revolucionária que há no livro sagrado em vernáculo. Mas é ao mesmo tempo a Bíblia da ordem, não só religiosa. Sem propriamente legitimar enrijecimentos sociais tão característicos das sociedades estamentais, como era a inglesa e foi a nossa, expressa essa característica tão própria da sociedade inglesa e da sociedade moderna que é a de mudar para permanecer.

A celebração literária e histórica da Bíblia do Rei James tem sua razão de ser não só nesses motivos históricos. Ela se tornou um texto referencial da língua inglesa e da lógica discursiva das sociedades anglo-saxônicas, algo como Os Lusíadas, de Camões, para a língua portuguesa. Ou La Divina Commedia, de Dante, para a língua italiana. Ou Don Quijote de La Mancha, de Cervantes, para a língua espanhola. Textos referenciais da língua, da fala, e também dos respectivos imaginários e modos de pensar.

O sugestivo título de um programa sobre o tema, transmitido pela BBC, em fevereiro, “Quando Deus falava inglês: a feitura da Bíblia do rei James”, é bem indicativo do fato de que essa versão da Bíblia tornou-se o mais poderoso instrumento da expansão da visão anglo-saxônica do mundo e da vida e o cimento do padrão de civilidade que acompanhou a disseminação internacional dos negócios ingleses, primeiro, e americanos, mais tarde. Essa versão da Bíblia, além do conteúdo religioso, continha também as bases referenciais das categorias da modernidade. É de pouco, a bela retórica bíblica de Barak Obama em sua campanha eleitoral. O Rei James foi um de seus principais eleitores. Sem a Bíblia do Rei James, Obama não teria dado o que é de certo modo a cor profética de sua ascensão ao poder.

Um bom dia santo para os de fé católica; um bom feriado, para os que vivem em áreas feriais e para os demais um bom dia laboral. E hoje é noite de pular a fogueira. Não me cabe recomendar cautela, pois parece que nesta noite as brasas não queimam. Certamente as orações para amarrar o sol já estão funcionando e as noites começam a diminuir. Renovo o convite para amanhã nos abeberarmos de algo acerca das versões vernaculares da Bíblia.

4 comentários:

  1. Caro Chassot,

    já me preparava para te contestar quando descobri que o termo 'trialismo' não existe na língua portuguesa. Como pertenço ao ramo protestante, não celebro o dia de Corpus Cristi. Aproveito para me realizar na terceira via: vou trabalhar um pouco. Até porque reconheço que uma boa parte dos meus irmãos católicos também não o celebram: fazem, na verdade, um feriado (quando não, um feriadão). Meu abraço respeitoso a todas as pessoas que, neste dia, se recolhem em suas orações, missas e processões em homenagem ao Corpo de Cristo.

    Uma boa quinta-feira para ti!

    Garin

    http://norberto-garin.blogspot.com

    ResponderExcluir
  2. Meu caro Garin,
    pois examinava os feriados nacionais: há três categorias: os cívicos (por exemplo, 7 de setembro), os cristãos (25 de dezembro) e os católicos (12 de outubro). Talvez se pudesse acrescentar um universal (1º de janeiro). Vês que não há feriados evangélicos ou judeus.
    O exemplo da – ainda – hegemonia do catolicismo é a do dia santo de hoje que se trasveste de feriado. ¿Quantos serão os católicos que cumprem o preceito de ‘abster-se de trabalhos servis e ouvir missa inteira’ como reza(va) o mandamento?
    Agora uma tênue frustração a teu comentário: pensava ouvir-te acerca a comemoração do quarto centenário de um patrimônio da língua inglesa: a bíblia do Rei James.

    Um bom dia feriado ou laboral,
    na escuta
    attico chassot

    ResponderExcluir
  3. Caro Chassot,
    Não sou cristão e não professo religião reconhecível com tal, mas gosto da história das religiões e essa da Bíblia do Rei James é uma joia, parabéns. JAIR.

    ResponderExcluir
  4. Meu caro Jair,
    se vez ou outro meu blogue é acusado de igrejeiro, a edição de hoje não padece deste viés.
    Obrigado por seres leitor aqui
    attico chassot

    ResponderExcluir