quarta-feira, 2 de junho de 2010

02* Retornando a Rondônia.

Porto Alegre Ano 4 # 1399

Nesta manhã estou partindo para Rondônia. Já mirei muito o céu não ver fraudada a expectativa de decolar. Não pode haver atraso, pois tenho uma brevíssima escala em Brasília. Se os deuses que cuidam dos voos forem generosos e se tudo der certo como o programado estarei em Porto Velho para o almoço, fazendo essa manhã 2000 Km + 2600 km, viajando do paralelo 30º ao 8º, portanto na região equatorial.

Tenho uma agenda esta tarde e esta noite em Porto Velho e amanhã vou Ariquemes, que fica a 200 km onde tenho palestras amanhã e sexta-feira e mini-curso na sexta-feira e no sábado. Retorno à tarde, para estar de novo em Porto Alegre, quando o domingo estiver iniciando.

Volto a Rondônia depois de 35 anos. Estive no então Território Federal (Rondônia passou a categoria de Estado em 1986) de 6 de janeiro a 6 de fevereiro de 1975. Então participei como professor de Química no Curso de Licenciatura de 1º Grau, que a UFRGS mantinha no seu Campus Avançado de Porto Velho. Essa atividade era parte do Projeto Rondon – iniciativa do governo brasileiro, coordenada pelo Ministério da Defesa, em colaboração com a Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação – MEC. Criado em 11 de julho de 1967, durante a ditadura militar, o Projeto Rondon tinha como objetivo promover o contato de estudantes universitários voluntários com o interior do país, através da realização de atividades assistenciais em comunidades carentes e isoladas. Recordo, por exemplo, que várias universidades mantinham campi em áreas de fronteira e também mais carentes. Assim a PUC tinha em Taguatinga, Amazonas e a UFSM em Boa Vista, Roraima.

Foram dias memoráveis. Lamentavelmente, então, eu não fazia diário, como hoje, e não tenho como trazer evocações mais detalhadas. Sei que tive um caderno de apontamentos, mas este e as cartas que enviei para os meus não foram localizados. Recordo que fiz um texto que foi publicado em algum órgão da UFRGS. Então não havia os arquivos eletrônicos como hoje. Encontrei apenas uma página de relatório das aulas e nada mais. Assim hoje me faço memorista no sentido pleno. Talvez após as atividades que se iniciam esta tarde possa ser mais fértil.

Houve um grupo de cerca duas dezenas de professores selecionados pela UFRGS para lecionar, em diferentes etapas em um curso de Licenciatura para diferentes áreas. Eu fui escolhido para lecionar Química. Lembro de poucos nomes que estavam na mesma etapa que eu: Cícero Marcos Teixeira, que me escolheu para ficar no mesmo quarto que ele, pois não fumávamos, Airton Negrine, Arines Ibias, Arlene Bohn e Luiz Oswaldo Calvete Correa. Recordo outros nomes, mas não os menciono, pois não tenho certeza. A assessora Pedagógica era a Professora Norma de Lúcia Ferreira e o Coordenador do Campus era o Professor Carlos Miranda Garcia. Recordo que houve algumas reuniões preparatórias em Porto Alegre.

Mas as emoções fortes se iniciaram com a viagem aérea. Recordo que partimos da Base aérea de Canoas, em um DC-3 da FAB. Era talvez a minha segunda viagem de avião.

Em maio de 1971 eu fora ao Rio de Janeiro, em atividade ligada a cursos de noivos do Movimento Familiar Cristão. Havia também estudantes integrantes do projeto Rondon, que iam a Rondônia para atividades não ligadas a licenciaturas. A viagem era uma operação militar. Fomos a Cuiabá, de onde partimos, como previsto, só no dia seguinte. Não recordo onde dormimos (hotel ou quartel), mas sei que a janta foi num quartel, pois recordo que quando a viatura militar estacionou num reservado ao comandante, indicado pela sigla CMT, o Cícero que estava comigo chamou a atenção dizendo que o lugar já estava indicado para ele, pois tinha a sua sigla. No dia seguinte, no mesmo DC3, voamos a Porto Velho. A propósito de viagem, a volta foi diferente. Recordo que houve muitas dificuldades para sermos recambiados a Porto Alegre. Voltamos em um avião Búfalo, onde a carga entrava pela parte inferior do bojo. A primeira etapa foi até São Paulo, onde fomos alojados no estádio de futebol Pacaembu e no dia seguinte, (ou à noite) tomamos um ônibus de linha para Porto Alegre.

Em Porto Velho fomos instalados em dependências que Campus Avançado possui nas proximidades do quartel do 5º BEC, onde participávamos de horas cívicas pela manhã com hasteamento de bandeiras e cântico do hino nacional. Em troca também podíamos, em certos horários fruir da piscina.

As aulas eram em colégio na cidade no turno da noite. Agora, socorre-me a única folha de um relatório datilografado que encontrei. “Catorze alunos cursaram a etapa. Todos dotados de excelente interesse pela disciplina, mas quase a totalidade despreparada para cursar uma disciplina de Química em nível de 3º grau [como se chamava o nível universitário] [...] O curso era intensivo, e era visível o cansaço das pessoas em atividades que exigem 50horas semanais, que juntadas a outras obrigações extraclasse aumentam ainda mais o baixo rendimento. As atividades programadas foram todas trabalhadas, com exceção da última unidade ‘Noções de bioquímica’. Aos conteúdos foram adicionadas noções de Química Analítica Qualitativa com parte prática no Laboratório de Análise de Solos.”

Duas observações acerca da transcrição acima: A) Anos depois, enquanto professor de Pratica de Ensino de Química, exemplificava o ocorrido em Rondônia, como um contra-exemplo acerca da preparação de aulas: levara programada as 45 aulas sem conhecimento prévio da turma, para constatar que mesmo depois de minhas aulas (em nível universitário) os estudantes não tinham os conhecimentos mínimos exigidos nos exames de ingresso ao curso superior. B) Então, mesmo já estando no 15º de magistério, era um professor bitolado pelo regime de exceção que vivia o país e acreditava na neutralidade da Ciência e até via nisso um facilitador para conviver com época; meus colegas da área das humanidades tinham que cuidar com o que falavam em aula, eu bastava que ensinasse Química (sem qualquer preocupação com a construção da cidadania. Provavelmente foi meu envolvimento com a formação de professoras e professores para acampamentos e assentamentos do MST que afortunadamente me modificou para que passasse a defender a dimensão política do ensino.

Devo reconhecer que na avaliação soube superar-me (era a época aluno de mestrado e minha dissertação era sobre avaliação), pois, eis o que encontro no único registro escrito que possuo: “Os 14 alunos foram aprovados e os conceitos foram distribuídos em função dos resultados obtidos nas diversas avaliações: 3 alunos conceito A, 7 conceito B, e 4 com C.”

No documento que possuo registrava no encerramento do relatório, que ainda em Porto Velho entreguei para a Coordenação: “A grande deficiência notada na atual etapa [...] foi a desatenção da Universidade na orientação dos professores que se destinam à Licenciatura. A Universidade deveria, através das comissões de carreira selecionar e orientar os professores. Há uma grande descontinuidade entre os trabalhos realizados nas diversas etapas. [...] As diversas distensões Campus versus Licenciaturas prejudicaram e continuam prejudicando o espírito de uma comunidade universitária. Quando se tem nos campi avançados uma excelente atividade extra-muro na entendemos porque a dissociação entre a licenciatura e o Campus. Resta a esperança que para as etapas futuras a Universidade realmente assuma os cursos que implanta fora de sua sede.”

Ao lado desse minguado registro acadêmico de minhas aulas em Porto Velho, essa viagem de hoje me faz cavoucar em embolorados escaninhos memoriais algo mais daquele mormacento verão de 1975.

Em uma ou duas oportunidades fomos a uma mina de cassiterita, riqueza mineral da região para a produção de estanho. Dois detalhes então me chamaram atenção: Primeiro, sendo a floresta perenifólia, o solo não tem muita densidade de matéria orgânica e parte umidificada não é espessa. Assim a remoção da floresta para abrir minas a céu aberto cria regiões desérticas. Vale dizer que motosserra foi o artefato tecnológico que mais vi a venda em Rondônia. Segundo, pareceu-me gritante as diferenças de habitações nas vilas de mineração. Engenheiros e pessoal administrativos moravam e casas dotados de muito conforto, com aparelhagens tecnológicas sofisticadas, trazidas da Zona Franca de Manaus, enquanto os operários moravam em barracos onde parecia que o único artefato que tinham era mosquiteiros.

Uma tarde de domingo fomos convidados pelo Coronel-governador para fazer um lindo passeio de barco pelo rio Madeira. O anfitrião estava adequadamente instalado no camarote governamental. Nós humanos sorvíamos tacacá durante o passeio e de tempos em tempos descíamos para contato com populações indígenas ribeirinhas e tal como os primeiros colonizadores adquiríamos colares e pulseiras produto da artesania do grupo.

Tivemos também uma visita ao Summer Institute of Linguistics onde conhecemos o trabalho de um grupo missionário estadunidense na tradução da Bíblia para uma das línguas nativas da região. Visitei também um museu da missão salesiana da Prelazia.

Recebi de um padre algo que ainda guardo: um estojo em que 12 pequenos cilindros de aço já então bastante oxidados, onde se diz conter oxigênio comprimido, que era usado para resfriar a bebida dos ingleses, durante a construção da ferrovia Madeira-Mamoré. Aliás, a visita ao museu da trágica construção desta ferrovia foi importante ao filho do ferroviário. Esta ferrovia construída entre 1907 e 1912 para ligar Porto Velho a Guajará-Mirim esta há muito desativada. Esta ficou conhecida à época como a "Ferrovia do Diabo", devido à morte de milhares de trabalhadores durante a construção, causada, sobretudo por doenças tropicais, complementar à lenda de que sob cada um de seus dormentes existia um cadáver.

Ao lado dessas atividades extra, realizadas como os colegas envolvidos na licenciatura, fiz dois passeios por minha conta. Houve obediência a normas que não podíamos nos ausentar para viagens sozinhos. Em um fim de semana fui de avião à Manaus e em outra de ônibus a Guajará-mirim.

Em Manaus, à época havia uma atração que fazia a capital do Amazonas irresistível: a Zona Franca de Manaus (ZFM) criada em 1967 com o objetivo de estimular a industrialização da cidade e sua área adjacente, bem como ampliar seu mercado de trabalho. Trata-se de uma área de livre comércio, em que não são cobrados impostos de importação sobre os produtos comprados no exterior. Eu também fui seduzido a Meca do consumismo de então. As lojas me deslumbraram, havia produtos importados de toda a parte adquiridos sem impostos. Era o primeiro boom dos artefatos tecnológicos resultantes da miniaturização e do transistor que se seguiu ao lançamento do Sputnik em 1957. Recordo algumas compras: pijamas chineses para o Bernardo e o André, então com 4 e 6 anos, que também ganharam outros brinquedos eletrônicos. Um aparelho de jantar de plástico (não existia ainda fabricação nacional; este parece que era de Twain) com lindos girassóis. Comprei então meu primeiro rádio-relógio, que não era digital e sim mecânico, com a novidade: tinha FM. Mas ao lado das compras, recordo de pelo menos dois grandes investimentos culturais: o Teatro de Manaus e o encontro das águas.

O teatro de Manaus foi talvez uma das primeiras jóias arquitetônicas que eu visitei de

maneira muito embevecedora. Ele é um belo teatro brasileiro, o segundo maior da Amazônia (superado apenas pelo Teatro da Paz, em Belém, que também já estive). O teatro, inaugurado em 1896, é uma das expressões mais significativas da riqueza criada na região, durante o rico ciclo da borracha. Fui também ao Encontro das Águas – que muito estudara em aulas de Geografia – um fenômeno que acontece na confluência entre o rio Negro, de água negra, e o rio Solimões, de água barrenta, onde as águas dos dois rios correm lado a lado sem se misturar por uma extensão de mais de 6 km. Esse fenômeno acontece em decorrência da diferença entre a temperatura e densidade das águas e, ainda, à velocidade de suas correntezas: o Rio Negro corre cerca de 2 km/h a uma temperatura de 22°C, enquanto que o Rio Solimões corre de 4 a 6 km/h a uma temperatura de 28°C. Em estada mais recente em Manaus fui ver de novo essa atração. Na primeira estada em Manaus conheci igarapés e a flor vitória-régia.

Ainda de Manaus um registro prosaico, de minha cafonice de então, ou melhor, do quanto era bitolado pela minha militância igrejeira. Na pensão que me hospedei, estavam também dois estudantes que vira começar o namoro uns dias antes no campus em Porto Velho. O carola escandalizou-se por eles dormirem juntos no mesmo quarto. Certamente lembrei-me de uma admoestação atribuída a Pio XII, que fazia em minhas aulas nos cursos de noivos que me envolviam: “Os frutos comidos verdes jamais amadurecem e sempre deixam um gosto amargo. Oh tempora! Oh mores! Do discurso de Cícero a Catilina: Oh tempos, oh costumes!

Outro de meus passeios foi a Guajará-mirim distante 380 km de Porto Velho. Tive como companhia Arlene Bohn, uma professora de Geografia. A viagem foi de ônibus, no trecho onde jaz abandonada a ferrovia do inferno. Guajará-mirim, que em Tupi-guarani significa “Cachoeira Pequena” fica frente a frente a Guayaramerín, uma cidade da Bolívia, localizada no departamento de El Beni. Atravessamos o Rio Mamoré e estávamos na Bolívia. Visitamos pontos turísticos é fomos de ônibus até Riberalta a uma distância de 93 km, onde nos entrevistamos com autoridades educacionais. O pernoite foi em Guayaramerín, foi a primeira noite no exterior. No dia seguinte voltamos a Guajará-mirim compramos artesanatos indígenas em uma tribo; tenho ainda um filhote de jacaré empalhado de cerca de uns 40 cm desta viajem. Também tivemos que nos apresentar a autoridades policiais para mostrar que não portávamos droga.

Estas são algumas evocações que se espraiaram por espaço maior. A partir desta tarde elas deverão se adensar mais um pouco quando reencontrar Porto Velho depois de 35 anos. Parto levando 150 exemplares do A Ciência é Masculina? para Ariquemes. Já em abril remetera 70 exemplares autografados com dedicatórias pessoais para Porto Velho, Rondônia. O professor que terá nessa jornada seis falas de hoje até sábado é muito diferente daquele que deu umas aulas de Química em 1975. Isso é bom.

Assim amanhã nos lemos de Porto Velho. Até então.

4 comentários:

  1. Muy querido Profesor Chassot,
    Me quedo sin palabras y sin aliento después de admirar su precioso relato, tan lleno de detalles en sus recuerdos. No sólo prueba ser un fantástico memorista con alma de bibliotecario (¿dónde conserva tantos apuntes?), sino también un magnífico escritor, con una mirada sociológica-intimista que logra meternos en la época. Ya en otra oportunidad le he comentado que tiene alma de escritor, reitero esta apreciación.
    ¡Que tenga una excelente estadía en Rondônia llena de éxitos y nuevos recuerdos!

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  2. Estimada Matilde,
    obrigado por teu tão querido comentário. Cheguei a Porto Velho com uma hora de atraso. Tenho apenas 20 minutos de passagem no hotel ~~ com internet precária ~~. Amanhã conto no blogue das tensões vividas no aeroporto de Brasília esta manhã.
    Uma vez mais obrigado,

    attico chassot

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  3. Mestre, seu relato me fez conhecer um pouco mais da história da educação em meu Estado> Sou aluna do curso de Química pela Unir e tive o prazer em assistir as suas palestras na quarta-feira.

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  4. Obrigado Katara,
    Que bom que valeu a pena tua visitação ao blogue.
    Reitero o convite de aparecer aqui de vez em vez
    Com estima
    attico chassot

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