sexta-feira, 11 de março de 2011

11. – Sobre a composição de um prelúdio

Porto Alegre * Ano 5 # 1681

Meus amáveis leitores hão de relevar que transborde em emoções nesses dias. Concedam-me que a celebração que me envolve não é algo trivial. Neste domingo, completo 50 anos continuados como professor. Neste período só um semestre não estive em sala de aula: 2002/1, mas da Espanha continuei orientando mestrandos e doutorandos e lá dei alguns seminários. Houve períodos que pelas funções que ocupava (Coordenador do curso de Química ou Diretor do Instituto de Química) regimentalmente estava dispensado. Nunca usei desta regalia.

Já contei aqui: na segunda-feira entrego à Editora do Centro Universitário Metodista do IPA um livro onde amealho memórias. Tenho sido acarinhado por meus leitores com sugestão de nomes e desejando obter o livro.

Ainda teremos uns meses até estar em suporte papel. Por tal ofereço hoje, amanhã e domingo, o prelúdio. Fraciono-o em função do tamanho. Fico feliz em trazer essas primícias. Agradeço a cada uma e cada um que me acompanha nessa partição de emoções. Assim a ouverture, com votos de uma boa sexta-feira, que para mim terá a inauguração de mais um semestre do Seminário História e Filosofia da Ciência no Mestrado Profissional de Reabilitação e Inclusão, que neste semestre terá a parceria do Prof. Dr. Norberto Garin.

Tento compor um prelúdio. Esta ouverture se faz paradoxal. Ela é escrita para dar o tom a 51 capítulos que estão amealhados a seguir. Muito provável será lida por primeiro, mesmo que eu a tenha escrito por último.

Há algo que aflora fértil para trazer nesta apresentação: justificar-me por escrever um livro de memórias. Primeiro é reconhecer que as memórias de alguém que há 50 anos é professor mereçam ser compartilhadas. É natural que isso traduz certa dose de vaidade. Acredito que não tenha feito uma narração tradicional, procurei ruínas de narrativa, fiz uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas, portanto uma renovação da problemática da memória. Talvez, guardei na figura do narrador um aspecto mais humilde; muito menos triunfante.

Ajuda-me o filósofo e sociólogo alemão Walter Benjamin (1892–1940) que, como crítico literário destaca que a experiência, no sentido forte e substancial do termo, repousa sobre a possibilidade de uma tradição compartilhada por uma comunidade humana, tradição retomada e transformada, em cada geração, na continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho, de mestre para discípulo. Foi por isso que escrevi este livro. Talvez a máxima: quando morre um velho é como uma biblioteca que queima, citada de vez em vez, em outros textos, foi balizadora de escrevinhares. Tememos deixar rastros, mas faze-lo é preciso.

Jeanne Marie Gagnebin1, ancorada em Benjamin, destaca a “importância desta tradição no sentido concreto de transmissão e de transmissibilidade ressaltada pela lenda muito antiga do velho vinhateiro que, no seu leito de morte, confia a seus filhos que um tesouro está escondido no solo do vinhedo. Os filhos cavam, mas não encontram nada. Em compensação, quando chega o outono, suas vindimas se tornam as mais abundantes da região. Os filhos então reconhecem que o pai não lhes legou nenhum tesouro, mas sim uma preciosa experiência, e que sua riqueza lhes advém desta experiência”. Neste livro tento fazer tessituras com memórias de experiências. E eis minha pretensão, penso que as experiências são significativas para se fazer delas legado. Por tal as faço livro.

Brinco – marcado por minha imensa dificuldade de me desvencilhar de qualquer papel (um envelope subscritado vazio, uma entrada de cinema, um bilhete de aluno...) – que devo ter sido lixeiro em outros páramos, pois de vez em vez me seduzo diante de algo que está no lixo e preciso conter-me para não recolher. Gagnebin, na referência citada, traz de Benjamin a imagem de que o narrador também seria a figura do trapeiro, do catador de sucata e de lixo, essa personagem das grandes cidades modernas que recolhe os cacos, os restos, os detritos também pelo desejo de não deixar nada se perder, de não deixar nada ser esquecido. Este livro tem um pouco do filme “Lixo Extraordinário” um recente premiado documentário brasileiro. Este livro foi produzido com pedaços inservíveis, rascunhos descartados, trapos que propiciaram bricolagens, restos que produziram assemblages.

O renomado amazônida Milton Hatoun2 ensina que “Aquilo que existiu realmente não faz mais sentido. Porque a memória é uma recriação do passado.” A partir de um determinado momento nossas lembranças (re)tornam em movimento imaginário. Cada vez que voltamos ao passado ele é outro. A escrita cristaliza um pouco o passado, pois cada leitor em outra (re)leitura o colore diferente. Há um saber primevo que diz com competência: Quem conta um conto, aumenta um ponto. Cada repensada faz o passado diferente. Essa é continuada sensação que me invade quando me fiz/faço escrevinhador destas lembranças. Isso traz dilemas.

1Jeanne Marie Gagnebin, professora de filosofia na PUC/SP e na Unicamp, publicou em 2004 “Memória, história, testemunho” em www.comciencia.br/reportagens/memoria/09.shtml.

2 PELLANDA, Luís Henrique (org.). As melhores entrevistas do rascunho. Porto Alegre: Arquipélago editorial, 2010, p. 202.

2 comentários:

  1. Boa noite, Professor!
    Super feliz pelo senhor e, ansiosíssimapelo livro!
    =]
    Pode deixar um separadinho pra mim, viu?!
    hehehe!
    Um forte abraço!!

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  2. Muita querida Thaiza,
    leitoras como tu já tem um exemplar garantido.
    Obrigado por entrares de carona nas minhas alegrias.
    Um afago do

    attico chassot

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