sábado, 17 de março de 2012

17.- A CONTURBADA HISTÓRIA DAS BIBLIOTECAS



Ano 6 *** www.professorchassot.pro.br *** Edição 2054
Na última segunda-feira, dia 12, foi o dia do bibliotecário. Ao ser alertado da efeméride, no blogue de meu colega Garin — norberto-garin.blogspot.com/ — eis excerto de meu comentário:
 “mesmo considerando ‘o lixo’ tema relevante [...] não há como não me ater a render loas aos bibliotecários nesta data. Esta é uma profissão que quisera ser. Certamente, seria um mau funcionário, pois estaria permanente saciando minha curiosidade, deleitando-me no acervo. Imagina se a biblioteca tivesse — como há em algumas — um setor de livros de empréstimo proibido. Agradeço teu ‘memento librorum’: deste-me a sugestão para próximo sábado. Em homenagem aos bibliotecários, a dica sabática será: A conturbada história das Bibliotecas.
Cumpro, aqui e agora, a promessa. Deste livro fiz resenha no saudoso ‘Leia Livro’ da Secretaria de Cultura de São Paulo. Aliás, sobre o mesmo livro publiquei um texto em Episteme, n. 16, p.181-185, jan./jun 2003.
Ocorre um detalhe que devo escusar-me: depois de fazer aqui a promessa, ao preparar esta edição, sou alertado pelo prestimoso Google Desktop, que em 10SET2011, o livro já fora aqui assuntado em uma dica sabática. Aos meus leitores mais assíduos, peço indulgências e para eles ‘reformei’ o texto antes publicado, mesmo que minha mãe, que costurava para toda família, sempre dissesse que era mais fácil fazer uma roupa nova do que reformar. Aos neófitos aqui faço esta oferta como se fosse um café recém passado.
A conturbada história das Bibliotecas. BATTLES, Matthew. São Paulo: Planeta, 2003, 239 p. [Título do original inglês: Library: An unquiet History. Tradução: João Virgílio Gallerani Cuter] ISBN 85-7479-698-0. R$ 42,00.
Nunca entendi bem o porque, mas adiro aos que adjetivam a inveja de santa e eu tenho uma santa inveja do que faz Mattew Battles. Ele trabalha na Biblioteca de Houghton, que abriga a coleção de obras raras de Harvard. Admitamos, um excelente local para se desfrutar o trabalho como ócio. Posso imaginar que não são poucos os leitores que gostariam de ter tal cenário como local de seu ganha pão, até porque o pão para o espírito viria como um alentado benefício extra.
Battles [foto], falando de seu local de trabalho, conta – e me permito dar-lhe mais extensamente a palavra aqui – que “quando fui trabalhar na Biblioteca Widener, em Harvard, cometi logo de saída meu primeiro erro: tentei ler os livros. Não demorou muito para repetir-se em mim aquela sensação de vertigem compulsiva [...] na verdade, uma resposta a contradições que qualquer um de nós enfrenta quando está diante de uma biblioteca. O leitor vai tocando os livros expostos nas estantes, levanta-os, sente-lhes o peso, aprecia as letras inclinadas, dispostas numa página de rosto, examina marcas deixadas por outros leitores e, quanto mais toca, mais fugidio lhe parece o saber ali contido. Todas as coisas que desconhece parecem estar lhe acenando por detrás das capas, nas entrelinhas. Na biblioteca o leitor é obrigado a despertar daquele sonho de comunhão íntima provocado pela leitura. Ele é forçado a reconhecer a materialidade do mundo na sucessão interminável das lombadas, nos sons das páginas virando sobre as mesas, no atrito das capas que se espremem nas prateleiras, e nesse cheiro rançoso [Aqui, permito-me discordar de Battles; os livros têm, não raro, cheiros agradáveis, às vezes, até sensual] que impregna qualquer ambiente em que há livros em grande número. É claro que essa experiência da dimensão puramente física do livro é mais forte nas grandes bibliotecas, onde a massa da palavra escrita é tão grande que parece criar um centro de gravidade em torno de si.” E o capítulo inaugural “Lendo a biblioteca” prossegue falando dos encantamentos que nos oferecem esses tabernáculos da sabedoria.
Muito provavelmente, cada um dos leitores e leitoras deste blogue já sentiu sensações semelhantes quando se deleita em uma biblioteca. Talvez encontre uma explicação do porque quando vivi o privilégio de um período de pós-doutoramento, o entrar para uma biblioteca pela manhã e sair à noite parecia normal e não me afloravam culpas. Explico, assim, por exemplo, que as visitas à nova Biblioteca de Alexandria ou à imponente Biblioteca Mitterrand em Paris me infundiram emoções como aquelas que se sente quando se adentra pela primeira vez na Basílica de São Pedro no Vaticano ou na Mesquita de Hagia Sofia em Istambul.
Passados os encantamentos que todos vivemos nas bibliotecas e que Batlles nos mostra qual Virgílio conduzindo Dante pelos diferentes locais do Paraíso, o livro nos remete para outro lado. Talvez a maior surpresa do texto, já anunciada no título está no convite a que esqueçamos as bibliotecas como lugares tranquilos, silenciosos, respeitosos templos do saber... mas passemos a considerar esses imensos reservatórios de conhecimento, densamente acumulado, como alvo privilegiado dos inimigos da civilização, que os têm como presa fácil para devastação em massa. As destruições da Biblioteca de Alexandria são apenas algumas das situações vândalas entre muitas outras descritas no livro. Talvez uma das mais impressionantes é aquela tida como a maior queima de livros que a humanidade conheceu “patrocinada” por Shi Huang Ti há 2.300 anos antes do presente e que se fez enterrar, com um exército de seis mil guerreiros de terracota, próximo a atual cidade de Xian na China. Deu uma ordem bastante simples: “Destruir toda a história, a filosofia e a literatura produzida antes que sua dinastia assumira o poder”. Sabemos o quanto essa ordem foi, mais de uma vez, imitada por muitos outros que tomavam o poder ou dominavam outras civilizações. Aliás, quando lemos compungidos sobre as destruições de bibliotecas árabes, quando da expulsão dos islâmicos da Península Ibérica no final século 15, não deixa de ser paradoxal lembrar que quando da conquista árabe do Egito, no século 7, ao ser perguntado ao conquistador o que fazer com os livros que ainda havia em Alexandria, a resposta foi sumária: “Com relação aos mencionados livros, se estes concordam com o Livro de Deus, eles são desnecessários; por outro lado, se discordam, são indesejáveis. Portanto, que todos os livros sejam destruídos!”
Comove-nos particularmente as destruições de livros que existiram em regiões que hoje chamamos de América, quando da chegada dos assim chamados colonizadores. Todavia, os espanhóis não foram os primeiros a queimar livros no vale do México. – e o fizeram a rodo não apenas nas terras das quais se apossavam, mas também quando expulsaram da Península árabes e judeus. Antes deles os astecas já haviam descoberto como encadernar livros e como incendiá-los. Quando os mexica se transformam em astecas, para uma nova ordenação nobiliárquica é preciso ter também uma nova história; repete-se, então, o feito de Shi Huang Ti e o primeiro imperador asteca determina a queima de todos os livros produzidos antes da dinastia que então se iniciava. Zera a História foi prática muito repetida.
Mas livros ao fogo não são espetáculos dantescos antanhos. O nosso século 20 – porque somos todos homens e mulheres do século passado, tão celebrado por ser aquele que a tecnologia pontificou, teve momentos de grandes labaredas. Battles descreve a destruição, em agosto de 1914, da Biblioteca de Louvain pelos exércitos alemães como uma das maiores perdas da humanidade, com a queima de 70 mil livros e 300 manuscritos fruto de quase quinhentos anos de vida intelectual ininterrupta. Passada a 1ª Guerra Mundial, a biblioteca foi reconstruída com garra. Em maio de 1940, as tropas alemãs invadiram mais uma vez a Bélgica e o que por primeiro foi bombardeado foi a nova biblioteca, que foi destruída, restando milhares de livros carbonizados. Esta bilioclastia foi uma prática do nazismo, que em maio de 1933, em praça pública em Berlim, faz queimar livros que “o doutor Goebbels, do alto de sua imensa sabedoria, julga impróprio para a Alemanha nazista”. Essa foi apenas a primeira de 30 queima de livros universitários na primavera de 1933. Calcula-se que nos 12 anos seguintes o nazismo tenha queimado mais de 100 milhões de livros. Bibliotecas inteiras foram queimadas ou roubadas apenas pelo pretexto de pertencerem a comunidades judaicas. Battles relata o quanto durante o nazismo a função do bibliotecário tornou-se importante, pois o governo determinava o que o povo deveria ler, ou melhor, o que não podia ler; isso fez com que os bibliotecários passassem ocupar o centro das atenções governamentais. Estes então só sobreviveram na medida em que atendiam aos desejos do governo.
Há ainda muitas páginas de descrições de antecipações de realidade daquilo que Rad Bradbury fez irônica ficção em seu livro, levado depois ao cinema: Fahrenheit 451. Em 1981, nacionalistas cingaleses destruíram a Biblioteca Tamil no Sri Lanka com milhares de livros, com conhecimentos que jamais serão recuperados. Sabemos o que foi feito contra bibliotecas, em 2001 no Afeganistão pelos talibans e, em 2003, quando da invasão estadunidense ao Iraque.
Bibioclastias acidentais, provocadas, revisionistas e abrangente a humanidade as conheceu em sua história as mais diversas tanto políticas como religiosas. A leitura dos capítulos “Alexandria em chamas”, “A guerra dos livros” e “O conhecimento lançado ao fogo” nos faz evocar outras histórias não trazidas por Battles. Assim, se houve tempos que os colégios recendiam a cheiro de fumaça pois eram premiados os alunos que trouxessem para queima livros que estavam no Index — parecendo um assunto para uma próxima blogada — que seus pais ocultavam em casa, também lembramos que, deva haver entre os leitores deste blogue alguns que se recordem de ter assistido, nos anos de maior repressão do recente golpe militar, obras inteiras de Marx, por exemplo, serem colocadas em riachos ou em fornos de padaria, pois tê-las em casa era se posicionar contra o regime e candidato, no mínimo, a ser levado a uma comissão policial de inquérito.
Mesmo que haja estas partes menos atrativas, A conturbada história das Bibliotecas apresenta uma riqueza muito grande de informações se constituindo em um livro que encantará as leitoras e os leitores que desejam entender como se deu / dá / dará essa magnífica acumulação de saber e, também, com houve / há, e infelizmente haverá, perdas acidentais e desejadas do conhecimento.
Se o objetivo de uma resenha é (des)estimular a leitura do livro resenhado, quero aqui, de maneira entusiástica recomendar A conturbada história das Bibliotecas. Acredito que vale a pena conhecer acerca do livro e porque este, para alguns é companhia para os mais diferentes momentos e para outros, uma continua ameaça.
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5 comentários:

  1. Caro Chassot,
    Se existe uma classificação que cabe a minha pessoa é: rato de biblioteca. Além de ser leitor compulsivo, tenho atração pela parte física das bibliotecas, elas me encantam. Claro que vou adquirir o livro recomendado com avidez. Abraços e obrigado pela excelente dica de leitura, JAIR.

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  2. Caro Chassot,
    a destruição de acervos existentes, tanto em bibliotecas quanto na forma digital, apenas com uma pressão no botão "delete" me assusta. Há uma produção considerável da civilização contemporânea que, se destruída em qualquer data, representará novo atraso e o pior, isso é possível. Entendo que o ideal é que essa produção esteja fragmentada e distribuída pela população, o que dificultará a sua destruição, mas representará maior dificuldade de acesso.

    Um abraço,

    Garin

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  3. Meu caro Garin,
    isto que dizes assusta. Hoje muito da produção não existe em suporte papel. Nossos blogues, por exemplo. Mesmo nossos arquivos em disquetes não são mais acessíveis.
    Mas há um perigo maior. Se os Estados Unidos, por uma razão imperialista, resolvesse desativar a WEB!
    Isto seria uma catástrofe maior que Hiroshima.
    Eu já perdi arquivos irrecuperáveis.
    Obrigado por teu alerta

    attico chassot

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  4. Olá Mestre Chassot,

    O projeto Leia Livro está aos poucos sendo ressuscitado. Ainda leva tempo até que seja possível refazê-los nos mesmos moldes anteriores, mas aos poucos chegaremos lá!

    Obrigado,

    Equipe Leia Livro 2012

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  5. À Equipe Leia Livro 2012,
    esta é uma excelente notícia. Já no aguardo da primeira revoada da fênix ressurreta

    attico chassot

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