sábado, 31 de março de 2012

31.- A DICA SABÁTICA: RIO DA DÚVIDA



Ano 6***  Frederico Westphalen / Porto Alegre  ***Edição 2068
Como na edição de ontem esta é postada, quando recém deixei Frederico Westphalen, devendo chegar a Porto Alegre por volta das 6h. Foi uma sexta-feira de três turnos que valeram a pena, mesmo que imprensados entre duas noites a bordo.
Nas idas/vindas Hotel/URI/Hotel e também em uma circulada após o almoço encantou-me a decoração pascolina. Só na praça fronteira à catedral há mais de uma dezena de coelhos como o da foto. Há referência que em outras ruas ocorre o mesmo. Lojas e restaurantes também têm lindas produções na mesma direção. 
Esta é uma edição para encerrar março que teve um verão canicular e um outono, que já mostrou algo do inverno. Houve um dia (14) que Porto Alegre teve cenas de que pareciam ambientar um dilúvio. Para encerrar o mês, temos águas com gosto especial, creditado às ‘algas de março’. Já que falo em estripulias climáticas, adiro ao convite feito por uma das instituições onde trabalho, cuja proposta está ao lado.
Antes da dica de leitura uma homenagem, muito bem humorada, como a situação exige e permite, ao mais ilustre brasileiro falecido na semana: Millôr Fernandes (1923 - 2012) foi um desenhista, humorista, dramaturgo, escritor e tradutor brasileiro. A espirituosa e criativa charge de Quinho.
Na semana passada estive no Mato Grosso e de lá trouxe a inspiração para nossa usual dica sabática de leitura. Na capital e no Estado há muitas homenagens ao mato-grossense Candido Mariano da Silva Rondon, mais conhecido como Marechal Rondon (1865-1958), o que não é sem razão, quando até um dos 27 estados brasileiros — Rondônia — tem esta denominação pelo mesmo motivo: um descente de indígena. Que chega a mais alto patente do exército brasileiro por sua incondicional defesa dos índios.
Lembrei, então, de um livro que li em 2007: O Rio da Dúvida que narra, de maneira primorosa, a história de uma grande aventura de 4,5 meses [dezembro de 1913–abril de 1914] de Cândido Rondon e Theodore Roosevelt, que colocam no mapa um rio que, apesar de seus 1600 quilômetros e de sua importância na cartografia da América, permanecia desconhecido.
Faço de uma resenha que já havia publiquei em Letras & Livros e em Leia Livro — de quem recebo notícias que voltará a circular — a dica deste sábado que despede este março que soube ser multifacetado.
MILLARD, Candice. O Rio da Dúvida: a sombria viagem de Theodore Roosevelt e Rondon pela Amazônia [Original inglês: The River of Doubt: Theodore Roosevelt’s Darkest Journey]. Tradução: José Geraldo Couto. Posfácio: Marta Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, 305p. ISBN 978-85-359-1072-8
Theodore ‘Teddy’ Roosevelt (1858-1919) foi o 25º vice-Presidente e o 26º Presidente (1901-1909) dos Estados Unidos [não confundir Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), 32º presidente dos EUA, com quem não tinha parentesco]. Quando Teddy perdeu para Woodrow Wilson (28º Presidente) as eleições para um terceiro mandato (com um interregno depois do segundo mandato) de presidente dos Estados Unidos, num escapismo à depressão que a derrota lhe impingiu envolve-se em uma expedição de quase sete meses pela América do Sul (1913-14) dos quais os 4,5 últimos meses em companhia do Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon.
A expedição foi cuidadosa montada (com muitos erros pela inadequação na seleção de material não apropriada à Amazônia) nos Estados Unidos em um ambiente marcado por uma pirotecnia noticiosa. Roosevelt, que fora mais jovem presidente estadunidense, adorava publicidade e gostava de colecionar fatos que o colocassem em evidência: primeiro presidente originado de uma metrópole, único que tinha sido cowboy, primeiro a viajar de aeroplano (dos irmãos Wright) e de submarino etc. Espírito aventureiro, ele já havia realizado safáris na África e explorado o interior ainda bravio da América do Norte. Teddy tinha orgulho de ser conhecido como ‘bravo como um alce macho’.
Agora, para amargar as frustrações da derrota eleitoral, Roosevelt escolheu um desafio ainda maior: mapear, no coração da selva amazônica brasileira, um rio turbulento e sinuoso, de percurso ainda ignorado, chamado na época de Rio da Dúvida, por conta do total desconhecimento a respeito dele. Surgiu assim a Expedição Roosevelt-Rondon, cujo comando seria dividido entre o ex-presidente estadunidense e o então coronel Cândido Rondon, o maior desbravador do interior do Brasil, responsável pela expansão da rede telegráfica nacional. A expedição amazônica, oficialmente, tinha como objetivo coletar de amostras de flora e fauna para o museu de história natural estadunidense.
Após se envolver com populações indígenas desconhecidas como os temidos Cintas-largas, companheiros de viagem traiçoeiros, animais e doenças quase imbatíveis, peixes carnívoros, insetos agressivos, corredeiras e quedas d’água o ex-presidente conseguiu, aliado à experiência do militar brasileiro, retornar vivo ao seu país, depois de estar quase à morte, vitimado por inflamação em uma perna que exigiu intervenção cirúrgica na selva. Deixa na cartografia brasileira seu nome no Rio Roosevelt, com 1600 quilômetros, que nasce no estado de Rondônia, que em seu percurso, atravessa uma parte do Mato Grosso, entrando a seguir, no estado do Amazonas, onde se torna um afluente do Rio Madeira. Oficialmente, o IBGE o denomina de Rio Roosevelt; a maioria dos estadunidenses, entretanto, usa o nome completo, Rio Theodore Roosevelt, ou apenas Rio Theodoro.
Roosevelt como resultado da expedição escreveu, em 1914, o livro Through the Brazilian Wilderness (Pelas Selvas Brasileiras, Ed. Capo Paperback). Este é uma das dezenas de fontes que Candice Millard – uma jovem escritora estadunidense (nascida em 1967) jornalista e editora da Revista National Geographic – serve-se para escrever seu primeiro livro.
A autora, fruto de exaustiva investigação que a trouxe à Amazônia, faz relatos minuciosos sobre a fauna, a flora e os povos indígenas da região explorada que dão cores muito vivas àqueles que acompanham o relato às quase trágico da expedição marcada por um drama humano intenso em que sobressaem as gigantescas e contrastantes figuras de Roosevelt e Rondon. As narrativas trazidas, mesmo que tenhamos que acompanhar detalhe de uma longa jornada, são muito instigantes. Recomendo entusiasmadamente a leitura.
Adiciono a esta resenha um agradecimento muito especial: se Rondon e Roosevelt colocaram no mapa um rio antes desconhecido de 1600 quilômetros, minha ex-aluna de doutorado Maria Luiza – que quando em 2007, me despedia da Unisinos, generosamente me presenteou “O Rio da Dúvida” dizendo em um cartão que ‘nosso contato [de um semestre] foi intensivo e de grande proveito para mim’ – colocou no meu universo um tema do qual nada conhecia e que valeu muito a pena. Assim esta resenha traz meu agradecimento e uma homenagem para Professora (agora, já doutora) Maria Luiza Bredemeier.

sexta-feira, 30 de março de 2012

30.- EM DOR DARÁS À LUZ FILHOS, GEN 3, 16.



Ano 6 ***  Porto Alegre / Frederico Westphalen  *** Edição 2067
Esta edição entra em circulação, quando mais uma vez, estou viajando para Frederico Westphalen, já tendo percorrido mais de uma hora das 6h15min de minha jornada. Hoje tenho pela manhã reunião do Colegiado do Programa de Pós-Graduação em Educação da URI, a tarde reúno-me com minhas duas orientandas e a noite envolvo-me com a primeira sessão do Seminário ‘Escrever é preciso!’ Retorno a Porto Alegre após esta atividade.
Em mais uma sexta-feira quaresmal. Trago, como em nas anteriores, assunto que nos envolve quer sejamos religiosos ou não.
Há duas semanas conversava com uma colega muito querida, cujo nome me autorizo a preservar, pois torno público, algo que me contou, de maneira reservada. O assunto era questionamentos, ou melhor: contestações, que, enquanto professora de Biologia, recebia de seus alunos. Isto não ocorria apenas quando discutia evolução, mas até quando falava em datações de fósseis, que alguns alunos universitários não aceitavam serem maiores que 6 mil anos, pois não poderiam superar a data de criação do mundo (=Universo).
Vale lembrar que em 1650, o arcebispo irlandês James Usher fez as contas e concluiu que Deus criou o mundo às 15h30min do dia 23 de outubro de 4004 a.C. e que o apocalipse aconteceria no mesmo dia e horário em 1996. Felizmente, pelo menos a segunda previsão sabemos que errou. Como pelo calendário hebreu estamos no ano 5.772 desde a criação do mundo, o douto prelado fez apenas um ‘errinho’ de um pouco mais de um século, dentro da tradição judaica.
Comentamos, então, a necessidade de destacar os diferentes óculos que usamos para ler o mundo natural: a ciência, a religião, os mitos, o pensamento mágico, os saberes primevos ou senso comum. Mesmo no cotidiano, não nos cabe definir qual destes óculos é o melhor. Mas, em uma aula na universidade, ou mesmo em uma escola, podemos dizer estamos usando os óculos da ciência, que tem verdades provisórias, com uma exigência fulcral: a razão. Em oposição, por exemplo, à religião, que tem verdades permanentes, que exigem a fé para crê-las.
A conversa desenrolava-se neste tema, em meio a um trânsito, marcado pela imobilidade, quando minha amiga confidenciou-me: “Vou contar-te algo que muito poucos sabem: fiz três vezes inseminação in vitro. Mas não houve sucesso na implantação dos óvulos fecundados. Desisti, depois de vários outros tratamentos, de ser mãe biológica.”
Não ligava a revelação, que via ser difícil, com nossa conversa. Quando a conversa prosseguiu, em tom sofrido: “Uma colega minha, doutora em História, brilhante professora e pesquisadora de renome, veio consolar-me. ‘Que bom que decidiste ouvir tua consciência, deixando de violar a lei natural, que usa tecnologias para interferir nos desígnios divinos!’”
Minha amiga, com um tom, agora triunfante, disse: “Perguntei à colega: ‘Por que usas óculos?’ ‘Sem óculos sou quase cega!’ ‘Pois a mim parece que não deverias interferir na vontade divina, usando uma tecnologia que modifica a obra do Criador!’”   
Vibrei com a saída brilhante de minha amiga. Disse que traria o assunto aqui, resguardados nomes, para não expor douta (e tola) historiadora, que certamente não usa anestésicos e deve ter parido seus filhos na dor, como se ordena no Gênesis. Nada mais a aditar.
Lemo-nos amanhã para saborear ‘O rio da dúvida’.

quinta-feira, 29 de março de 2012

29.- BULLYING: DOIS OLHARES EM UMA MESMA REALIDADE



Ano 6 ***        PORTO ALEGRE       ***  Edição 2066
Afirma-se que o naturalista e viajante francês Saint-Hilaire (1779-1853), teria afirmado quando de sua estada, na então Província de S. Pedro, [http://pt.scribd.com/doc/7389091/Viagem-Ao-Rio-Grande-Do-Sul-Saint-Hilaire] no primeiro quartel do Século 19, que para morar aqui se devia ser um forte. Pois neste março de 2012, quase 200 anos depois, há confirmações. Tivemos temperaturas máximas de 39ºC e ontem elas beiravam a 1ºC. É assim que vivem os gaúchos. 
Com duas bancas que tenho esta tarde/noite encerro meu ciclo de sete bancas neste março. Hoje são duas defesas muito especiais, pois tem a mesma dimensão daquela do Bruno Piazza que abriu a série em 9 de março: são de duas alunas que tive o privilégio de orientar.
Mas antes uma pérola, de muita sabedoria ouvida neste ciclo de bancas. Em uma delas, meus colegas e eu, ao fazermos a avaliação, tecemos comentários, que se destinavam a aprimorar um trabalho que era muito significativo. O avô do mestrando, que assistia, talvez a primeira vez, um ato desta natureza e julgava irretocável a produção do neto, teve uma frase lapidar: “A banca se assemelhava a um técnico querendo ensinar o Neymar a jogar futebol!” Nada mais bem posto, na visão de um autêntico avô-coruja. 
As duas defesas de hoje têm pelo menos uma originalidade: duas mestrandas do Mestrado Profissional de Reabilitação e Inclusão realizaram um trabalho em integrada parceria. Uma psicóloga e uma pedagoga lançam olhares diferenciados sobre o mesmo objeto: o bullying. Vão às mesmas escolas e fazem suas perguntas e suas análises. O trabalho de orientação e a maior parte dos estudos teóricos bem como o trabalho de campo e a qualificação foram em conjunto.
Assim hoje, primeiro a psicóloga Sabrina Guerreiro Caldeira apresenta sua dissertação: Prevenção de Bullying: o que responsáveis por escolas de Porto Alegre têm a dizer? Em um segundo momento, a pedagoga Anna Carolina Muniz Ordobás traz a sua investigação O Bullying na escola: estamos preparados? Quais (in) formações dispõem os professores? A Banca de avaliação das duas será formada pelas Professoras Doutoras Clarice Monteiro Escott, do IF-RS, como avaliadora externa e a Luciane Carniel Wagner, como representante institucional.
Trago a seguir uma pequena síntese dos dois trabalhos:
A Sabrina, enquanto psicóloga, com sua dissertação Prevenção de Bullying: o que responsáveis por escolas de Porto Alegre têm a dizer?  buscou compreender quais as experiências e percepções que diretores e professores de escolas de Porto Alegre têm sobre a prevenção de bullying. Embora esta violência venha sendo cada vez mais investigada por muitos cientistas, ainda há a necessidade de aprofundamento sobre suas características a fim de diminuir seus índices. Para a realização deste estudo foi utilizado o método qualitativo sendo entrevistados sete sujeitos, quatro diretores e três professores, de uma escola municipal, uma estadual e uma particular. As entrevistas foram gravadas e transcritas, sendo analisadas e classificadas em oito categorias que foram criadas inspiradas nos estudos de Bardin. Os resultados encontrados demonstram que diretores, professores, orientadores educacionais, psicólogos, psicopedagogos, funcionários da escola, alunos e pais estão despreparados para lidar com o bullying escolar sendo aplicadas medidas muito mais quando esta violência acontece do que investindo na prevenção da mesma. Nenhuma das escolas possui um programa estruturado para a prevenção deste problema e somente uma delas, a particular, tem um projeto de uma semana anti-bullying programado para 2012. A partir deste estudo seria aconselhado que toda a comunidade escolar pudesse se unir para compreender que a diminuição dos índices de bullying virá da conscientização de todos os envolvidos sobre o respeito e aceitação das diferenças, bem como ações preventivas constantes que devem fazer parte da rotina escolar desde os primeiros anos de vida.
A Anna Carolina, enquanto pedagoga, realizou com o interrogante: O Bullying na escola: estamos preparados? Quais (in) formações dispõem os professores? uma inovadora proposta de pesquisa que contou com a parceria de uma psicóloga na investigação de uma problemática crescente nas escolas, o bullying escolar. Mesmo que ocorram cada vez mais estudos acerca do assunto, este fenômeno ainda encontra espaço no cotidiano de crianças e jovens. Situando seu olhar nas questões da formação de professores este trabalho procurou investigar se há (in) formação para docentes em escolas de Porto Alegre para enfrentar as práticas de bullying. Partindo de uma metodologia qualitativa este estudo se desenvolveu com a participação de sete sujeitos de pesquisa, sendo três professoras, duas diretoras, uma orientadora e uma supervisora pedagógica, provenientes de três escolas da cidade de Porto Alegre. Os resultados encontrados apontaram que as professoras não compreendem o fenômeno em sua totalidade. Entretanto, apesar de não procurarem de forma autônoma por maiores esclarecimentos, elas reconhecem a importância da formação no combate das práticas do bullying. De forma geral as escolas também demonstraram essa preocupação ao enfatizarem a preocupação em realizar momentos de formação para seu quadro de professores, mesmo sem os conhecimentos adequados para tal feito. Tanto professores quanto escolas demonstraram compreender seu papel no combate aos atos violentos do bullying. Este estudo pretendeu ser mais um modo de agir contra este fenômeno na tentativa de encontrar meios que o minimizem em nossas escolas.

quarta-feira, 28 de março de 2012

28.- LEITURAS DO SÉCULO PASSADO



Ano 6 ***        PORTO ALEGRE       ***  Edição 2065
Na semana passada um amigo comentou em seu blogue Júlio Verne (1828—1905) escritor francês considerado por críticos literários o precursor do gênero de ficção científica, tendo feito predições em seus livros (mais de 100 títulos diferentes) sobre o aparecimento de novos avanços científicos, como os submarinos, máquinas voadoras e viagem à Lua.
Isto me fez recordar as emoções que vivi lendo vários livros de um dos escritores cuja obra foi mais traduzida na história editorial mundial, com traduções em 148 línguas, segundo estatísticas da UNESCO. Então escrevi: Meu caro Garin, tu e eu somos de geração que sonhamos juntos com Júlio Verne. Por que os jovens de hoje não sonham mais navegar no Nautilus ou voar em balões? Não tenho pesquisa, mas o senso comum me faz intuir que os jovens e mesmo muitos adultos não viajam no submarino do Capitão Nemo.
Na esteira de evocações li Mafalda atemporal na última Donna, revista dominical de Zero Hora, escrito, com muito sabor, pela jornalista Patrícia Rocha. O texto trouxe evocações, que não são conhecidas pelos jovens de hoje. Não sei se é saudosismo, mas parece que a leitura século passado era melhor. Como provavelmente todos os leitores deste blogue são do século passado, a eles a oportunidade de curtir evocações para fertilizar saudades. Um bom embalar lembranças a cada uma e cada um.
Mafalda atemporal Mafalda acaba de realizar o sonho de milhares de mulheres. Completou 50 anos e, por decreto, voltou a ter 48.
Mal começaram a se multiplicar as homenagens pelo meio século de vida da mais famosa personagem do quadrinista argentino Quino, criada para uma campanha publicitária jamais divulgada em 15 de março de 1962, o autor se manifestou adiando o aniversário em dois anos: o nascimento oficial da garota preocupada com os rumos do mundo seria em 29 de setembro de 1964, quando ela apareceu pela primeira vez em uma tira.
A confusão deixa margem à pergunta: entre todas as mulheres (de carne e osso ou papel), Mafalda comemoraria a chance de protelar os emblemáticos 50 anos? Sua amiga Susanita – aquela apaixonada por si mesma e que acreditava que a conjugação do verbo amar no presente perfeito era “filhos” – com certeza adoraria a possibilidade. E Felipe? O dentuço perdido em reflexões, provavelmente precisaria de uma superdose de Nervocalm diante da incerteza do dia do próprio nascimento. Mas Mafalda...
O mais fascinante sobre a garotinha que saiu de cena em 1973, mas segue cultuada por fãs fiéis ao redor do mundo, é seu olhar agudo sobre a realidade e as pessoas. Garimpando suas tiras, entre um comentário irônico sobre o embate entre o capitalismo e o comunismo naqueles agitados anos 1960, as aspirações da classe média e temas universais como a relação pais e filhos, ela aparece refletindo sobre o passar do tempo. Ao pensar no futuro, dali a 30 anos, quando a Terra teria 7 bilhões de habitantes e ela e seus amigos a idade de seus pais, ela conclui que estariam, além de apertados, velhos. Em outro momento, pergunta quantos anos alguém precisa ter para ser velho, ao que a mãe responde que o importante é ser jovem de espírito. Então, Mafalda arremata: “E quando o espírito começa a precisar de maquiagem?”.
Mas, a despeito da certeza infantil de que qualquer idade além dos 20 é velhice, Mafalda certamente estaria agora, seja aos 48, seja aos 50, mais preocupada com os desdobramentos da Primavera Árabe ou o novo bate-boca pelo domínio das Ilhas Malvinas do que com crises etárias. A garota que ainda na pré-escola se questionava sobre os rumos do movimento feminista e, olhando as roupas passadas, a louça lavada e o chão brilhando, perguntou certa vez à mãe o que ela gostaria de ser se vivesse, é anticonvencional demais para se preocupar com idade.
Aliás, mesmo cinquentona, Mafalda, pelas artes do traço, seguirá sendo a criança que ainda hoje, quando seus leitores se aproximam ou há muito passaram dos 50, é capaz de nos desconcertar. Afinal, como ela mesma disse, entre as pequenas e as grandes questões do mundo, “a humanidade não é nada mais que um sanduíche de carne entre o céu e a terra”.

terça-feira, 27 de março de 2012

27.- VALE PARABENIZAR DENTRO DA OITAVA?



Ano 6 ***        PORTO ALEGRE       ***  Edição 2064
Sempre que cumprimento alguém atrasado pelo aniversário, credito-me uma desculpa que me parece adequada: o cumprimento atrasado prolonga o aniversário. Para mim isto parece muito bom, e ainda soa elegante. Claro que, talvez, para o aniversariante, pareça um desculpa esfarrapada. Aliás, esta adjetivação para desculpa, lembra a minha mãe; ela a usava toda vez que tentávamos justificar algo não convincente.
Mesmo que Facebook aos domingos nos mande uma lista dos ‘nossos amigos’ aniversariantes na semana, de vez em vez, há imperdoáveis esquecimentos. Assim, um ou dois dias depois — se for aceito o argumento que se expande a celebração — ainda faço parabenizações.
Tenho uma inspiração: as grandes festas religiosas tinham (ou melhor, têm; como saí do circuito, tudo me parece do passado) a celebração da oitava. Logo cumprimentar depois pode significar apreço ao aniversariante: sua celebração é tão importante que se estende por oito dias, como a oitava do Natal ou oitava de Pentecostes.
A propósito: fui conferir no sempre prestimoso ‘Priberam’; minha evocação é pertinente, pois a sexta acepção de ‘oitava’ é 6. [Religião católicaCada um dos oito dias seguintes a certas festas solenes, particularmente o último deles. No subproduto que as consultas aos dicionários oferecem, sou recordado (pois no ginásio tive aula de conto orfeônico) que quando vejo meus alunos do curso de licenciatura em Música falando em ‘oitava’ estão em outra sintonia: 3. Intervalo entre duas notas musicais do mesmo nome mas de diferente som (nos instrumentos de teclado). Não lembrava mais isto, que deve ser algo das primeiras notas na alfabetização musical.
Aprendo, agora que existe o verbo oitavar: 1. Dar forma oitavada a. 2. Dividir em oitavas. Evoco, então que, há muito, várias vezes oitavei: quando no meu primeiro ano de Porto Alegre (1958) trabalhava em um pequeno mercado: Bar Caçula na Av. Eduardo (então, já rebatizada de Presidente Roosevelt) esquina Ernesto Fontoura, tinha que ser preciso no corte de tabletes de manteiga, quando as freguesas solicitavam um oitavo de manteiga; havia (apenas) embalagens de 250g e desejavam apenas um oitavo de quilo. Para oitavar, dividia um tablete em dois.
Um leitor deste blogue não precisa ser muito arguto para se perguntar por que estou ‘enrolando’ com tão longo preâmbulo. Quem deixei de parabenizar?
Pois ontem Porto Alegre fez 240 anos e houve muitas loas dedicadas à efeméride. Na verdade, e isso não é justificativa para minha omissão, esta data natalícia é mais recente.
 Houve muitas discussões entre os historiadores acerca de duas datas uma em novembro e outra este 26 de março. Os geógrafos e geólogos também viveram polêmicas: o que resulta da junção dos quatro rios (Jacuí, Sinos, Caí e Gravataí) que formam um grande estuário (quase 500 km2)?  um rio, uma ria ou um lago. Por quase toda a sua existência, foi considerado um rio, porém, há pouco mais de vinte anos, após criterioso estudo envolvendo especialistas foi classificado como um grande lago. As áreas do lago e do município se quase se equivalem.
O Guaíba — lago, rio ou ria  — é talvez uma das maiores belezas da capital do Rio Grande do Sul. Não vou fazer aqui dar veio a bairrismo, mas Porto Alegre, que ganhou no Império o título que ostenta em seu brasão “Leal e Valerosa” é uma cidade muito aprazível e o Guaíba é algo muito lindo. E a minha homenagem para cidade que me acolhe entre os seus há mais de meio século, faço com fotos de meu filho André, que é nascido aqui.
A cidade constituiu-se a partir da chegada de casais açorianos em meados do século 18. No século seguinte contou com grande fluxo migratório, especialmente de alemães e italianos. Hoje tem uma população que se aproxima de 1,5 milhão de habitantes. A cidade enfrenta, como a maioria das metrópoles de países periféricos, muitos desafios, entre eles a grande população ainda vivendo em condições de pobreza e sub-habitação, um alto custo de vida, deficiências sérias no tratamento de esgotos, muita poluição e degradação de ecossistemas originais, índices de crime elevados (embora indicando uma tendência de queda) e cada vez mais significativos problemas de trânsito.
Porto Alegre é uma das cidades mais arborizadas e alfabetizadas do país. Tem uma infraestrutura em vários aspectos superior a das demais capitais do Brasil. Foi manchete internacional quando sediou as primeiras edições do Fórum Social Mundial e foi escolhida recentemente como uma das sedes da Copa do Mundo de 2014, que parece que vai transformar a sua paisagem, como um exemplo do que será o cais do porto. Eis uma discriminação que me incomoda, hoje no Brasil. Há duas categorias de capitais: as que sediarão a copa e as outras.
Assim, dentro da oitava do aniversário de 240 anos da capital dos gaúchos, os cumprimentos de alguém que curte morar aqui. Parabéns Leal e Valerosa Cidade de Porto Alegre! 

segunda-feira, 26 de março de 2012

26.- DOIS RAPAZES E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS



Ano 6       ***      Porto Alegre      ***        Edição 2063


Já vivemos a semana que encerra o primeiro trimestre do ano. Mais uma semana prenhe de atividades para despedir este março de tantos fazeres. As blogadas de segunda-feira, de uma maneira quase usual, são marcadas pelo produto de leituras da imprensa no fim de semana.
Hoje ofereço a leitoras e leitores deste blogue a crônica Dois rapazes e suas circunstâncias, da jornalista Cláudia Laitano, publicada na página 2 de Zero Hora do sábado que passou. Vale acompanhar reflexões que são muito densas.
Thor – Eis um desafio que a maioria de nós nunca vai ter que enfrentar: educar um menino que nasceu bilionário para tornar-se um adulto responsável e decente. Como se cria um bilionário? Como ajudamos alguém que sabe que não vai precisar trabalhar para viver a ser um sujeito com sonhos e ambições próprios? Como fazê-lo respeitar as regras que valem para todos se sua vida é tão diferente das outras? Como ensiná-lo a enfrentar os olhares de inveja e interesse despertados pela condição, alheia a sua vontade, de ter nascido tão rico em um país tão desigual?
Aos 20 anos, Thor não é apenas o filho mais velho do bilionário com a beldade: ele é um experimento pedagógico ambulante. Se Eike e Luma conseguiram educá-lo para ser um homem digno da fortuna que herdará, renova-se a nossa fé na capacidade dos homens de superarem e transcenderem suas circunstâncias – na fartura e na miséria, a pé ou de Mercedes. Meu juízo classe média me assopra que meninos de 20 anos e seus hormônios traiçoeiros não deveriam lidar com carros mais potentes do que a sua capacidade de discernimento e autocontrole. Mas, apesar do carro importado, dos advogados caros, do pai falastrão e das falhas da Justiça, que nem sempre trata ricos e pobres do mesmo jeito, Thor não merece ser julgado e condenado apenas pelas aparências.
Nem ele nem os meninos magrelas e pardos, sem nomes de deuses nórdicos ou pinta de galã, que precisam conquistar todos os dias o direito de contrariar os estereótipos.
O menino de Santo Ângelo – Nas reportagens, seu rosto e seu nome não aparecem, mas sua história anônima é parecida com a de muitos outros meninos de 15 anos – pelo menos 10% da população, segundo as estatísticas. Diferentemente da maioria, porém, esse menino não se escondeu. Meu juízo classe média teria aconselhado o guri a ficar na dele, discreto, evitando chamar atenção para si ou para o fato de ter descoberto, já aos 13 anos, que gostava de meninos. Mas ele fez tudo ao contrário: contou para os pais logo que pôde e aos colegas de escola na primeira oportunidade. As consequências foram as previsíveis: isolamento, gozação e depois violência física. Foi demais para ele – garotos de 15 anos tendem a superestimar sua capacidade de enfrentar adversidades. E o menino pensou em se matar.
O fato de ter pais amorosos e esclarecidos deve ter pesado para que ele desse mais valor à própria vida. Em vez de punir a si mesmo, botou a boca no trombone, reclamou, pediu ajuda, se expôs.
O filho de Eike, o menino de Santo Ângelo e todos nós somos produtos das nossas escolhas e das nossas circunstâncias. No caso do garoto gaúcho, sua coragem e seu pedido de ajuda podem ter servido para que outros garotos percebam que não estão sozinhos e que não devem desistir de denunciar a violência e a intolerância – mesmo que demore um pouco até serem ouvidos. Contrariando o bom senso, ele tornou-se um pequeno herói da resistência. Thor, por sua vez, vai ter que provar que, diante da primeira grande adversidade da sua vida, também saberá transcender suas circunstâncias – agindo como homem, e não como herdeiro.