sábado, 14 de janeiro de 2012

14.- O CEMITÉRIO DE PRAGA



Ano 6 *** Porto Alegre *** Edição 1991
Cheguei à Morada dos Afagos, de meu tríduo em Frederico Westphalen, quase no ocaso da sexta-feira. Se na quarta-feira pelo meu sono estava duas horas depois no hotel, por ter ido primeiro a Iraí, neste retorno, por uma redefinição de horário, antecipei em cerca de oito horas minha chegada. 
Todavia viajar neste horário diurno não é a melhor pedida: além de levar oito contra seis da viagem noturna entrando em meia dúzia de cidades o ônibus não dispunha de internet (sob a alegação de ser mais velho). Tive a fortuna de ter na segunda parte da jornada a companhia da Renata, uma bibliófila, que numa frutuosa ‘troca de figurinha’ ajudou a amenizar a longa espera de cada nova hora capicua no relógio digital do ônibus. O livro resenhado hoje foi um dos assuntos.
O melhor da sexta-feira foi acordar com chuva, que — mesmo tênue — se estendeu pelo menos até eu deixar a cidade, às 15h. A chuva fez discreta companhia em alguns trechos da viagem, desfigurando um pouco o solo crestado da região que percorri durante o dia.
O último dos nove encontros do seminário Teorias do conhecimento e Educação parece ter sido muito produtivo e há indicadores de que atividades como um todo foram significativas. Registro um fato lateral de um aluno, que — consentidamente — envolveu a todos: o acompanhamento da luta do Edu Roberto Cerutti Barros [médico pediatra] que recorria à Justiça para conseguir leito em uma UTI neonatal para um paciente que nascera com muito grave problema no aparelho digestivo. É inenarrável aqui o significado da situação — que todos vivemos — nas discussões sobre Teorias do conhecimento.
Neste sábado cumpro a pauta e falo (de dica) de leitura de hoje. O livro trazido hoje já teve um pré-anuncio aqui no sábado passado. Terminei de ler o último livro do Umberto Eco. Quero dizer que ter colocado entre parêntesis ‘dica’ significa que nem todas resenhas sabáticas precisam merecer entusiasmada recomendação.
ECO, Umberto. O cemitério de Praga [Original italiano: Il cimitero di Praga por Joana Angélica d’Avila Melo] Rio de Janeiro: Record, 2011, 3ª ed. 480p. ISBN 978-85-01-09284-7; R$ 49,90.
Tenho uma questão preliminar que já esposei ontem, aqui: ¿É ético (ou pelo menos aceitável), um dos maiores intelectuais escrever um livro de ficção onde o personagem central assume posturas antissemíticas, anti-jesuíticas e antimaçônicas durante toda a obra?
Há pelo menos três situações que fizeram de ‘O cemitério de Praga’ uma leitura pesada. Garantiu sua continuidade o autor, reconhecido como um dos maiores escritores e pensadores vivos. Mais de uma vez pensei em desistir.
A primeira e mais significativa situação que me desagradou é quanto Simonini, o protagonista — o único personagem, segundo Eco, inventado na história — é escandalosamente preconceituoso. Tem um ódio exacerbado de judeus, de maçons, de jesuítas e de muitos outros povos e grupos. Durante toda a história a tônica é a mesma. Trago um, entre centena, de exemplos. Simonini cuida durante anos de Diana, uma doente mental. Há um momento que esta se aproxima despida dele, depois de ter sido a figura central de uma missa satânica onde a hóstia é colocada na vagina de Diana antes de ser distribuída aos fieis. Ele descobre, só então, que ela é filha de mãe judia e como talvez ele derramasse involuntariamente esperma nela e se ela gerasse um filho este seria judeu. Esta hipótese é suficiente para transtorna-lo fazendo que ele a mate, para não existir mais um judeu e este seria seu filho. Minha crítica é o quanto posturas preconceituosas de muitos personagens (mesmo que não sejam do autor) trazidas com argumentos que parecem convincentes, não podem fortalecer no leitor preconceitos. Pensei como hão de se sentir meus amigos judeus ou jesuítas lendo este livro. Para mim houve passagens que me causaram dissabores, mesmo sabendo que se trate de uma obra de ficção.
Outro óbice a uma boa fruição do livro: dezenas de personagens que se movimentam dentro da história da segunda metade do século 19 na França e na Itália, que eu não domino e, portanto dificulta algumas compreensões de enredos envolvendo Freud, Dreyfus, Dumas, Flaubert, Garibaldi e muitos outros nomes importantes. Junte-se, aqui, ainda a presença muito forte de um vocabulário sofisticado ligado ao ocultismo e ao satanismo ou a presença de personagem que morre mais de uma vez.
Por fim, estão muito presente no livro os Protocolos dos Sábios de Sião que mesmo que hoje sejam reconhecidos como uma grande fraude, para macular os judeus. Ocorre que no livro isto não fica claro, especialmente quando envolve no romance a polícia secreta do Czar Nicolau II. No livro Umberto Eco mostra como judeus e maçons se aliam para planejar a dominação mundial, através do acúmulo de riquezas, entre outras metas. Isto parece fortalecer mais uma postura antissemita, que em nenhum momento é contestada.
Parece que Umberto Eco não teve a sabedoria de seu conterrâneo Galileu, quando este escreveu, o famoso livro Discurso sobre as duas novas ciências (1638). Nela Galileu desenvolveu sua argumentação na forma de uma discussão entre três personagens (apenas aparentemente fictícios): Salviati, Sagredo e Simplício. Simplício é um empirista ingênuo, aristotélico dogmático, e representa o tradicionalismo; nas discussões com Salviati e Sagredo, ele sempre fica em desvantagem, sendo objeto de ironias. O ultrapreconceituoso Simonini não tem ninguém a refutar suas teses, literalmente do mal. Quem subtrai a malévola doutrinação de Eco, digo de Simonini?
Dois destaques positivos. O primeiro, mesmo que Simonini seja um personagem muito exótico e difícil de entender, pois se transmuta em um abade (que morre duas vezes) que coabita em sua casa e em sua personalidade, merece destaque os prazeres da mesa que ele demonstra. A descrição de refinadas iguarias francesas (com detalhes de preparação) merecem ser transportadas para um livro de receitas. A paixão por restaurantes finos ou bodegas de periferia aguça apetites.
Outro destaque é a descrição de uma missa satânica (da qual já fiz referência ao comentar Diana). Esta deve ser da lavra de um liturgista. A missa católica em latim tem uma adaptação singular e Diana funciona nua como o altar sobre o qual ministro oficia a missa. Há também a descrição de como os ‘fieis’ comungam para ‘conservar’ as hóstias consagradas para depois serem comercializadas para fins blasfemos.
Algo que mostra a erudição do autor é quando ele mostra como os rituais e mesmo a base teológica (por exemplo, uma virgem gerando um deus)do catolicismo (talvez, do cristianismo) estão calcados em religiões pré-cristãs, especialmente em cultos e rituais celtas.

Está aqui uma resenha diferente. Mesmo que não recomende de maneira entusiasmada a leitura, como usualmente faço, vale sua leitura. O jornal La repubblica é enfático: “Uma obra destinada a se tornar um clássico.” Não esqueço que autor de uma obra é seu principal avalista. E sobre Umberto Eco não há nada que possa acrescentar. 

7 comentários:

  1. Attico amigo, boa noite!

    Suas impressões acabam por me esclarecer melhor alguns pontos e tornar minha leitura mais fácil e minha consciência mais tranquila. Já se apossava de mim um certo incômodo tendo em vista o meu não reconhecimento de um cabedal de palavras. Isso explica por que, num pré-postagem sua, eu afirmei que estava lendo a obra a passos curtos. Vejo que será um livro demorado e o qual terei de ler mais de uma vez.

    Torço para que minhas expectativas sejam atingidas a contento.

    Boa postagem!
    Muita Paz!

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  2. Chassot,

    gostei da resenha. O livro parece ser interessante, mesmo com os aspectos questionáveis. Lamentável é perceber quantos Simoninis existem soltos por aí...

    Hoje encerrei o "Evangelho segundo Jesus Cristo". Já leste?
    Achei formidável o diálogo de Jesus, Deus e Satã no barco a remo em meio ao nevoeiro. Te confesso que entre Eco e Saramago fico com o português... A literatura portuguesa está melhor servida que a italiana...

    Mas voltando à vaca fria, gostei da lembrança do Galileu. ... Lamentei não ter trazido para cá o "Diálogo", me deu vontade de ler agora...

    Abraços!

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  3. Caro Chassot,

    admiro como tens disposição para ler algo com o qual estejas em conflito. Demonstra, mais uma vez, a tua flexibilidade intelectual, sem deixar de fazer o devido juízo. Acho que o Prof. Guy tem razão: "quantos Simoninis existem soltos por aí..."(?). Cada vez que penso nisso, sinto dificuldade de alimentar a esperança.

    Um abraço,

    Garin

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  4. Caro Chassot,
    De Umberto eco só li "O nome da rosa", portanto, não tenho nenhuma base para analisar seus escritos. Conheço suas obras por leituras de referências biográficas que o exaltam e recomendam, nada mais. Diante de sua refinada resenha, vou pensar antes de comprar esse cemitério, não sei se estou preparado para conhecê-lo ainda. Abraços e bom fim de semana, JAIR.

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  5. Caro professor Chassot,
    Obrigada pela referência em seu blog e pelo livro que me presenteou. Já comecei a lê-lo e estou gostando muito. Quanto ao "O Cemitério de Praga", estou ansiosa para começar a leitura o que deve acontecer assim que eu voltar à minha rotina normal(fim das férias), mas assim que terminar de lê-lo compartilharei com prazer minhas impressões. Desejo-lhe uma ótima viagem e que em sua bagagem traga muitas histórias para nos contar. Um grande abraço, Renata.

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  6. Muito querida Renata,
    obrigado pela tua estreia aqui neste blogue. Foi bom ter tua companhia para ‘encurtar’ a longa viagem. Aguardo comentários de tuas leituras.
    Apareça aqui de vez em vez e deixa teu endereço eletrônico para que possas receber comentários
    Um afago do
    attico chassot

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  7. Querido tio e guru

    quero te dizer (mui suspeitamente pois faço parte dos que te presentearam com o 'Eco') que, ironicamente, ler a tua resenha, mesmo que nao demonstraste entusiasmo, fiquei com muita vontade de ler este livro...

    Com muito respeito quero cegamente (pois ainda nao li) fazer as vezes de 'advogado do diabo' em prol da riquissima função que a literatura pode ter em nossas vidas...

    Nao podemos achar correto nem deixar de nos repugnar com muito do que certos personagens pensam, dizem e fazem, mas... os autores dao-nos a oportunidade de (re)conhecermos a nós mesmos como HUMANOS.

    E como disseram os colegas leitores aqui, anteriormente, existem muitos como os protagonistas por ai...

    Um grande abraço com renovada admiração

    Daniel - Curitiba

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