Porto Alegre Ano 4 # 1276 |
A lua ainda soberana nos céus invade recônditas alcovas. Vivemos o ocaso de um mês que além de ter iniciado com feriado nos brinda com cinco fins de semana. Para os porto-alegrenses, com a próxima terça-feira feriado (também em outros municípios brasileiros) há uma possibilidade de um feriadão, invisível para quem está de férias.
Hoje se diz ser o dia nacional da literatura em quadrinhos. Quantas lembranças da infância. Quantas curtidas ainda hoje de uma tira diária nos jornais. Dou-me conta que aí está um assunto para remexer em baús e tentar responder por que na casa meus pais esse artefato cultural esteve sempres no índex das leituras proibidas.
Neste quinto sábado a dica de leitura é uma vez mais o livro lido na semana, assim como ocorreu nas três primeiros sábados com a tríade de Maximo Górki, que ainda está dentro de mim: dia 2, Infância e no dia 9, Ganhando Meu Pão e 16, Minhas Universidades. No sábado passado, Indignação de Philip Roth. O autor de hoje, como Roth, tem estado sempre em listas de cotado para o Nobel de literatura. Se eu fosse eleitor, Amós Oz teria meu voto com louvor e com muita precedência a Roth.
Assim, desta recomendação sabatina, a ficha bibliográfica, algo do autor e do livro.
OZ, Amós. “Cenas da vida na Aldeia”. [Original hebraico: Tmunot mechaiei hakfar (Scenes from village life. Tradução do hebraico: e notas Paulo Geiger] São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 181p. ISBN 978-85-359-1541-9
FOTO Amós Klausner nasceu em Jerusalém em 1939. Como menino judeu acompanhou as dores de seu povo no Holocausto, particularmente na Polônia, terra natal de sua mãe; depois o cerco de Jerusalém em 1948, antes de o exército britânico se retirar da região para surgir o Estado de Israel. Aos doze anos perdeu a mãe, numa situação dolorosa que permeia, repetidamente por centenas de páginas e, na radicalidade da perda, troca de sobrenome Klusner para Oz (que em hebraico significa ‘coragem’). Viveu em um kibutz, onde descobre o amor, primeiro com uma professora de quem podia ser filho – já havia sido perdidamente apaixonado por sua professora da segunda série do ensino fundamental –, e depois com a filha do bibliotecário – profissão de seu pai – que se tornará sua esposa e mãe de seus filhos.
Na literatura, porém, seu engajamento político assume outra forma – mais essencial. Oz trata os conflitos do país por meio de momentos triviais e cotidianos. Consegue, assim, retratar a psicologia da guerra pelas características de seus personagens. Isso faz dele um escritor extraordinário. Não há, em seus relatos, menção aos “grandes problemas”. Mas eles estão lá, traduzidos como um ruído de fundo que impregna a vida de todos. Oz é um pacifista. Foi um dos fundadores do Movimento Paz Agora. Sempre defendeu uma solução negociada para o conflito do Oriente Médio.
Quando me encantei com “De amor e trevas” um romance autobiográfico, contei aqui, antes de termos as resenhas sabatinas como Amós Oz nos leva a conviver por cerca de 60 anos em Jerusalém para acompanharmos sua infância de menino pobre, a juventude como kibutzinik e a maturidade como um dos mais renomados escritores em hebraico. Para mim, que nasci no mesmo ano que ele, a leitura foi extremamente facilitada nas tomadas cronológicas.
Agora algo de “Cenas da vida na Aldeia”. Trata-se de um conjunto de sete crônicas independentes seguidas de um pequeno encerramento. Todos os sete relatos ocorrem em Tel Ilan, uma aldeia centenária - o que em Israel significa quase pré-histórica -, entre o fim do verão e o início do inverno, histórias diferentes se desenrolam paralelas, enquanto seus protagonistas se cruzam transversalmente como figurantes em histórias alheias. No cenário, recorrentes ciprestes esguios e escuros, a beleza campestre de uma Toscana israelense, o tórrido calor das tardes de verão, as primeiras chuvas e tempestades do inverno, chacais e cães em duelo orfeônico nas noites, as mesmas ruas, as mesmas praças, os mesmos pontos de referência, plácidos em sua imobilidade de guardiães de rotinas cotidianas, de doces e amargas reminiscências, do amor e do desespero, de mistérios, de personagens que surgem do nada e nele desaparecem, ou de pessoas com raízes firmes que somem sem deixar rastro.
O trivial e o insólito se cruzam tal como os personagens, eles mesmos testemunhas da aventura do viver. Em 'Cenas da vida na aldeia', Amós Oz se atém à simplicidade das pessoas, dos acontecimentos, das paisagens corriqueiras que se repetem e se cruzam para, a partir deles, abrir diante do leitor a cortina de outro mundo possível.
Minha sensação a cada uma das sete histórias. Remetia-me talvez a maior impacto cultural que tive há muito em Florença. Muito me impactaram as estátuas ditas inacabadas de Michelangelo, onde parece que vemos aflorar a estátua que o mármore escondia. Aqui não há como não imaginar - e o verbo é prenhe no seu significado: fazer imagens - Sócrates, ao nos propor a maiêutica, inspirado na mãe parteira e no pai escultor. Pois ao terminar cada uma das sete crônicas me quedava estático imaginando um (desejado) final.
Um comentário de cada das sete crônicas, sem a pretensão de contar histórias. Talvez um bom exercício seria escrever um dois parágrafos acerca dos prováveis finais. Tirar assim um pouco mais do excesso de mármore para exercitar a profissão da mãe de Sócrates.
Em “Os que herdam” acompanhamos o (não) diálogo do advogado Wolf Maftzir com Arie Tslnik que não são tão estranhos e nos pusemos imaginar as razões da visita que este recebe.
Na segunda crônica: “Os que são próximos” torcemos para que doutora Guili Steiner, médica da aldeia, receba a esperada visita de um sobrinho adoentado, o soldado Guid’on Gat, que nunca chega.
Em “Os que cavam”, talvez o texto bem elaborado temos gana do ex-deputado Pessach Kedem, viúvo e rabugento, que vive com a filha Rachel. Está sempre às turras com Adel, estudante palestino para quem a filha aluga um quarto, nas montanhas de Menashé.
Na narrativa que se constrói em “Os que se perdem” torcemos para que a sedutora Iardena, filha de famoso falecido escritor de Tel Ilan que mostra a velha casa a Beni Avni, possível comprador se envolva com possível comprador.
Na crônica “Os que esperam” acompanhamos o desespero de Beni Avni que procura a esposa em uma tarde de sexta-feira; a professora mandou apenas um recado: “Não se preocupe comigo”.
“Os que são estranhos” é, a meu juízo, a crônica mais bonita, não há como não se encantar com a paixão de Kobi Ezra, que nos seus 17 anos se apaixona por Ada Davsha, funcionária da agência de correio e bibliotecária da aldeia de Tel Ilan, que tem o dobro de sua idade do menino. Numa cena da biblioteca, uma das usuárias reclama de um escritor que faz sucesso, mas que ‘repete muito’, no provável auto-crítica de Amós Oz, pois ele repete muitas informações em seus livros.
A última crônica: “Os que cantam” é quase uma reunião da maioria dos personagens dos seis relatos anteriores em sarau de cantos populares israelenses e russos. Para mim o menos agradável dos sete.
O texto de encerramento “Longe dali, em outro tempo”, de meia dúzia de páginas parece tentar fazer uma síntese (psicológica) do texto. Para mim dispensável.
Cenas da vida na Aldeia tem no Brasil uma muito bem cuidada edição pela Companhia das Letras. Do autor já foram editados, pela mesma editora: Conhecer uma mulher (1992), Fima (1996) Não diga noite (1997), Pantera no porão (1999), O mesmo mar (2001), A caixa preta (2001), Meu Michel (2002) e De amor e trevas (2005).
Nada melhor que desejar um bom sábado com uma sumarenta dica de leitura. Um convite para amanhã conhecermos a segunda obra da série iniciada no domingo pretérito. Até então