Um prelúdio muito especial
O primeiro blogue de outubro 2024 faz um esperado anúncio: dois colegas meus (Alessandra de Rezende Ramos, Santarém/PA & Nelson Marques, Natal/RN) e eu estamos produzindo um livro. Este novo livro será também distinguido pelo prefácio. A seguir se narra este detalhe.
Um prelúdio ou uma (quase) melancólica pavana.
Estávamos quase no final da produção de um livro dedicado a centenas de mulheres e homens e também crianças que morreram e ainda morrem, por intolerância religiosa no último milênio. Pensávamos em um prefaciador para nossa produção. Eis que na edição do último fim de semana de março de 2024, em jornal brasileiro que Leandro Karnal* é articulista há um texto — “A cruzada de dona Créssida" — que parecia caber como uma luva ao nosso livro. Por tal tínhamos de escrever ao autor dizendo que quase terminávamos um livro acerca do Index Librorum Prohibitorum e quiséramos fazer de seu texto prelúdio para nossa produção. Escrevemos, mas fomos gulosos.
* Leandro Karnal (São Leopoldo RS, 01 de fevereiro de 1963, 61 anos) Graduado em história pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e doutor pela Universidade de São Paulo (USP). É historiador, professor e escritor. Karnal tem publicações sobre o ensino de história, história da América e história das religiões. Hoje, no Brasil Karnal é um dos intelectuais mais apreciado e respeitado..
Eis como encerramos a nossa mensagem: “Se a tua resposta à nossa petição for sim, nos espraiamos na petição solicitando uma cópia em Word ou Google.doc. pois a Zero Hora não permite cópias de seus colunistas. Com agradecimentos. Expectantes.” Em menos de meia hora sabíamos a alvissareira resposta: “Será um prazer e uma honra ter meu texto associado. Um abraço Leandro” Junto estava uma cópia do texto em Word que agora aqui transcrevemos:
A cruzada de Dona Créssida
Leandro Karnal
Dona Créssida zelava pela moral da biblioteca escolar. Nesse colégio, as crianças e os jovens deveriam ler apenas coisas sem vulgaridades. A zelosa senhora jamais deixava de ler o que chegava e fazia o papel de “real mesa censória”: barrava obras que destruiriam a pureza dos alunos.
Enviaram a coleção completa de José Saramago. Na capa, a informação: Prêmio Nobel de Literatura. Pensava a bibliotecária: “E daí? Sou eu quem vou julgar este autor!” Começou a ler a História do Cerco de Lisboa. De repente, os olhos atravessaram os óculos e pousaram-se sobre o trecho: “(...) e súbito Raimundo Silva atirou a roupa para trás, ali estava Maria Sara, os seios, o ventre, o púbis alto, as coxas longas, e ele, sem vergonha, esquecido de medos, mostrando-se à luz, ainda que tão pouca, apenas o lençol branco brilhava como se inundasse o luar (...)” Púbis alto? Créssida fechou o livro com nojo e um tremor percorreu seu corpo magro: “Prêmio Nobel da bandalheira, só pode ser.” Juntou todos os livros do português e levou-os a uma sala anexa. Só ela tinha a chave daquele lugar. Lá, a censora empilhava tudo aquilo que fosse indecente e ofensivo. Tinha medo de jogar fora. Refletia: “Foram doações. Alguém pode reclamar”. Seu desejo era de poder queimar os livros no pátio, mas essas cenografias estavam ultrapassadas. Melhor o “quarto do olvido”, como ela chamou seu depósito de indecências.
Havia lido sobre a importância do autor Júlio Ribeiro. “Um mineiro e membro da Academia Brasileira de Letras deve ser um homem decente.” Tomou da estante o romance “A Carne”; foi crescendo o incômodo. De repente, chegou a um trecho culminante do Naturalismo: “Lenita ofegava em estremeções de prazer, mas de prazer incompleto, falho, torturante. Abraçando o fantasma de sua alucinação, ela revolvia-se como uma besta-fera no ardor do cio. A tonicidade nervosa, o erotismo, o orgasmo, manifestava-se em tudo, no palpitar dos lábios túmidos, nos bicos dos seios cupidamente retesados. Em uma convulsão desmaiou.” Dona Créssida imitou Lenita e teve um espasmo. Bicos dos Seios? Cio? Estremeções de prazer? Ela atirou a obra longe, com nojo extremo. Depois, com um lenço, pegou o livro de forma que suas mãos não tocassem a obra asquerosa e levou ao exílio do quarto anexo. O autor dedicava a obra ímpia a Émile Zola? “Devem ser da mesma laia” – concluiu a casta Créssida. Tomou todos os volumes do autor francês e despejou-os na zona de silêncio. “Aqui nunca irão perverter gente decente” – vociferou a zelosa leitora.
Um a um, os autores foram sendo transferidos: Jorge Amado, Eça de Queirós e Gustave Flaubert. Decidiu pegar um escritor mais recente, Jefferson Tenório, muito elogiado nos jornais. Estava lendo “O Avesso da Pele”, quando encontrou palavrões. “É demais! Eles só pensam nisto!” Lá se foi o literato para o quarto escuro. Buscando abrigo em mulheres, sentou-se com uma xícara de chá para ler Hilda Hist: “Muito mais limpas e decentes do que estes tarados!” – ela disse. Engasgou. Cuspiu. Afogueou-se por completo: “Uma velha tarada e pornográfica!” Assim, foi seu veredito.
Sua alma precisava de refrigério. Parece que os autores só conseguiam pensar em sem-vergonhices. Pensava nos alunos que supunha imaculados e puros tocando naquelas coisas nojentas. Precisava de paz e tomou uma linda edição da Bíblia: “Aqui terei paz!” Passou a ler o livro sagrado. Ainda no Gênesis, esbarrou-se nas filhas de Ló deitando com o próprio pai! Incesto? A ideia era insuportável. Porém... ela não poderia arremessar aquela obra na parede. Continuou. No primeiro livro do profeta Samuel, vê que Davi corta o prepúcio de duzentos filisteus. Era um presente para agradar ao sogro. Dona Créssida, em imaginação, viu a cena do corte, um a um. Por fim, o saco com prepúcios sendo aberto na frente do rei Saul. A bibliotecária não conseguiu superar as narrativas dos corrimentos sexuais do capítulo 15, em Levítico. Justamente ela, que jamais fora a um ginecologista. Nem a Bíblia era totalmente pura. Mais zelosa com a fé do que os autores sagrados, ela pegou todos os exemplares de Bíblia e levou-os ao abarrotado quarto secreto. Quase não havia espaço. Tudo ali exalava indecência, fornicação e impurezas. Ela se tremia inteira ao entrar. O sol estava descendo; havia pouca luz. Os livros pareciam ameaçá-la. Tinham um olhar de molestador. As capas e os nomes queriam possuir dona Créssida. Empilhou as Bíblias recolhidas ao alto e, assustada, desequilibrou-se da pequena escada. Bateu a cabeça no chão; as pilhas foram tombando sobre ela. Era sexta-feira. A escola foi fechada, mas ninguém notou a falta dela. Na segunda, a faxineira viu a luz acesa e foi ao ambiente. Lá estava, morta, Dona Créssida. Sufocada entre pornografias variadas, seu rosto agonizara sob uma grossa edição do Kama Sutra. Sobre seu sexo, alguns exemplares de Lolita. O mal vencera. A pura paladina do bem fora assassinada pela indecência contra a qual lutara tanto. Não houve esperança para ela.
Por que dona Créssida" tem a ver com o Index? Se o Index de Livros Proibidos (ou Index Librorum Prohibitorum, título na edição original latina) que agora a leitora ou o leitor começa desvendar é um doloroso marco da dor e da morte causado pela intolerância religiosa pode ser datado do Medievo a primeira metade do século 20, dona Créssida pode ser encarnada como uma cruel inquisidora medieval seu labor ainda é presente hoje.
Exemplificamos apenas com uma notícia do Brasil de Fato, do dia 11 de abril de 2024 (data que nós três burilávamos este texto) de um dos pontos de chacinas do Planeta Terra: “No último dia 7, o massacre realizado por Israel à Palestina completou seis meses. São quase 200 dias de ataques constantes, de recusa no fornecimento de medicamentos, água, mantimentos, ou qualquer tipo de ajuda mais permanente. Já faz meio ano do impedimento de um cessar-fogo, do desespero e da desesperança. Por um tempo, a palavra utilizada para o que está acontecendo em Gaza foi “conflito” - inclusive na redação do Brasil de Fato. Mas como é possível chamar de conflito uma situação em que só um lado ataca, em que nem 4% das mortes são deste mesmo lado, em que crianças e mulheres são mortas como parte de um processo de apagamento histórico com raízes coloniais?**
** Brasil de Fato <newsletter@brasildefato.com.br>
Quase o mesmo poderíamos dizer de muitos pontos conflagrados do Planeta em seus distintos continentes. Assim, e não estamos fazendo spoiler, o que o leitor encontrar no nosso Index não são relatos ‘daqueles tempos’. Muitas vezes nos perguntamos, quando de Sul a Norte nos encontrávamos apenas virtualmente, porque estamos reescrevendo isso? Não é apenas para recordar, por exemplo, o quanto a Igreja Católica Romana foi sanguinolenta ou que alguns papas foram assassinos. Também relatamos a intolerância religiosa ou da cor da pele, da orientação sexual e outras tantas mais. Elas (= as intolerâncias) estão presentes entre os nossos alunos e também entre nossos colegas e diferentes extratos sociais.
Assim escrevemos este livro, também para alertar que a dona Créssida pode morar ao lado…
Somos expectantes. Alessandra, A.chassot, Nelson
Intrigante
ResponderExcluirMeu querido mestre. De cara já fiquei extremamente curioso pela publicação. Esta temática bastante atual em tempos de Radicalismos extremos faz com que busquemos razões para estes ocorridos. Fica a expectativa. Abraço
ResponderExcluirComo sempre a frente de seu tempo mestre e amigo Chassot. O que tem acontecido na Faixa de Gaza é inadmissível numa era atual. Uma obra para ser lida e refletida com certeza. Abraços fraternais.
ResponderExcluirQue marvilha! parabéns pela iniciativa!!
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