terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

09* Uma sugestão de L.F. Veríssimo para ler "caros milicos"

Porto Alegre Ano 4 # 1286

Uma manhã que começa para mim com notícia do falecimento de minha muito estimada e querida ex-colega na Unisinos: Noeli Klein Varella. Lamento não estar em Porto Alegre para homenagear-lhe na missa de 7º dia, nesta quinta-feira. Também me comovo: um haitiano de 28 anos é encontrado vivo nos escombros do terremoto ocorrido há mais de quatro semanas. Há milagres.

Luis Fernando Veríssimo – que ainda no sábado mereceu referência aqui – encerrou assim sua crônica na ‘Zero Hora’ do dia 4: “Recomendo a quem não leu o texto publicado por Marcelo Rubens Paiva no Estadão de sábado passado, na forma de uma carta aos militares. Ali está dito tudo que precisava ser dito sobre a questão dos desaparecidos durante a repressão e do direito da nação à verdade sobre aqueles tempos. Por alguém com toda a razão para ser revanchista, mas que prefere um sereno apelo à grandeza”. Eu não havia lido. Li Caros generais, almirantes e brigadeiros: Segurança Pessoal e Direitos Humanos e aderi a sugestão do consagrado escritor gaúcho. Resolvi brindar meus leitores com o texto.

Parece oportuno, dizer primeiro quem é Marcelo Rubens Paiva. Ele nasceu em São Paulo (1959); é um escritor, autor teatral e jornalista brasileiro. Aos 11 anos de idade sofreu o

primeiro grande 'baque' de sua vida: o "desaparecimento" do paio ex-deputado federal Rubens Paivapela ditadura militar. Um despertar violento da consciência política. E então aos 20 anos de idade, ele sofreu o segundo grande 'baque': um acidente que o deixou tetraplégico (hoje, com muita fisioterapia, voltou a locomover as mãos e os braços) e em 1979 escreveu um livro sobre sua história, Feliz Ano Velho, publicado em 1983, que foi traduzido para muitos países. Segundo o livro, seu acidente decorreu de um salto em um lago, no qual fraturou uma vértebra (5ª Cervical) do pescoço ao chocar a cabeça em uma pedra. O livro virou peça dirigida por Paulo Betti e também filme. Ele estudou na USP e Unicamp. Ganhou os prêmios Jabuti e Moinho Santista.

Agora seu texto:

Eu ia dizer "caros milicos". Não sei se é um termo ofensivo. Estigmatizado é. Preciso enumerar as razões?

Parte da sociedade civil quer rever a Lei da Anistia. Sugeriram a Comissão da Verdade, no desastroso Programa Nacional de Direitos Humanos, que Lula assinou sem ler. Vocês ameaçaram abandonar o governo, caso fosse aprovado.

Na Argentina, Espanha, Portugal, Chile, a anistia a militares envolvidos em crimes contra a humanidade foi revista. Há interesse para uma democracia em purificar o passado.

Aqui, teimam em não abrir mão do perdão. E têm aliados fortes, como o presidente do Supremo, Gilmar Mendes, e o ministro da Defesa, Nelson Jobim, que apesar de civil apareceu num patético uniforme de combate na volta do Haiti. Parecia um clown.

Vocês pertencem a uma nova geração de generais, almirantes, tenentes-brigadeiros. Eram jovens durante a ditadura. Devem ter navegado na contracultura, dançado Raul Seixas, tropicalistas. Usaram cabelos compridos, jeans desbotados? Namoraram ouvindo bossa nova? Assistiram aos filmes do Cinema Novo?

Sabemos que quem mais sofreu repressão depois do Golpe de 64 foram justamente os militares. Muitos foram presos e cassados. Havia até uma organização guerrilheira, a VPR, composta só por militares contra o regime.

Por que abrigar torturadores? Por que não colocá-los num banco de réus, um Tribunal de Nuremberg? Por que não limpar a fama da corporação?

Não se comparem a eles. Não devem nada a eles, que sujaram o nome das Forças Armadas. Vocês devem seguir uma tradição que nos honra, garantiu a República, o fim da ditadura de Getúlio, depois de combater os nazistas, e que hoje lidera a campanha no Haiti.

Sei que nossa relação, que começou quando eu tinha 5 anos, foi contaminada por abusos e absurdos. Culpa da polarização ideológica da época.

Seus antecessores cassaram o meu pai, deputado federal de 34 anos, no Golpe de 64, logo no primeiro Ato Institucional. Pois ele era relator de uma CPI que investigava o dinheiro da CIA para a preparação do golpe, interrogou militares, mostrou cheques depositados em contas para financiar a campanha anticomunista. Sabiam que meu pai nem era comunista?

Ele tentou fugir de Brasília, quando cercaram a cidade. Entrou num teco-teco, decolou, mas ameaçaram derrubar o avião. Ele pousou, saltou do avião ainda em movimento e correu pelo cerrado, sob balas.

Pulou o muro da embaixada da Iugoslávia e lá ficou, meses, até receber o salvo-conduto e se exilar. Passei meu aniversário de 5 anos nessa embaixada. Festão. Achávamos que a ditadura não ia durar. Que ironia...

Da Europa, meu pai enviou uma emocionante carta aos filhos, explicando o que tinha acontecido. Chamava alguns de vocês de "gorilas". Ri muito quando a recebi.

Ainda era 1964, a família imaginava que fosse preciso partir para o exílio e se juntar na França, quando ele entrou clandestinamente no Brasil.

Num voo para o Uruguai, que fazia escala no Rio, pediu para comprar cigarros e cruzou portas, até cair na rua, pegar um táxi e aparecer de surpresa em casa. Naquela época, o controle de passageiros era amador.

Mas veio a luta armada, os primeiros sequestros, e atuavam justamente os filhos dos amigos e seus eleitores - ele foi eleito deputado em 1962 pelos estudantes.

A barra pesou com o AI-5, a repressão caiu matando, e muitos vinham pedir abrigo, grana para fugir. Ele conhecia rotas de fuga. Tinha um aviãozinho. Fernando Gasparian, o melhor amigo dele, sabia que ambos estavam sendo seguidos e fugiu para a Inglaterra. Alertou o meu pai, que continuou no País.

Em 20 de janeiro de 1971, feriado, deu praia. Alguns de vocês invadiram a nossa casa de manhã, apontaram metralhadoras. Depois, se acalmaram. Ficamos com eles 24 horas. Até jogamos baralho. Não pareciam assustadores. Não tive medo. Eram tensos, mas brasileiros normais.

Levaram o meu pai, minha mãe e minha irmã Eliana, de 14 anos. Ele foi torturado e morto na dependência de vocês. A minha mãe ficou presa por 13 dias, e minha irmã, um dia.

Sumiram com o corpo dele, inventaram uma farsa (a de que ele tinha fugido) e não se falou mais no assunto.

Quando, aos 17 anos, fui me alistar na sede do 2º Exército, vivi a humilhação de todos os moleques: nos obrigaram a ficar nus e a correr pelo campo. Era inverno.

Na ficha, eu deveria preencher se o pai era vivo ou morto. Na época, varão de família era dispensado. Não havia espaço para "desaparecido". Deixei em branco.

Levei uma dura do oficial. Não resisti: "Vocês devem saber melhor do que eu se está vivo." Silêncio na sala. Foram consultar um superior. Voltaram sem graça, carimbaram a minha ficha, "dispensado", e saí de lá com a alma lavada.

Então, só em 1996, depois de um decreto-lei do Fernando Henrique, amigo de pôquer do meu pai, o Governo Brasileiro assumiu a responsabilidade sobre os desaparecidos e nos entregou um atestado de óbito.

Até hoje não sabemos o que aconteceu, onde o enterraram e por quê? Meu pai era contra a luta armada. Sabemos que antes de começarem a sessão de tortura, o brigadeiro Burnier lhe disse: "Enfim, deputadozinho, vamos tirar nossas diferenças."

Isso tudo já faz quase 40 anos. A Lei da Anistia, aprovada ainda durante a ditadura, com um Congresso engessado pelo Pacote de Abril, senadores biônicos, não eleitos pelo povo, garante o perdão aos colegas de vocês que participaram da tortura.

Qual o sentido de ter torturadores entre seus pares? Livrem-se deles. Coragem.

Fonte: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100130/not_imp503836,0.php

Com votos de uma muito boa terça-feira adito os agradecimentos pela companhia enquanto leitores deste blogue. Até amanhã, muito provavelmente.

10 comentários:

  1. Caro Mestre Chassot! Morei por quase dez anos no Distrito Federal e posso lhe garantir que, nas residências de luxo do Lago Sul de Brasilia, há muitos ex-militares vivendo às expensas do Estado (reformados) e que fizeram parte daquele grupo responsável pelas atitudes das décadas de 60 e 70. Creio que uma caça às bruxas esvaziaria sobremaneira as Mansões da Asa Sul. Abraços do JB.

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  2. Muito estimado Jairo,
    trazes dados que desconhecia e também eles deveriam catalisar um julgamento dos envolvidos com a ditadura (que não coloco como caça às bruxas).
    Obrigado por aditares mais comentário muito pertinente.
    Muito boas férias
    attico chassot

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  3. Caro amigo prof. Chassot:
    Grato pelo artigo do Marcelo Paiva, que eu andava procurando pela internet e não conseguia encontrar. Grato também pelas aterrorizantes imagens do rio mais sujo do mundo. Relembro Millor: "seremos mesmo uma humanidade canalha"? E grato pelo blog, sempre criativo.
    Grande abraço, neste mês de "ócio".

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  4. Meu querido Zé Carneiro,
    primeiro preciso festejar seu progresso tecnológico postando um comentário aqui. Viva.
    Realmente o artigo de Marcelo Paiva vale a pena ser divulgado.
    Realmente o que fazemos com Planeta é vergonhoso. Exemplos como o Citarum assustam e dão náuseas. Parece que não sabemos que outros ainda virão por aqui,
    Valeu, meu querido amigo
    attico chassot

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  5. Querido Chassot,
    Já te escrevo de casa. Ainda de férias. Aqui só retornaremos às atividades dia 22/02. Depois de toda festa carnavalesca. Mas vou aproveitar para descansar "mais" e organizar material para trabalhar com meus alunos.
    A História de Marcelo é muito forte, não sei como ele "sobreviveu". Ele é um vitorioso.
    Estas fotos do rio são lastimáveis e horríveis.
    Um grande abraço,

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  6. Querida Joélia,
    é bom ter tua companhia aí na querida Jequié onde já vive momentos muito agradáveis. Realmente o Marcelo Paiva é um ‘grande sobrevivente’. As fotos do rio Citarum são dolorosas.
    Curta este saldo de férias e obrigado por tua chegada aqui
    attico chassot

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  7. Prof Chassot
    Como sempre, valeu a leitura dos dois dias. É estarrecedor perceber o quanto o ser humano, com toda a possibilidade de ser feliz e fazer os outros felizes age e reage frente a tamanha barbárie.
    Eu era criança, morava no interior e lembro o quanto as pessoas comentavam...
    Será que o Brasil vai se redimir dessa? Ou esconderemos embaixo do tapete?
    eu estou em pleno trabalho, no mais novo serviço, mas para suas férias um bom descanso
    Um abraço
    Eloí

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  8. Muito querida Eloí,
    imagino o envolvimento que estás com teus novos desafios acadêmico.Estou na torcida. Aliás, amanhã vou um pouco para tuas bandas (Três de Maio e Santa Rosa). Defendo que seja preciso levantar o tapete.
    Sucesso para ti e obrigado pelo comentário sempre oportuno
    A admiração do
    attico chassot

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  9. Mestre Chassot, o texto do Marcelo R. Paiva é simplesmente brilhante. Quem dera todos pudessem fazer uma crítica tão direta e incisiva de forma tão poética e branda.

    Ótimo dia.

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  10. Muito estimado Marcos,
    talvez das edições mais comentadas esta dessa terça-feira neste blogue, devo confessar que aguardava tua adesão ao texto de Marcelo R. Paiva.
    Tiveste a sensibilidade de L. F. Veríssimo na tua síntese.
    Um bom dia
    attico chassot

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