sábado, 10 de abril de 2010

10 * Morreu o Professor Luiz Carlos de Mesquita Rothmann


Porto Alegre Ano 4 # 1346

Abro essa edição sabatina com uma noticia que jornais da manhã me trazem: Morreu o Professor Luiz Carlos de Mesquita Rothmann. Mesmo que pareça fazer coro a recomendação dos romanos: ‘Dos mortos nada a não ser o bem’ preciso dizer que em minha história profissional ele foi talvez a pessoa mais humana e sensível com quem trabalhei. Foi meu superior imediato enquanto exerci no final dos anos 70, na UFRGS, o cargo de Diretor do Decordi (Departamento de Controle e Registro Discente). O Decordi era uma das duas diretorias da Pró-Reitoria de Graduação. O Professor Rothmann era o Pró-Reitor. Recordo que, quase diariamente, subia ao seu gabinete para juntos despacharmos alguns das dezenas de processos que me chegavam. Eram aqueles mais difíceis. Então buscava nele e no seu sempre disponível bom senso as melhores soluções. Ainda, há alguns dias meu amigo Edni – que me sucedeu na Direção do Decordi – e eu planejáramos um visita para ele. Esta tarde, junto com a Gelsa, farei, emocionado, a última visita ao querido Rothman no cemitério São Miguel e Almas.

Um sábado que marca abertura dos quatro aniversários familiares abrilinos. Esta tarde vamos à Estrela para celebrar o aniversário do Guilherme que nesta quinta-feira fez cinco anos.

Em 20 de março, em uma sabatina de falar de autores e livros, quando ainda tocado pelas emoções dinamarquesa, o assunto aqui foi Søren Aabye Kierkegaard (Copenhague, 5 de maio de 1813 — Copenhague, 11 de novembro de 1855), teólogo e filósofo dinamarquês do século 19, que é conhecido por ser o "pai do existencialismo". Confessei, então, que não tinha leitura de nenhuma obras de Kierkegaard. E quando em Skørping, meu amigo Ole mostrou em sua biblioteca mais de uma dezena de livros de Kierkegaard e falou entusiasmado sobre o autor, fiz propósito de recuperar, em parte, essas perdas. Assim comprei três livros: Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra de Escritor, Diário de um Sedutor, e É Preciso Duvidar de Tudo. seduzidos pelos títulos e por lacônicas resenhas. Quando estes chegaram, fiquei em um impasse de eleição. Resolvi salomonicamente. Estou lendo os três em paralelos. Cada um é muito diferente em seu propósito. Trago hoje algo do terceiro. O primeiro me ajudou em densas e difíceis reflexões teológicas na Semana Santa: Porque Deus responsabilizou os judeus pela morte de seu Filho? O segundo poderia chamar-se “Manual de um sedutor”. O terceiro é Filosofia em um conto tido com autobiográfico.

KIERKEGAARD, Søren Aabye. É preciso duvidar de tudo. Prefácio e notas de Jacques Lafarge, tradução de Sílvia Saviano Sampaio e Álvaro Luiz Montenegro Valls, revisão da tradução de Else Hagelund e Glauco Micsik Roberti. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (Coleção Breves Encontros). ISBN: 8533617259

Lateralmente festejo encontrar entre os tradutores meu colega dos tempos de UFRGS e UNISINOS Prof. Álvaro Valls, um filósofo que estou dinamarquês para fazer seu doutoramento na Filosofia kierkegaardiana. Quando na Dinamarca vivi momentos babélicos, mais de uma vez lembrei do Álvaro.

Ajuda-me nessa resenha o Marcio Gimenes de Paula, filósofo e teólogo, com doutorado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Atualmente é professor adjunto II do departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe e membro da SOBRESKI (Sociedade Brasileira de Estudos de Kierkegaard). Publicou resenha sobre É preciso duvidar de tudo em PHILÓSOPHOS 8 (2) : 273-276, jul./dez. 2003. Usei parte de seu texto aqui.

A obra traduzida pelos especialistas brasileiros intitula-se originalmente Johannes Climacus eller ou De Omnibus Dubitandum Estocolmo (Johannes Clímacus ou deve-se duvidar de tudo). A tradução escolhida – É preciso duvidar de tudo – revela com bastante clareza o sentido original do título dinamarquês. Trata-se de uma obra póstuma de Kierkegaard, que é comumente aceita pela crítica como produzida em 1842-1843, fazendo parte oficialmente dos Diários (ou Papirer). Convém notar que, naquele tempo, o pensador dinamarquês já havia escrito obras de peso, como sua dissertação O conceito de ironia (1841) e dos Papéis de alguém que ainda vive (1838).

É importante que se frise tal contexto apenas para não situar injustamente o autor como alguém que só se tornou importante após Temor e tremor (1843), Migalhas filosóficas (1844), Conceito de angústia (1844). Aliás, há certa corrente interpretativa que só conferiu importância ao pensador de Copenhague após 1846, ano de lançamento do seu Post-scriptum, em que, segundo alguns, aparece o autor religioso. Tal afirmação é extremamente temerária – para dizer o mínimo – num autor tão irônico, com uma comunicação indireta e que se vale de tantos pseudônimos como Kierkegaard, como já contei aqui quando apresentei o autor.

É preciso duvidar de tudo é uma obra que mescla filosofia e literatura, o que não é, rigorosamente falando, nada de anormal na obra do irônico dinamarquês. Há no próprio título da obra uma clara alusão ao método cartesiano de filosofar.

Do ponto de vista literário, é curioso perceber que se trata de um pseudônimo relatando sua própria vida, como começou a filosofar e como se desiludiu com a filosofia. O nome do pseudônimo não é fortuito, mas significa literalmente João das Escadas ou da Ascese. Trata-se de um monge medieval que viveu num Mosteiro do Monte Sinai, autor de um tratado místico. Note-se aqui uma camada a mais na técnica da comunicação indireta kierkegaardiana, mas também se deve notar aqui, ao mesmo tempo, referências da vida pessoal de Kierkegaard.

É importante notar ainda que o pseudônimo Johannes Climacus será autor de outras duas obras do corpus kierkegaardiano: Migalhas filosóficas e Post-scriptum. Trata-se de um pseudônimo que tem uma história e uma lógica peculiar. Ele é um homem que vive na cristandade e não consegue ser cristão, vive no tempo dos sistemas e não consegue ser filósofo.

Johannes Climacus é um cético, alguém que gostaria de crer e de pensar, mas não consegue. Aliás, Kierkegaard criará outro pseudônimo na esteira de Johannes Climacus: Anti-Climacus. Tal pseudônimo será um cristão por excelência, no seu mais elevado grau. Através de sua pena, Kierkegaard escreverá a Doença mortal (1849) e Escola do cristianismo (1850).

É preciso duvidar de tudo possui quatro partes: introdução, primeira parte, segunda parte e um apêndice (que Kierkegaard deixou inacabado, juntamente com a obra). A citação de Espinosa – sobre a dúvida real no Tratado da reforma da inteligência, logo no início da obra – e a citação de um versículo bíblico de I Timóteo (de que ninguém deve desprezar sua juventude) fornecem a atmosfera (palavra tão cara ao léxico kierkegaardiano). Em outras palavras, o texto vai andar no meio-fio entre a dúvida existencial real e a importância de narrar a vida de um jovem filósofo. Tal panorama servirá para testar a filosofia moderna que, segundo Climacus, se meteu numa grande confusão ao querer superar a filosofia antiga, quando sequer conseguiu entendê-la.

Enfim, o pseudônimo Johannes Climacus narra suas dificuldades e frustrações na tentativa de filosofar. Conta-nos de como duvidou e de quanto achou que isso era moderno. O problema é que a suposta dúvida do sistema não é existencial, mas surge apenas como preceito, o que acaba por levá-la (ironicamente) à condição de dogma (quanta ironia!). A possível saída para ele (para nós?) é tentar pensar por si mesmo, com as dores (e delícias) de tal exercício.

Adito votos de que o sábado – a melhor parte de um sonhado fim de semana por que é prenhe das promessas do domingo –, seja gostoso. Para amanhã uma amena (e picante) blogada dominical.

4 comentários:

  1. Mestre Chassot, a morte do professor Luiz Carlos de Mesquita Rothmann tinge de luto um sábado tão ensolarado. É mais uma biblioteca que se queima.

    Quanto a Kierkegaard, parece que quanto mais o senhor fala nele, mais presente ele parece em minha formação, pois recordo-me de discussões acerca do existencilismo, mesmo não havendo citação direta ao ilustre dinamarquês.

    Ótimo dia.

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  2. Meu querido Marcos,
    esta tarde ao sepultar um dos homens mais sábios e ponderados que conheci em meu cinquentenário fazer profissional mais de uma vez veio-me a mente essa metáfora; hoje queimou uma preciosa biblioteca.
    Foi bom dizer para filha do Prof. Rothmann – sepultado com as insígnias do Instituto Histórico do Rio Grande do Sul – de minha admiração por seu pai.
    Agora estou voltando de Estrela da celebração dos cinco anos do Guilherme: o oposto do começo da tarde. Comemoramos a Vida.
    Quanto a Kierkegaard vou te entusiasmar ainda mais nas futuras resenhas.
    Um bom domingo
    attico chassot

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  3. Pôxa, Professor...acabei ficando um pouco sem palavras ao ler inicialmente sobre a morte do Professor Rothman...
    =/
    A morte é algo que me incomoda [ainda..]...
    .
    Quanto ao livro "É preciso duvidar de tudo", já o coloquei em minha lista de leituras, pois, como disseste ao Marcos logo acima, também tenho me sentido entusiasmada com o autor e, por dizeres que trata de algo em um Mosteiro Medieval, desperta ainda mais minha curiosidade [é um período histórico que me fascina!].
    .
    Suave domingo, mestre.
    .

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  4. Muito querida colega Thaiza,
    eis algumas vantagens oferecidas a pessoas blogueiras como tu e eu. Acabava de postar a blogada dominical, e vi que havia alguém conectado em Goiânia. Inferi certo.
    Obrigado por teus comentários e me ensejas quase on-line te retribuir os votos para ti e para os teus de um maravilhoso domingo,
    Um afago
    attico chassot

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