sexta-feira, 18 de março de 2011

18.- Sete teses contra o trote estudantil

Porto Alegre * Ano 5 # 1688

Uma sexta-feira de agenda plena. Pela manhã, tenho, junto com meu colega Norberto Garin, a segunda sessão do seminário de História e Filosofia da Ciência no Mestrado Profissional de Reabilitação e Inclusão. A sessão começa com respigar (esta ação verbal promete uma blogada especial) da primeira aula. Tenho depois agendado almoço com meu trio ABC, de onde sigo direto para o aeroporto, para viajar para Campinas.

Esta noite faço profiro a aula Inaugural do Curso de Licenciatura Integrada em Química e Física, da UNICAMP. Retorno no primeiro voo de amanhã.

Permito-me, trazer – enquanto imerso esta noite em um ritual de entrada (muito diferente dos famigerados trotes) para jovens calouros de uma das universidades mais importante da América Latina –‘Sete teses contra o trote estudantil’. O repto ao trote é feito por Paulo Denisar Fraga, filósofo e professor do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas (MG). Autor de A violência no escárnio do trote tradicional. O texto está publicado em Uol Educação/Vestibular.

Vale ler cada uma das sete teses, que tem como prelúdio meus votos de uma excelente sexta-feira a cada uma e cada um de meus amáveis leitores, que vejo aumentar a cada dia.

1. Embora com possíveis expressões anteriores, é patente que o trote atingiu a sua época de ouro na Idade Média, durante a formação das universidades e da vida nas emergentes cidades europeias. De pronto, ele já representou uma prática de discriminação e negação do outro, na qual os estudantes provenientes dos centros urbanos atribuíam, aos que chegavam do meio rural, uma suposta bestialidade originária da qual precisavam ser “curados” por meio do “batismo de fogo” dos trotes. Até hoje apresentado como meio de integração dos estudantes, desde a sua origem a natureza dos trotes não integra. Ela segrega.

2. Todas as sociedades, desde as comunidades nativas, possuem ritos de iniciação que servem para introduzir e preservar, nos novatos, os valores do meio social em que estão ingressando. Por isso a questão não está em haver recepção e introdução dos estudantes, mas em saber de qual recepção se trata nos trotes tradicionais. Como tais, eles não servem para reproduzir os valores humanistas que caracterizam a tradição histórica das universidades. Ao contrário, eles são a sua negação escrachada, manifesta em atos de irracionalismo bufão e tosco. Por isso, em relação aos meios culturais e científicos, os trotes são um rito de passagem às avessas.

3. Desde Sócrates, as máximas “só sei que nada sei” e “conhece-te a ti mesmo” ensinam que a sabedoria está no reconhecimento dos limites do próprio saber, e que a situação do “saber menos” ou do “não saber” deve ser tratada positivamente, no sentido de que o conhecimento é um processo sempre contínuo e inconcluso. Contudo, o trote menospreza os novatos justamente pela suposição de seu saber ser menor enquanto novatos. No trote o limite do saber não é base para a abertura do processo de formação, mas para o deboche e a execração. Mandonistas e infensos ao senso crítico, os trotes são a negação da essência da relação pedagógica.

4. A alegada aceitação do trote por muitos estudantes não escapa ao enigma da servidão voluntária, que pode ser destrinchado pela dialética hegeliana do senhor e do escravo, na qual este internaliza os valores do senhor e passa a pensar que o que é ideal para o senhor também é ideal para ele, escravo. E quando percebe que o senhor o oprime, teme lutar pela liberdade porque imagina se expor a retaliações do senhor. Essa é uma das razões pelas quais dezenas de alunos declinam de dizer não para quatro ou cinco que lhes aplicam o trote. Esse medo prova que o trote se sustenta na ameaça e na perspectiva da violência.

5. A ideia que considera o trote apenas como uma brincadeira que, como tal, não contém maior problema, ignora que o brincar está ligado ao processo de humanização, enquanto o trote não passa de um evento de barbarização das relações humanas. Uma criança protesta quando dela é apartado um brinquedo, revelando os valores simbólicos do homem. Mas no trote o homem deixa de ser sujeito para ser o próprio objeto. E seu único valor é o de escárnio. Donde não admira que a nobreza do “homo ludens” seja rebaixada à miséria de “animais de rebanho”. O trote perverte o sentido da alegria em diversão por subjugar o outro.

6. Histórica e socialmente, os trotes se assentam na divisão hierárquica entre trabalho intelectual e manual e numa visão egoísta da educação formal como meio privado de ascensão social. As aberrações desfiladas pelas ruas espelham indiretamente a perspectiva elitista de superioridade dos futuros “doutos” frente ao cidadão que não teve a mesma oportunidade. E a sobrevalorização fragmentária de cursos nesses rituais solapa a concepção universal e interdisciplinar da universidade. Sua finalidade é entrevista pela viseira de um particularismo corrosivo e antissocial. Numa palavra, os trotes são a expressão e o reforço da estratificação social.

7. Nas recepções alternativas, não só o termo “bicho”, mas também o termo “trote” precisa ser superado. “Bicho” porque denota a mesma necessidade psicológica já conhecida na justificação das investidas militares, que necessita primeiro desumanizar o outro para depois submetê-lo à violência e até à destruição. E “biXo”, com “X”, só assinala aquele que está marcado. Já “trote” por se achar impregnado de um sentido intrinsecamente negativo, marcado pela ideia de enganar ou manietar alguém. Nos seus longos séculos pelos campi, os trotes não são só violência física, mas também simbólica e, talvez, tenham sido a primeira forma de bullying na educação.


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