domingo, 23 de maio de 2010

23* Memórias de um sineiro

Porto Alegre Ano 4 # 1389

Já contei aqui, mais de uma vez, que pretendo celebrar o vindouro 13 de março – data que completo 50 anos de magistério – com o lançamento de um livro de memórias. Já tenho amealhado um bom número de capítulos. O livro poderia chamar-se como umas das obras de Pablo Neruda: ‘Confesso que vivi’. Parece que tal título não caberia se seu autor fosse alguém menos anoso. Quando agora redijo esse texto, penso que essa trazida poderá estar no futuro livro.

Não busco explicações para minha ligação com sinos. Talvez eu fora em outra vida Quasimodo, o sineiro de Notre Dame, apaixonado pela cigana Esmeralda, na comovente história de Vitor Hugo. Confesso que uma vez, quando ensaiava a ascensão a torre da magnífica catedral parisiense, acreditava que ia encontrá-lo.

Não é sem razão que em uma das entradas ao meu scriptorium haja um sino,alegria dos netos que se encantam em badalá-lo. Sempre ouço o repicar de sinos sou tomado de emoção – ¿ou serão culpas? por não atender a chamados. Os sinos marcaram minha infância. Lembro, quando tinha talvez 7 anos, da Dona Helga – morava em frente a nossa casa na rua Flores da Cunha 118 – quando não se deixou encantar pela proposta do Reverendo Bernhoeft – figura muito querida, sob as ‘bênçãos’ de quem iniciei o magistério – de conversão à igreja episcopal pois esta não teria sino para dobrar finados quando ela morresse.

Recordo tempos em que os sinos marcavam momento de se rezar o ‘ângelus’ às 6h, ao meio dia e às 18h – quando os ponteiros do relógio se perfilavam apontando para infinito, como dizia olocutor da hora da ave-maria, na ZYY-8. O toque das ‘ave-marias’, que muitas vezes executei enquanto coroinha consistia em três sequências de três badaladas solitárias, para terminar com um repicar contínuo. Rezava-se então uma oração que iniciava assim ‘O anjo do senhor anunciou a Maria...’ No chamado tempo pascal esta oração era outra: ‘Rainha dos céus, aleluia...’ Pergunto-me se ainda hoje essa prática continua. Penso que nem mais se badalam as ‘ave-

marias’. Os sinos da igreja da Piedade – vejo-a de minha casa – tocam, com impontualidade, a cada dia, em torno das 17h30min.

Lembro muito de minha mãe, quando ouvíamos um sino fora do horário: “Morreu alguém! E se podia distinguir, pelo timbre do sino que ressoava se era adulto ou criança. Mesmo que não se soubesse quem fosse o finado (e se levantava hipóteses entre os doentes conehcidos, parávamos e rezávamos: “Dai-lhe Senhor, o descanso eterno! A luz perpétua o ilumine! Descanse em paz. Amém!“ Se o sino anunciasse uma criança, havia a afirmação: “Mais um anjinho que foi para os céus!” Trago esse relato de minha infância, no final da segunda metade do Século 20 (que é o século de cada uma e cada um de meus leitores), mas me soa como se falasse de tempos medievos.

Além de minhas ações de sineiro de eventual que referi acima, no dobre das ‘ave-marias’, em substituição ao Ari, que morava junto com o vigário na casa paroquial da

igreja matriz de São João Batista de Montenegro, evoco duas situações em que exerci o mister não como substituto, e sim como titular.

Uma vez, ainda quando morava na rua Flores da Cunha, antes referida, fui encarregado de anunciar uma pregação de missionários Redentoristas na Capelinha do Rosário, que ficava próximo onde morávamos. Da capela me lembro pouco, tão esboroada está na minha memória; nem tenho certeza que tenha existido. Mas de seu campanário, parece que era imponente. Assumi a missão de tocar o sino para chamar a comunidade, talvez nos meus nove anos. Dizem que entusiasmei e toquei o sino toda a manhã. Acredito que exageram os que dizem tal, pois nem foi por meia manhã. Mas devo ter batido todos os recordes de toque de sino naquela singela ermida. Não sei também se veio alguém para a pregação.

Cerca dez anos depois, já aluno do Colégio Júlio de Castilhos, tive outro feito memorável. Quando da morte do Papa Pio 12 (que governou a Igreja entre 1939 e 1958), os sinos das igrejas católicas deviam dobrar finados, a cada hora cheia. Eu trabalhava no bar Caçula, na rua Ernesto Fontoura esquina avenida Eduardo (como era conhecida a Presidente Roosevelt). A cada hora deixava meu posto no bar, para desgosto do Joventino que me chefiava e assumia o sino da igreja de Nossa Senhora do Monte Claro – a igreja dos poloneses, vizinha do bar – e fazia pungente dobre de finados pelo papa morto. Quem me designara para aquela muito honrosa distinção fora o Pe. João Piton, capelão da comunidade dos poloneses. Ele era companheiro de reza do breviário (código para esconder o jogo de canastra) de meu tio Arnaldo, dono do bar, com quem eu morava. Como 10 anos antes, os vizinhos com razão protestaram.

Foi bom com essa essas lembranças ter feito tessituras que agora se transformaram nesta blogada dominical. Adito votos de um bom domingo, na expectativa de que amanhã iniciemos uma nova semana muito produtiva (até por que o dia de hoje não é considerado dia útil, logo dado a não ser produtivo).

2 comentários:

  1. Mestre! Não sabia dessa tua atuaçao como SINEIRO. Mas, por certo, esse instrumento de anuncios foi durante muitos anos um poderoso instrumento de comunicaçao, e até mesmo de coerção. Morei certa feita numa pequenina cidade a 40km de Curitiba (chamada Mandirituba, que significa lugar onde há muitas abelhas), onde o sino anunciava os horarios de 18hs, e muitas vezes, fazia um toque de anunciaçao funebre. Eu que já acostumara com cidades grandes, naquela época me pus nostalgico ao ouvir o sino e imaginar o que pensava o sineiro. Abraços JB

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  2. Meu caro Jairo,
    que bom que as memórias de um fugaz sineiro tenha te levado a uma cidadezinha onde se diz abundar as abelhas, para recordares o sino da comunidade.
    Está bem posta tua leitura de historiador ao evocar o quanto os sinos foram instrumentos de comunicação e também de opressão.
    Como hoje é o indicador das horas no cantinho direito em baixo do computador que diz “Tempus fugit’ em épocas não tão distantes éramos sinos que faziam isso.
    Um bom saldo de fim de semana e parabéns pela tua blogada semana que visitei nesta madrugada.

    attico chassot

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