sábado, 4 de junho de 2011

04. Exame de artilheiros

Ano 5

Porto Alegre

Edição 1766

Aqui nas bandas mais sureñas do Brasil o Inverno se antecipou. Mal começou junho e ele resolveu mostrar suas manhas, inclusive com dias que o sol se faz saudades. Não fosse uma pálida iluminação, até poderia se dizer que ele já era, mas afirmam os mais sábios que o sol ainda existe.

Assim, a lareira que desde o último agosto mostrava o mesmo arranjo, no primeiro shabath junino, crepitou e encantou, como só o fogo sabe nos levar a passeios mágicos. Certamente catalisaram as viajadas as falas da aula da manhã, quando vimos o flogisto sofrer uma substituição paradigmática.

Mas hoje é dia de falar em livro. Não vou fazer uma associação tétrica. Certamente é de todos os artefatos culturais aquele que teve um fim oposto ao de sua criação: ser consumido pelo fogo. A sanha dos inquisidores, muitas vezes, deu aos livros destino tétrico. Houve também sinistros que queimaram preciosidades.

A Biblioteca Anna Amalia, em Weimar, foi reaberta em outubro de 2007, três anos após o grave incêndio que danificou gravemente o seu prédio e destruiu 37 pinturas e cerca de 50 mil livros dos séculos 16 a 20. O incêndio, em setembro de 2004, foi causado por problemas elétricos.

Cerca de 62 mil obras danificadas pelo fogo ou pela água em 2004 foram levadas para restauração em Leipzig. Dessas, 16 mil já foram restauradas. O custo total da restauração é estimado em 67 milhões de euros e os trabalhos deverão continuar até 2015. A Biblioteca Anna Amalia possui um acervo de mais de 900 mil obras e foi incluída na lista de Patrimônios Mundiais da Humanidade da Unesco em 1998.

No dia do incêndio, como as chamas se alastraram no teto da biblioteca, pessoas formaram uma corrente humana para tirar do prédio o maior número possível de livros. Elas salvaram cerca de 6 mil obras históricas, incluindo uma primeira edição da tradução da Bíblia por Martinho Lutero, de 1534.

Há apenas uma coisa que dispara meu lado consumista: livros. Também parece que único bem material pelo qual sinto apego é a minha biblioteca. Ela se distribui por todas as peças da Morada dos Afagos. Nela há um setor de livros raros e preciosos, onde um alcorão manuscrito do século 17, comprado em um antiquário em Istambul, é meu maior tesouro, junto com o livro vermelho de Mao, comprado em um sebo da China. Há algumas primeiras edições de livros importantes ou livros que usei em meus anos de formação, como a Seleta em Prosa e Verso e os livros de latim das quatro séries do ginásio: Ludus Primus, Ludus Secundus, Ludus Tertius e Ludus Quartus. Tenho um Ari Quintela, do 3º cientifico, que foi o livro que usei para preparar a minha primeira aula de Matemática, que ministrei em 13 de março de 1961. Tenho também livros religiosos, inclusive um missal de altar dos tempos das missas e latim e livros rituais em hebraico.

Tenho alguns exemplares fac-similares. Entre estes, sete da Biblioteca Reprográfica da Xerox, que recebi da mesma. Um deles, por ter estado no seminário de ontem, é o livro deste sábado. Ele não comparece como a ‘usual dica de leitura sabática’ mas como obra que ofereço à degustação: Exame de artilheiro, talvez o primeiro livro escrito no Brasil; pelo menos a primeiro de Matemática.

É nesta fruição que desejo um bom sábado e faço o convite para amanhã celebrarmos, também aqui, o Dia Mundial do Meio Ambiente.

ALPOIM, José Fernandes Pinto. Exame de Artilheiros. Nota histórica e análise crítica: Paulo Pardal; prefácio: Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1987. 332p. ISBN 85-85146-01-X

Seu autor é o Brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim. Ele foi o grande arquiteto e engenheiro do século 18 no Brasil. Importante tanto pelas obras arquitetônicas que realizou, quanto por ter sido um dos iniciadores do ensino da engenharia no Brasil, autor de dois livros didáticos, além de ter participado ativamente como um dos comandantes da Campanha Demarcatória das fronteiras sul do Brasil.

Alpoim nasceu em 14 de julho de 1700, em Viana do Minho, (hoje Viana do Castelo), filho de Vasco Fernandes de Lima, Sargento-mor Engenheiro em Entre-Douro-e-Minho, tendo sido seu padrinho o avô, outro Sargento-mor engenheiro, Manuel Pinto de Vila Lobos. Iniciou seus estudos com este avô na recém-criada Academia de Viana. Em Portugal, realizou diversos trabalhos de engenharia, como, em 1729, o levantamento das margens do Rio Douro, com o fim de melhorar a segurança para a navegação.

Em 1738, Alpoim veio para o Rio de Janeiro, designado para exercer as funções de engenheiro, como Sargento-mor, no Terço de Artilharia, onde muito desenvolveu sua notável capacidade profissional, como professor, engenheiro e arquiteto.

A Carta Régia de 19 de agosto de 1738, reorganizou a Real Academia de Artilharia do Rio de Janeiro, (que havia sido fundada em 1699), tomando a denominação de “Aulas de Artilharia e uso de fogos artificiais”; na ocasião, foi criada uma “aula”, sob a responsabilidade de Alpoim, que englobava o ensino da artilharia e das fortificações.

Para este ensino, ele redigiu dois livros: Exame de Artilheiros , 1744, e Exame de Bombeiros , 1748 – livros que atualmente são obras extremamente raras. Apenas do primeiro citado foi feita reedição, pela Xerox do Brasil, em 1987, como o volume XXVII da Biblioteca Reprográfica Xerox, a partir de exemplar do acervo da Biblioteca Nacional. Atualmente são conhecidos sete exemplares da obra: dois fazem parte do acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, um se encontra na Biblioteca Estadual do Rio Grande do Sul; o Real Gabinete Português de Leitura também possui uma cópia e outra está nas mãos de um colecionador particular. A Biblioteca Nacional possui três exemplares, todos catalogados entre as principais obras de seu acervo.

A função de Alpoim não se limitou ao comando, deveria também ser o responsável por ensinar a técnica da artilharia devendo deixar registradas as suas aulas uma vez que não existiam livros que discorressem sobre o assunto nos moldes necessários para as suas aulas.

Diante da exigência real Alpoim decidiu escrever livros que facilitassem a sua atividade. Escreveu aqui no Brasil os dois primeiros livros de Matemática do país: Exame de Artilheiros (Exame de Artilheiros – Livro composto por três tratados: Aritmética, Geometria Artilharia e Apêndices) em 1744 e Exame de Bombeiros (Exame de Bombeiros – Livro composto por dez tratados: Geometria, Nova Trigonometria, Longimetria, Altimetria, Morteiros, Morteiros Pedreiros, Obus, Petardos, Bateria dos Morteiros, Fogos Artificiais e Apêndices) em 1748, porém estes livros foram publicados em Lisboa e Madri, respectivamente. Estes livros são considerados obras raras tanto no Brasil como em Portugal.

O Exame de artilheiro é formado por quase 700 perguntas e resposta. A primeira: ‘O que é Aritmética?’ 2: Que é número? 3: Que é grandeza? 4. O que é parte?

Na ilustração – uma das páginas do livro Exame de artilheiros –, o professor Alpoim ensinar como é possível calcular o número de balas de canhão que um determinado lugar pode conter. Ou, ainda, à vista de uma pilha de balas de canhão, saber quantas balas a pilha tem.

Encerro extraindo de minha tese de doutorado um excerto, de análise mais ampla que fiz acerca desta obra e a vigilância dos tribunais inquisitoriais sobre publicações de qualquer natureza, exemplificando-se os trâmites do Exame de Artilheiro, obra de aritmética, geometria e artilharia.

Inicialmente o Qualificador do Santo Ofício diz que

“Por todos os princípios se faz esta obra digna da imortalidade do prelo; pela pureza da fé, e utilidade dos bons costumes, o julgo, eu, obediente ao decreto de Vossa Eminência pelo relevante das doutrinas com que instrui os Artilheiros, para seu Exame o Sargento mor Engenheiro, Jozé Fernandes Pinto Alpoyim, Cavaleiro professo na ordem de Christo..”

O frei Qualificador continua seus comentários para após outra autoridade religiosa dizer que:

“... pode imprimir-se o Livro de que se trata, e depois de impresso tornará para se conferir, e dar licença que corra, sem o qual não correrá.”

Posteriormente um bispo afirma:

“O livro intitulado Exame de Artilheiro, de que faz menção a petição inclusa, não contèm nada contra a nossa Santa Fé, e bons costumes, além de ser de grande utilidade para o conhecimento, e bom uso da Artilharia nos ataques, e defesa das Praças; e combates do mar. ...”

Então um arcebispo diz que:

“Vista a informação pode-se imprimir o livro, e tornará para se conferir e dar licença para correr.....

Há então a aprovação do Paço, onde um cavaleiro professo na Ordem de Cristo, Sargento mor e Engenheiro mor, diz:

Vi este livro ... tão útil a doutrina de que trata... que de graça se deve conceder ao Autor a licença, que pede, e tanto não contém cousa que encontre as maximas desta Coroa...”

A seguir vem a autorização de um cardeal:

“Que se possa imprimir vista as licenças do Santo Ofício, e ordinário, depois de impresso tornará á Mesa para se conferir e taxar, e dar licença, para que corra e sem ela não correrá...”

Estes trâmites ocorreram em novembro de 1743. Meio ano depois (maio de 1744), depois de impresso o livro retorna para conferência, licença do Santo Ofício, do Ordinário e do Paço, que o taxa em oitocentos réis em papel. Vale repetir que estes extensos cuidados eram para uma obra que oferecia noções de aritmética e de balística.

Os livros – e não necessariamente os de conteúdo religioso –, há não muito tempo, tinham (se considerarmos, mesmo hoje, algumas ordens e congregações religiosas, deveríamos usar o tempo verbal no presente) que passar por tribunais eclesiásticos que os examinavam para verificar se não continham nada contra a fé e os bons costumes. Se eram considerados passíveis de publicação recebiam o “imprimatur” isto é: imprima-se” e o “nihil obstat”, que significa “nada obsta” ou “nada há que cause embaraço à e/aos bons costumes”.

4 comentários:

  1. Caro Chassot,

    A dica deste sábado, pudemos manuesá-lo ontem em nosso seminário: é fantástico pelo cuidado do autor em buscar todas as liçanças e autorizações.

    Sempre que um livro é queimado dá uma dor na alma. Faz-me lembrar de um episódio acontecido comigo ao tempo da ditadura militar. Precisei queimar um livro, depois de ler, por receio de que se minha casa fosse revistada (e essas ações aconteciam de fato), seria preso imediatamente. Lamento muito aquela ação, com dor na alma, mas "eram aqueles tempos!"

    Um abraço,

    Garin

    http://norberto-garin.blogspot.com

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  2. Caro Chassot,
    Tuas dicas de sábado costumam surpreender, mas esta, além de inusitada parece ser uma preciosidade. Abraços, JAIR.

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  3. Meu querido colega Garin,
    numa noite que o Blogger me prega peças [já publicou a postagem agendada de domingo, com a dada e hora de amanhã) quero agradecer o comentário acerca da obra que curtimos juntos. A Gelsa, antes de conhecer teu comentário, lembrou algo similar a que evocas: ela colocou um saco com obras de Marx no Riacho Ipiranga.
    Que bom que vivamos novos tempos.
    Com admiração,

    attico chassot

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  4. Meu caro Jair,
    essa é uma obra que encanta a Bibliófilos como tu.
    Uma boa estada em San Diego,
    attico chassot

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